A fascinante história da expansão da Boavista

No Porto, quando se fala na Boavista pensa-se numa vasta área na zona ocidental da cidade que inclui a rotunda e a longa avenida que vai até ao mar. Boavista é, também, o nome de um importante clube de futebol da cidade, que tem o seu estádio próximo da avenida. No entanto, o que poucos saberão é que, apesar de o topónimo já ser usado há, pelo menos, três séculos, ele provém de um local que hoje não consideraríamos ser parte da Boavista. Intrigado(a)? Venha saber mais...

Manuel de Sousa

A rotunda da Boavista (oficialmente, praça de Mouzinho de Albuquerque); foto de c.1958 [Porto Desaparecido]

Como o(a) estimado(a) leitor(a) saberá, Boavista e Boa Vista são topónimos relativamente comuns nos vários países de língua portuguesa: há uma cidade da Boa Vista, que é capital do estado brasileiro de Roraima; há uma ilha da Boa Vista, em Cabo Verde; há um bairro da Boavista em Luanda, capital de Angola; e por aí fora. Em Portugal, também há várias Boavistas. Em todos os casos, a origem destes topónimos residirá nos aprazíveis panoramas que se podem (ou, em tempos, se puderam) contemplar desses locais.

Se calhar, o(a) leitor(a) ficará surpreendido(a) ao saber que o topónimo Boavista – que hoje designa uma vasta zona ocidental do Porto, de limites algo difusos – teve a sua origem nas imediações da atual praça da República. Num tempo em que a urbanização do Porto se ficava, basicamente, pelo que nós hoje chamamos Baixa e Centro Histórico, da atualmente chamada praça da República, olhando para poente, podiam-se admirar vastos prados, campos de cultivo, alguns caminhos, uma dúzia de casas dispersas, um ou outro pinhal e, ao fundo, o imenso mar!

Jardim do Palácio dos Figueiroas - Quinta de Santo Ovídio, óleo sobre tela. Sensivelmente neste enfiamento corre, desde 1898, a rua de Álvares Cabral. Ao fundo, vê-se o mar. [Museu Nacional de Soares dos Reis | Porto Desaparecido]

Era uma vez uma quinta chamada Boavista...

Boavista foi o nome dado, no século XVIII, a uma quinta que ficava junto da atualmente chamada praça da República, durante muito tempo conhecida como campo de Santo Ovídio. A designação primitiva do largo teve a sua origem numa antiga capela de invocação daquele santo, nascido na Sicília e martirizado em Braga, algures entre os séculos I e II d.C. A capela localizava-se à face da antiga estrada, de origem romana, que ligava o Porto a Braga e que, mais coisa menos coisa, é hoje seguida pelas ruas dos Mártires da Liberdade, Antero de Quental, Vale Formoso, etc.

Nos séculos XVIII e XIX, a quinta da Boavista era a maior propriedade existente dentro dos limites urbanos do Porto, prolongando-se para norte e para sul, com jardins, pastos e campos de cultivo, chegando à rua de Cedofeita e ao largo do Mirante (hoje, praça do Coronel Pacheco).

Excerto da carta do Porto de Teles Ferreira; 1892. Legenda: A - Quinta da Boavista (está delimitada a preto a área da propriedade em 1892); B - Quartel de Santo Ovídio; C - Igreja da Lapa; D - Casa dos Almeida Garrett/Colégio de N.ª Sr.ª da Boavista/Grande Colégio Universal; E - Capela do Sagrado Coração de Jesus da Boavista/Casão Militar; F - Casa da Pedra; G - Fonte das Águas Férreas. 1 - Campo de Santo Ovídio/Praça da República; 2 - Rua da Boavista; 3 - Rua de Cedofeita; 4 - Rua do Barão de Forrester (até 1940, parte da rua de Cedofeita) [Cartas Históricas Interativas do Porto]

Em terrenos anteriormente pertencentes à colegiada de Cedofeita, a quinta da Boavista pertenceu inicialmente ao desembargador João Carneiro de Morais, cujos sucessores a venderam, em 1726, a João de Figueiroa, alto funcionário do reino, que lá mandou construir um palacete – cujo risco, embora não esteja documentalmente comprovado, alguns autores atribuem a Nicolau Nasoni  e magníficos jardins.

Em 1784, a família Figueiroa cedeu gratuitamente à Câmara do Porto uma franja de terreno, a norte da sua propriedade, onde foi aberta uma rua, ligando o topo noroeste do, então, campo de Santo Ovídio à rua de Cedofeita, nas Águas Férreas. Este novo arruamento – retilíneo – recebeu o nome da quinta: rua da Boavista.

Por herança, a quinta passou para a posse do visconde de Beire, Manuel Pamplona Carneiro Rangel Veloso Barreto de Miranda e Figueiroa. Foi no tempo do visconde de Beire que os jardins começaram a ser abertos ao público aos domingos, feriados e dias santos.

Por morte do visconde de Beire a quinta passou para a sua filha Maria Balbina Pamplona Carneiro Rangel que, em 1843, casou com António Benedito de Castro, quarto conde de Resende.

À época, a quinta da Boavista era considerada a mais agradável residência nobre do Porto. Um portão coberto permitia a entrada na quinta, para quem viesse do campo de Santo Ovídio. Uma pequena alameda, ladeada pelas cocheiras e cavalariças, dava acesso ao palácio. O edifício apresentava uma fachada simétrica, de grande qualidade e equilíbrio formal. Nas traseiras, uma escadaria dava acesso aos jardins. Daqui se contemplava uma magnífica e ampla vista que se estendia até ao mar, fazendo jus ao nome da quinta.

Fachada voltada a poente da casa da quinta da Boavista; desenho de 1833 [Joaquim Cardoso Vitória Vila Nova | Porto Desaparecido]

A quinta da Boavista ficava próxima da igreja da Lapa, ao lado da qual funcionou o colégio da Lapa que ministrava o que hoje consideraríamos o ensino secundário. Na adolescência, aqui estudou José Maria de Eça de Queirós que desenvolveu uma grande proximidade com a família detentora da propriedade. Amigo de Luís – o herdeiro do título de conde de Resende – e de Manuel – que viria, também, a receber o título, em virtude da morte prematura do irmão mais velho –, Eça de Queirós frequentou assiduamente a quinta da Boavista, acabando por se apaixonar por Emília, irmã de Luís e Manuel. Após cinco meses de noivado, acabaram por contrair matrimónio em 1886, no oratório particular da quinta.

Diga-se que, como era habitual na época as quintas tomarem o nome dos seus proprietários, a quinta da Boavista também foi conhecida como quinta dos Figueiroas, dos Resendes e dos Pamplonas, para além de também ser conhecida por quinta de Santo Ovídio, numa alusão ao largo fronteiro.

Operação imobiliária

Seja como for, esta propriedade não sobreviveria até ao final do século. Por iniciativa dos próprios proprietários, em 1892, iniciou-se um processo que viria a culminar na alienação da quinta. Foi retalhada em 144 lotes, vendidos por valores que oscilaram entre os 750 mil réis e um conto e 250 mil réis, ou seja, apenas acessíveis às bolsas mais abonadas. Esta nova rua aristocrática – a rua de Álvares Cabral, aberta em 1898 – rasgou a quinta a meio, obrigando à demolição do belíssimo palácio. Apesar de alguns desmandos arquitetónicos, entrementes cometidos, esta rua ainda hoje mantém um ar elegante que nos remete para os finais do século XIX e inícios do XX.

Se calhar o(a) leitor(a) nunca se apercebeu disso, mas a rua de Álvares Cabral teve o traçado que melhor servia esta operação imobiliária. Só assim se compreende que a rua vá desembocar a meio da praça da República e não num dos seus topos, como acontece com as restantes ruas que a essa praça dão acesso. Ou seja, a sujeição do interesse geral aos interesses particulares do momento não é de agora. É de sempre!

Já vimos que a quinta da Boavista deixou de existir no final de Oitocentos, mas o topónimo Boavista continuou bem vivo, expandindo-se para paragens progressivamente mais distantes.

Praça da República, entrada para a rua da Boavista; foto de c.1970 [Porto Desaparecido]

Na rua da Boavista, o edifício onde hoje se encontra o Grande Colégio Universal ostenta o brasão dos Silvas, Almeidas e Leitões e pertenceu às tias maternas de Almeida Garrett, sendo conhecido como a Casa dos Almeida Garrett. Conta-se que foi numa das visitas a esta casa que o escritor teve um violento acidente  caiu do cavalo na Carvalhosa e foi arrastado durante vários metros , ficando com uma cicatriz na cabeça que o obrigou a usar cabeleira postiça o resto da vida. Mais tarde, em 1869, estava aqui instalado o colégio de Nossa Senhora da Boavista que lecionava desde a instrução primária até ao liceu. Só bastante mais tarde, viria para aqui o Grande Colégio Universal.

Um pouco mais abaixoficava a capela do Sagrado Coração de Jesus da Boavista, mandada erguer por Cristina Almeida Garrett em 1875. Alguns anos depois, a capela passou para a Companhia de Jesus que, dada a sua grande frequência, decidiu construir um novo e mais amplo templo no local. A nova capela ainda não estava terminada em 1910 quando, após a implantação da República, o Estado nacionalizou as propriedades dos jesuítas. Desafetada do culto, aqui se instalaram as Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento, vulgarmente conhecidas como Casão Militar. A fachada foi adaptada ao novo uso e completamente despojada de símbolos religiosos, no entanto, mantém uma exuberância que não é comum em edifícios de utilização militar. Hoje é um dos vários antigos edifícios militares da cidade, desocupados e evidenciando claros sinais de degradação.

Continuando a descer a rua da Boavista, temos o Conjunto Habitacional da Bouça, do arq.º Álvaro Siza Vieira. Foi inicialmente construído no âmbito do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), criado após o 25 de Abril para minimizar o défice habitacional das classes populares. Em 1977, foram erguidos dois dos quatro blocos previstos. O projeto só seria concluído entre 2004 e 2006, procedendo-se, também, à reabilitação dos blocos construídos na primeira fase.

Em frente, já na rua das Águas Férreas, fica a Casa da Pedra, onde viveu o escritor e filósofo Joaquim Pedro de Oliveira Martins  na época em que era administrador do Companhia do Caminho de Ferro do Porto à Póvoa  e foi local de tertúlias da Geração de 70, dinamizadas por Eça de Queirós, Antero de Quental, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão. Cerca de um século mais tarde, mais concretamente entre as décadas de 1960 e 1980, a Casa da Pedra foi residência da poetisa vianense Maria Manuela Couto Viana.

A poucas dezenas de metros daqui ficava a Fonte das Águas Férreas, erguida na sequência da descoberta, em 1784, de um manancial de águas ferruginosas, consideradas medicinais. A fonte era muito concorrida em meados do século XIX. Atualmente, o local é o parque de estacionamento automóvel da rua do Melo. A fonte, agora como mero elemento decorativo, foi reconstruída no Parque da Cidade.

Edifício da Mercearia Camanho, de Manuel Camanho Cernade, na esquina das ruas da Boavista (à esquerda) e de Cedofeita (à direita); foto de c.1910 [AHMP | Porto Desaparecido]

O primeiro tramo da rua da Boavista terminava logo a seguir, no cruzamento com a rua de Cedofeita que, à época, ia até à Ramada Alta. Em 1940, por proposta da Comissão de Toponímia, a Câmara do Porto aprovou a alteração do nome do tramo da rua de Cedofeita compreendido entre a rua da Boavista e a Ramada Alta para rua do barão de Forrester. Um pormenor curioso é que, apesar da alteração da designação da rua, os números de polícia mantiveram a sequência da rua de Cedofeita.

Das Águas Férreas, a rua da Boavista foi-se expandindo para ocidente, sempre mantendo o traçado retilíneo inicial.

Casa com o n.º 743 da rua da Boavista. Erguida nos finais do século XIX, foi residência da família Pinto dos Santos, lar universitário e Externato Lumen; foto de 1958 [Teófilo Rego, AHMP | Porto Desaparecido]

Na esquina das ruas da Boavista e de Augusto Luso ficava o Hospital Maria Pia, fundado em 1882. O seu nome presta homenagem à esposa do rei D. Luís I e foi um dos hospitais pediátricos mais importantes do país. Após 130 anos de atividade, em 2012, os serviços de pediatria foram transferidos para o Hospital de Santo António, ficando o edifício devoluto.

Vinte e cinco metros mais à frente, no cruzamento com a rua de Santa Isabel, o perfil do arruamento foi consideravelmente alargado, terminando a rua e iniciando-se a avenida da Boavista. Desde o seu início até aqui, a rua da Boavista tem uma extensão total de 895 metros.

Hospital Militar; foto de c.1900 (fotografia colorida automaticamente) [original: Arquivo Municipal do Porto | Porto Desaparecido]

Da rua se fez avenida

Já em plena avenida da Boavista, fica o Hospital Militar D. Pedro V, oficialmente designado por Hospital das Forças Armadas - Polo do Porto. Em 1854, foi o primeiro hospital militar do país a ser construído de raiz, por ordem de D. Fernando II, regente em nome do seu filho menor, o futuro rei D. Pedro V.

Um pouco mais à frente, em 1872, começou a ser aberto um grande largo circular, primeiramente batizado como praça da Boavista. Em 1897, a Câmara do Porto alterou-lhe o nome para praça de Mouzinho de Albuquerque. No entanto, toda a gente a conhece e continua teimosamente a denominá-la por rotunda da Boavista.

Em 1876, foi para aqui transferida a feira de São Miguel, vinda da Cordoaria, aumentando a frequência do local. Foi durante esta feira que, em 1906, se realizaram as primeiras projeções públicas de cinema no Porto, num barracão chamado Salão High-Life. Este cinematógrafo acabaria por se fixar na praça da Batalha, estando na origem do icónico Cinema Batalha.

Os transportes públicos cedo contribuíram para o desenvolvimento da rotunda. Aqui foi construída a estação da Boavista, da Companhia Carris de Ferro do Porto, estabelecendo a ligação entre o centro do Porto e a Foz do Douro. A máquina – pequeno comboio a vapor circulando na via pública –, entre 1878 e 1914, descia a avenida da Boavista até à Fonte da Moura, seguindo daí para sul, por entre pinhais e campos agrícolas, até à Foz.

As primeiras instalações da estação da Boavista foram destruídas por um violento incêndio ocorrido em fevereiro de 1928. Foi nessa época que se construiu o edifício que ainda hoje está presente na memória coletiva dos portuenses  conhecido como a remise da Boavista – e que foi demolido no final da década de 1990 para dar lugar à Casa da Música.

Elétricos n.º 131 e n.º 307 na remise da Boavista; foto de 1973 [Mega Anorak | Porto Desaparecido]

Era também na rotunda que ficava aquela que foi a primeira estação ferroviária do Porto: também chamada estação da Boavista, inaugurada em 1875. Daqui saiam as linhas para Guimarães, Póvoa de Varzim e Famalicão. Como esta estação era considerada demasiado periférica, foi construído um ramal de acesso ao centro da cidade, sendo, em 1938, inaugurada a estação da Trindade. Com a construção do Metro do Porto, a estação da Boavista foi desativada, encontrando-se hoje em estado de ruína.

Estação da Boavista; foto de 1875 [Wikimedia Commons | Porto Desaparecido]

Entre a rotunda e o cemitério da Agramonte, a 28 de agosto de 1889 abriu portas aquela que seria a mais imponente e maior praça de touros da cidade do Porto: o Coliseu Portuense. Foi construída por dois empresários que fizeram fortuna no Brasil. Ali se realizaram várias corridas com certo sucesso, nomeadamente a realizada aquando das Comemorações Henriquinas, em 1894. Contando com a presença do rei D. Carlos e dos príncipes reais, culminou com a atribuição da designação de Real ao Coliseu Portuense. O recinto acolhia oito mil espectadores e era dotado de dois restaurantes, salão de bilhares, café e quiosque, além de dispor de iluminação elétrica. No entanto, o entusiasmo tauromáquico não foi duradouro e, para não fechar as portas prematuramente, o recinto teve de acolher espetáculos circenses e demonstrações de natação. Mesmo assim, o avolumar dos prejuízos acabou por ditar o encerramento definitivo do Real Coliseu Portuense e a sua demolição em 1898. Este espaço é, desde 1908, ocupado pelo Tabernáculo Batista.

Bancada do Real Coliseu Portuense; foto de c.1900 [Aurélio da Paz dos Reis, CPF | Porto Desaparecido]

A decisão de ajardinar a praça e de erguer no seu centro um monumento comemorativo da Guerra Peninsular foi tomada alguns anos antes da instauração da República. O Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, projeto do escultor Alves de Sousa e do arquiteto Marques da Silva, tornou-se no elemento identificador e estrutural desta praça.

Bilhete-postal da praça de Mouzinho de Albuquerque/rotunda da Boavista; foto de c.1900. Antes de ser erguido o monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, a circulação fazia-se pelo interior da rotunda. O palacete ao fundo à direita ocupa o local onde, em meados da década de 1970, seria construído o Shopping Center Brasília [Arnaldo Soares | Porto Desaparecido]

Da rotunda, a longa avenida prossegue o seu caminho para ocidente. Até meados do século XX, a avenida era uma autêntica alameda com duas filas de frondosos plátanos que acabaram por ser sacrificados para facilitar o trânsito automóvel.

Boulevard de palacetes

No Porto de Oitocentos, a avenida da Boavista foi um dos locais escolhidos pelos mais abastados para erguerem as suas grandes residências, chalés e palacetes. Foram muitos, mas vou apenas destacar dois palacetes, ambos da autoria do arq.º Joel da Silva Pereira: o palacete de Manuel Pinto da Fonseca e o de Boaventura Rodrigues de Sousa.

Bilhete-postal do palacete de Manuel Pinto da Fonseca, na esquina da avenida da Boavista com a rua de Belos Ares; foto de c.1910. Foi destruído por um incêndio em 1926. [Estrela Vermelha | Porto Desaparecido]

Comecemos pelo primeiro: um deslumbrante palacete que ficava na esquina da avenida da Boavista com a rua de Belos Ares. Foi mandado erguer por Manuel Pinto da Fonseca.

Nascido em Felgueiras, em 1804, Manuel Pinto da Fonseca emigrou para o Brasil onde fez fortuna no tráfico negreiro. Na década de 1840, chegou a ser considerado o maior traficante do Rio de Janeiro, pelos comissários ingleses ali destacados para fiscalizarem o tráfico de escravos. Em 1851, regressou a Portugal, fixando-se no Porto. Tornou-se banqueiro, criando, com o seu irmão Joaquim, a casa bancária Pinto da Fonseca & Irmão. 

No seu livro O carrasco de Vítor Hugo José Alves, publicado em 1872, Camilo Castelo Branco faz referência ao negreiro Manuel Pinto da Fonseca, acrescentando que era conhecido pelo cognome de Conde de Monte Cristo.

Dono de uma fortuna ímpar, Manuel Pinto da Fonseca escolheu a desafogada avenida da Boavista para construir um magnífico palacete. No entanto, a residência, uma das mais sumptuosas do Porto, foi completamente destruída por um brutal incêndio, no dia 14 de outubro de 1926. No combate ao fogo pereceram cinco bombeiros sapadores municipais, facto que consternou a cidade. Atualmente, o local é ocupado por um incaracterístico bloco de apartamentos, com um bingo no rés do chão.

Palacete de Boaventura Rodrigues de Sousa; foto de 2007 [Manuel de Sousa | Wikimedia Commons]

A uns 150 metros de distância, do mesmo lado da avenida, no n.º 1354, fica o segundo dos palacetes que queria destacar. Trata-se de um edifício completamente diferente, mas igualmente impressionante. De estilo neoclássico, de volume compacto e imponente, este palacete fica num plano recuado e elevado em relação à avenida.

Foi mandado construir por Boaventura Rodrigues de Sousa, nascido em Vila do Conde, em 1848. Ainda jovem, emigrou para o Brasil, estabelecendo-se em Pernambuco. Mas foi na cidade de Santos, onde criou uma empresa de importação e exportação, que fez fortuna. Regressado a Portugal, foi feito conselheiro pelo rei D. Carlos. Em 1895, mandou erguer este palacete na avenida da Boavista para sua residência. Mas não usufruiu muito tempo dela, vindo a falecer em 1908, vítima de pneumonia. Em 1926, o edifício acolheu o colégio de Nossa Senhora do Rosário e, entre 1959 e 1991, o Colégio dos Maristas. Já no início do século XXI, o edifício foi restaurado, com projeto a cargo dos arquitetos António Portugal Mendonça e Manuel Amorim Reis. O caráter de excelência do restauro levou a Câmara do Porto a premiar a recuperação do edifício com o Prémio João de Almada 2006.

Futebol aos sábados ou aos domingos?

Continuando a descer a avenida da Boavista, um pouco mais à frente, temos à nossa direita a rua de O Primeiro de Janeiro que dá acesso ao estádio do Bessa. Isso traz-nos à memória uma página da história do futebol portuense. Tudo começou em 1903, com dois irmãos britânicos, Harry e Dick Lowe, que terão recebido do pai uma bola vinda das terras de sua majestade. Juntando companheiros ingleses e portugueses, muitos deles operários da vizinha fábrica do Graham, criaram os "The Boavista Footballers". Tudo corria na mais sã das convivências até que a coisa descambou... Em 1909, invocando os preceitos da igreja anglicana, os ingleses recusaram-se a jogar aos domingos, sugerindo os sábados como alternativa. Reunidos em assembleia, os sócios (quase todos portugueses) votaram unanimemente pelos jogos aos domingos  aliás, o único dia em que não trabalhavam. Deu-se o "divórcio" e, em 1910, The Boavista Footballers cedeu lugar ao Boavista Futebol Clube. No entanto, o típico equipamento axadrezado só surgiria mais tarde, em 1933, tal como o emblema que o Boavista ostenta até hoje.

Vista aérea do Complexo Residencial da Boavista; foto de c.1977 [Porto Desaparecido]

Uns duzentos metros mais adiante fica o Complexo Residencial da Boavista  também conhecido por Foco ou Graham –, construído entre 1962 e 1973, da autoria do arq.º Agostinho Ricca. Veio ocupar o terreno onde anteriormente estava a Fábrica de Fiação e Tecidos da Boavista da firma William & John Graham & Co., também conhecida por fábrica dos ingleses  apesar dos seus donos serem originalmente escoceses. Estabelecida em 1889, num terreno de 10 hectares na avenida da Boavista, esta foi a mais importante fiação, tecelagem e tinturaria do país, chegando, em 1928, a empregar mil e quinhentos operários. No entanto, as dificuldades surgidas após a Segunda Guerra Mundial acabaram por ditar o encerramento desta importante unidade industrial, na década de 1950.

Mansão Gilbert na avenida da Boavista; foto de c.1900. Ao lado da mansão, o pinheiro que deu o nome à zona do Pinheiro Manso, derrubado pelo célebre ciclone de 1941. Ao fundo, uma chaminé da fábrica do Graham. No local da mansão Gilbert está agora o edifício da cervejaria Cufra [Alberto Ferreira | Porto Desaparecido]

O último tramo da avenida da Boavista  entre a Fonte da Moura e o Castelo do Queijo  só foi concluído em 1917, mas sempre mantendo o traçado retilíneo que já vinha da praça da República. Terminava, assim, uma jornada iniciada 133 anos antes e a seis quilómetros e meio de distância.

A abertura da ponte da Arrábida, em 1963, contribuiu para transformar a Boavista numa nova centralidade económica e cultural da cidade do Porto. Na rotunda e ao longo da avenida da Boavista há edifícios culturais, escritórios, hotéis, zonas comerciais e de habitação  muitas delas luxuosas.

Café Bela Cruz, no final da avenida da Boavista; foto de 1971 [SIPA | Porto Desaparecido]

Ao longo da sua história, foram propostas numerosas alterações de designação para a rua da Boavista  sendo que algumas chegaram a ser oficialmente aprovadas e foram usadas por breves períodos: rua do Jasmim, rua de 25 de Julho e rua do Duque de Bragança. Por seu lado, a avenida da Boavista esteve para ser avenida de Eça de Queirós, avenida de Portugal, avenida do Condestável e avenida Alves da Veiga. Salazar e Sá Carneiro foram nomes que também chegaram a ser sugeridos para esta avenida. Quanto à Rotunda, já sabemos. Tem um nome oficial, mas toda a gente continua a chamá-la rotunda da Boavista.

Diga-se, para terminar, que o nome Boavista também foi usado em mais seis outros arruamentos do Porto: na Ribeira, na rua do Sol, em São João Novo, no campo de 24 de Agosto, no Padrão e na Foz. Mas nenhum perdurou até aos nossos dias.

O(A) caro(a) leitor(a) terá de concordar que tudo isto é bastante curioso: uma quinta de onde se via o mar dá o seu nome a uma pequena rua que se vai estendendo progressivamente para ocidente, levando consigo a sua designação e o seu traçado retilíneo, até chegar ao mar. É também curiosa a popularidade do topónimo Boavista  que até é usado, por exemplo, pela Casa de Saúde da Boavista (já um tanto fora da zona a que chamamos Boavista)  e o facto de todos os outros arruamentos portuenses que tinham esse nome terem, entretanto, adotado outras designações. A nossa cidade é cheia de histórias interessantes e esta é, sem dúvida, uma delas!

Continue a acompanhar-nos, estimado(a) leitor(a)!

Gostou deste artigo? Então, leia também:

Para saber mais:

  • ALECRIM, I.S.T.S. (2014). O Grande Parque Residencial da Boavista, 1962-1973. Porto: FAUP [disponível online].
  • CUNHA, M.M.R. (2017). Boavista, uma avenida na história da cidade: O contributo da análise de variâncias e permanências para as estratégias de intervenção. Porto: FAUP [disponível online].
  • DIAS, M. (2001). O futebol no Porto. Porto: Campo das Letras [compre online].
  • FERNANDES, J.A.R. (1994). A rotunda da Boavista na passagem do século. O Tripeiro, 7.ª série, ano 13, n.º 8-9, agosto-setembro, pp. 266-267.
  • FERNANDES, M.G. & MEALHA, R.P. (2017). A cartografia urbana na análise morfogenética de espaços urbanos: O caso do eixo da Boavista na cidade do Porto.  Arquivos, vol. 26 [disponível online].
  • FERREIRA, M.C. (2017). Prontuário de toponímia portuense. Porto: Edições Afrontamento [compre online].
  • PIRES, M.C.M. (2000). A rua de Álvares Cabral (1895-1940): Formas de habitar. Porto: FAUP [compre online].
  • SANTOS, G.P.M. (2012). Avenida da Boavista: O início e o fim. Praça da República / Foco. Porto: FAUP [disponível online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].

Comentários

  1. 0brigada por esta exposição de uma zona que revejo-me desde a minha infância, só ao fim dos meus 83 anos li uma descrição tão detalhada de zonas da minha linda cidade do Porto que eu pensava conhecer melhor, mas como diz o ditado mais vale tarde do que nunca. O meu muito obrigada.

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  2. Obrigado. Foi muito bom e elucidativo.

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  3. Muito obrigado. Vivo no estrangeiro há mais de 50 anos, nasci na Carvalhosa vivo a minha infância entre o Campo como chamávamos à Praça de República e João de Deus, Vanzeleres e Rotunda. Não esquecendo Figueiroa, Tutoria, o Barnabé onde jogávamos a bola nas traseiras do Universal e onde se encontram agora os prédios Siza Vieira. Havia à Torrinha, os Surdos e Mudos, etc. A Boavista era um mundo com muito movimento todo o dia. O meu avô e avó trabalharam nos Ingleses como eles diziam
    Excelente artigo, mais uma vez agradecido

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    1. Obrigado por acompanhar este blogue!

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    2. Excelente artigo, faz bem lembrar a história da nossa cidade .Parabéns

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    3. Muito obrigado! Continue a acompanhar este blogue.

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  4. Caro Manuel de Sousa. Nasci no coração de Coimbra em 1936. Fiz a primeira visita ao Porto no início da década de 40, tendo ficado alojado na Casa de Ramalde da Tia Conceição Cirne com dois tios e um irmão. Vinha de vez em quando ao Porto, principalmente no meu caminho pela Régua para o Colégio de Lamego. No fim do meu curso na Universidade de Cambridge, a conselho dos meus Pais, vim viver para o Porto, onde continuo a viver com um intervalo de três anos. Comecei a calcorrear, só ou acompanhado, as ruas, ruelas, praças, pracetas e escadas da "Baixa" e a tornar-me um apaixonado pela Cidade. Fiquei com uma dúvida de datas quando à construção do monumento à Guerra Peninsular. Pode ser má interpretação minha. De qualquer forma, desejo continuar a receber os seus artigos. Lamentavelmente, um grave acidente e, posteriormente, problemas cardíacos, limitaram-me muito os passeios.

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    1. Obrigado pela partilha da história da sua ligação ao Porto. Pode continuar a acompanhar o blogue "Porto d'Honra". Cumprimentos e votos de boa saúde.

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  5. já fiz o percurso a pé da Praça da Republica á Foz pela Boavista , mas toda a sua história fiquei agora a conhecer .

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  6. Estou convencido que antes de ser do Figueiroa, foi de antepassados meus.

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  7. Como portuense dou os meus parabéns pelo artigo detalhado de história da cidade, sua expansão e preciosidades e rigor urbanísticas. Pena que alguns palacetes não tivessem sido preservados até aos nossos dias, como também o maravilhoso jardim dos Graham.

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  8. Sou Portuense e estou a aprender muito sobre a minha cidade. Obrigado Sr. Manuel de Sousa.

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  9. Boa noite, caro Manuel de Sousa. Utilizei o seu blog para exemplificar de forma prática a razão de ser do nome "Quartel de Santo Ovídeo" e a importância do contexto na formação da zona da Boavista. No entanto há um erro que não devia estar presente num texto tão bem informado: nunca houve um "José Manuel Eça de Queirós", amigo dos irmãos Resende, Luiz e Manuel de Castro (que usavam o nome da mãe, Pamplona, em último lugar). O Eça a que se refere era, como certamente sabe, o nosso querido Eça, José Maria de seu nome próprio.
    O texto é excelente e bem explícito - abraço cordial.

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    1. Claro, tem toda a razão. Foi lapso meu, já corrigido. Obrigadíssimo pelo alerta. Abraço.

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  10. Embora já conhecesse uma boa parte desta história quer através do historiador Helder Pacheco bem como das aulas com o arq.Aguiar Branco muito gostei deste artigo pois sou apaixonado de tudo quanto diz respeito à cidade do Porto

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  11. Muito bom, obrigado (locais da minha infância e juventude)

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  12. Sou portuense de nascimento, bisneto de Cândida de Sousa
    ( Loivo - Vila Nova de Cerveira).
    Amo minha cidade e admiro até com reverência, todos os que como você se dedicam a esta nobre tarefa. Bem haja.

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  13. Sou tripeirinho de Paranhos. Obrigado por me relembrar a minha 3ª fase estudantil. O meu liceu percorreu-se entre o Garcia de Orta, o Liceu Rodrigues de Freitas e o Externato Lumen. Os intervalos e os furos eram passados nos matrecos do Café Diu, no Shopping Brasília. Adorava os croissants e as broinhas de mel da Confeitaria Porto Belo. Tomava café no Nosso Lar. Ainda me lembro do elétrico 4 Praça/Pereiró via Carvalhosa. "Espiávamos" as colegas do Carolina Michaelis.
    Obrigado por me lembrar desta fase

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    1. Esqueci-me de referir. Excelente trabalho. Parabén

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