Hermínios: o "grand magasin" portuense

Mais de cem anos antes da abertura do El Corte Inglés na região, a cidade do Porto já estava dotada de galerias comerciais do tipo parisiense. A mais famosa destas grandes superfícies oitocentistas chamava-se Grandes Armazéns Hermínios e ocupava uma vasta área, entre as ruas 31 de Janeiro e Sá da Bandeira. Quer saber mais pormenores? Leia este artigo... 

Manuel de Sousa

Devia ter aí uns 12 ou 13 anos de idade quando uma tia minha, nascida no dealbar do século XX, me falou pela primeira vez dos Armazéns Hermínios. E, como ela tinha vivido grande parte da sua vida em Paris, mantinha do Porto uma imagem um tanto idealizada e cristalizada no tempo. Talvez por isso, falava-me entusiasticamente dos Hermínios, como se tivessem existido há meia dúzia de anos quando, na verdade, haviam encerrado portas há meia dúzia de... décadas.

Mas creio que a maioria dos portuenses não faz ideia de que, cem anos antes de abrir o primeiro El Corte Inglés em Portugal, no Porto já havia estabelecimentos que – salvas as devidas diferenças – podemos considerar idênticos.

Os grands magasins parisienses

Na segunda metade do século XIX, o desenvolvimento industrial e a urbanização crescente de grande parte da Europa conduziram à massificação dos padrões de consumo e a uma progressiva sofisticação dos estabelecimentos comerciais. É neste contexto que surgem as grandes galerias, concentrando sob um mesmo teto diversos estabelecimentos comerciais. Os exemplos mais paradigmáticos são o Printemps, de 1865, e o Bon Marché, de 1872, os primeiros grands magasins de Paris.

Aqui, tudo se reunia num mesmo grande espaço, procurando transformar o ato de compra num momento de lazer. O cliente era convidado a circular pelas diversas secções, a aproximar-se dos produtos e a deixar-se seduzir por eles, sem a intermediação dissuasora do caixeiro. Nestes espaços modernos, já não havia lugar ao regatear tradicional, já que os preços eram fixos e expostos à vista de todos.

Secção de luvaria dos Grandes Armazéns Hermínios; foto de 1908 [Aurélio da Paz dos Reis; CPF | Porto Desaparecido]

Os Hermínios

José Maria Ferreira, natural da freguesia de Melo, em Gouveia, comerciante na rua das Flores, no Porto, no início da década de 1880, alugou um espaço à entrada da rua de Santa Catarina – no local atualmente ocupado pela Livraria Latina. Aqui, abriu uma casa de "comércio de panos em grosso e a retalho", a que deu o nome de Armazéns Hermínios. O nome seria, possivelmente, uma alusão à serra da Estrela – os antigos montes Hermínios , de onde o seu proprietário era natural.

O novo estabelecimento possuía confeção própria de roupa à medida e apresentava algumas características inovadoras em relação ao comércio envolvente: praticava o preço fixo, só vendia a dinheiro (e não a crédito) e editava regularmente catálogos dos seus produtos que enviava pelo correio a todos os clientes. Para além disso, como noticiava o jornal A Província em 1885, "o sistema adotado de vender todos os seus artigos com um lucro reduzido é, sem dúvida, uma das causas que contribui para o rápido desenvolvimento das suas operações". Ou seja, as economias de escala permitiram-lhe praticar preços inferiores à concorrência.

Perante o sucesso deste modelo, na década seguinte, José Maria Ferreira decidiu dar um passo em frente: criou uma sociedade – da qual fizeram parte, entre outros, o capitalista Henrique Burnay – com o objetivo de abrir, no Porto, uma grande galeria, do tipo parisiense.

Planta dos Grandes Armazéns Hermínios, com entradas pela rua de Sá da Bandeira e pela rua de Santo António/31 de Janeiro; planta de c.1915 [CMP, Arquivo Histórico Municipal

Apresentando-se como "o mais vasto e elegante estabelecimento da Península", a 1 de julho de 1893, abriram as portas os Grandes Armazéns Hermínios, ocupando uma vasta galeria que ligava as ruas de Santo António (hoje, 31 de Janeiro) e de Sá da Bandeira.

Anúncio dos Grandes Armazéns Hermínios; anúncio de 1898 [restosdecoleccao.blogspot.com | Porto Desaparecido]

Erguido sobre as ruínas do tristemente célebre Teatro Baquet, completamente consumido pelas chamas em 1888 – um dia, contarei aqui esta tragédia –, os Grandes Armazéns Hermínios anunciavam-se como o local "que mais barato vende", tendo "43 estabelecimentos dentro do mesmo prédio" e onde "ricos e pobres encontram tudo o que carecem para arranjo da casa e vestuário".

Entrada dos Grandes Armazéns Hermínios pela rua de Santo António/31 de Janeiro; foto de 1908 [Aurélio da Paz dos Reis; CPF | Porto Desaparecido]

Usando os princípios da arquitetura do ferro e do vidro, o eng.º José Isidro de Campos, autor do projeto, recorreu a um inteligente jogo de escadas e colunas, de forma a superar o desnível existente entre as duas ruas.

Interior dos Grandes Armazéns Hermínios; foto de 1908 [Aurélio da Paz dos Reis; CPF]

As diversas secções distribuíam-se por três andares, cada um com um pé direito que chegava aos sete metros, com uma grande claraboia que enchia as galerias de luz natural. À noite, o edifício era iluminado por 400 lâmpadas elétricas – uma extraordinária novidade, para a época –, possuindo ainda iluminação suplementar a gás. Enfim, tudo se conjugava para tornar agradável a deambulação, convidando ao consumo.

Interior dos Grandes Armazéns Hermínio; foto de 1908 [Aurélio da Paz dos Reis; CPF]

Entre outros departamentos, os Grandes Armazéns Hermínios tinham secções de tecidos para homem e senhora, fazendas brancas, estofos, camisaria, luvaria, miudezas, cutelaria, materiais de escritório, artigos de iluminação, louças, vidros e cristais, oleados e borrachas, perfumarias e bronzes. Possuía ainda bufete, gabinete de leitura, telefone e caixa de correio. Mil e quinhentos funcionários zelavam para que nada faltasse e que todos os clientes fossem prontamente atendidos. Que mais se poderia desejar?

Catálogo dos Grandes Armazéns Hermínios; inverno de 1911-1912 [garfadasonline.blogspot.com | Porto Desaparecido]

Mantendo a edição de um novo catálogo por cada estação do ano, os Hermínios tinham rapidamente disponíveis na sua loja do Porto as novidades surgidas em Lisboa, Paris, Londres ou Berlim, através de representantes locais, sempre atentos ao que ia saindo. Detinham o exclusivo da comercialização de algumas marcas e uma linha própria de produtos, a preços mais convidativos.

A partir de 1909, a gerência dos Hermínios tomou a iniciativa de brindar a sua seleta clientela com concertos musicais, todas as sextas-feiras. Diga-se, por curiosidade, que foi nos Hermínios que, em janeiro de 1912, os dirigentes do recém-criado Sport Comércio e Salgueiros adquiriram para o clube a primeira verdadeira bola de futebol, pela apreciável quantia de dois escudos e oitenta centavos, ou 2.800 réis, como, na época, ainda deviam estar habituados a designar. Valor conseguido através de uma coleta entre os operários da fábrica de Salgueiros, amigos e vizinhos.

Interior dos Grandes Armazéns Hermínios; foto de 1908 [Aurélio da Paz dos Reis; CPF]

Decadência

A administração central das diversas secções, com os prejuízos de umas a repercutirem-se sobre as outras, revelou-se de gestão difícil em épocas mais conturbadas. O período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a grave recessão económica que se seguiu tiveram um impacto brutal nos resultados financeiros dos Hermínios. Algumas secções foram encerradas e outras transformadas em lojas autónomas. O recurso a saldos de grandes sortidos não conseguiu inverter o processo de decadência que, alguns anos mais tarde, acabaria por levar ao encerramento dos Grandes Armazéns Hermínios.

Reverso de pires de serviço de chá da Vista Alegre, produzido em exclusivo para os Hermínios, ostentando os carimbos de ambas as instituições; foto de 2021 [Manuel de Sousa | Porto Desaparecido]

Na verdade, apesar de todo o dinamismo do burgo, a estrutura social do Porto era ainda bastante estanque. Havia consideráveis desníveis  não só de rendimento disponível, mas também de estatuto  que faziam com que o cliente burguês não quisesse frequentar o mesmo estabelecimento da exígua classe média e, muito menos, do imenso operariado. A mistura de classes era condição para a padronização dos consumos e para a uniformização da clientela, pressuposto de base para o funcionamento destes grandes estabelecimentos.

Se, em momentos de expansão económica, as contas se conseguiram equilibraraos primeiros sinais de retração económica, o modelo revelou todas as suas fragilidades. E, não havendo no Porto uma clientela burguesa em número suficiente para, por si só, suportar os "grandes armazéns", estes estavam condenados a prazo. O que se passou com os Hermínios, passou-se também com os Grandes Armazéns Nascimento, na esquina de Santa Catarina com Passos Manuel.

Os pressupostos básicos que garantissem a prosperidade das grandes superfícies só se verificaram no Porto (e em Portugal) bastante mais tarde, quando assistimos ao aparecimento dos primeiros centros comerciais, na década de 1970, dos hipermercados, na década de 1980 e dos chamados shoppings, na década de 1990. Mas, mesmo assim, o primeiro estabelecimento semelhante aos Grandes Armazéns Hermínios ou aos Grandes Armazéns Nascimento, só abriu no Grande Porto no início do século XXI, em Vila Nova de Gaia, pertencente à cadeia espanhola El Corte Inglés, criada em 1940, na calle Preciados, em Madrid.

A fachada dos Hermínios voltada para a rua de 31 de Janeiro, números 75 a 83, é hoje ocupada por um prédio erguido pela Caixa Geral de Depósitos  mas que, atualmente, não sei a quem pertence nem que função tem , enquanto a antiga entrada de Sá da Bandeira é hoje o hotel Teatro, uma unidade hoteleira que foi buscar inspiração para o seu nome ao antigo Baquet.

Edifícios que ocupam atualmente o local dos antigos Hermínios: em 31 de Janeiro (à esquerda) e em Sá da Bandeira (à direita); foto de 2021 [Manuel de Sousa]

Espero que este pequeno artigo tenha ajudado o(a) leitor(a) a conhecer melhor este episódio da história do comércio do Porto. Termino com um apelo a que se estude mais e melhor estas antigas grandes superfícies do Porto. Os Grandes Armazéns Hermínios ou os Grandes Armazéns Nascimento seriam excelentes temas para uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutoramento nas áreas da História, da Arquitetura, da Geografia ou da Economia. Há, ainda, pouco trabalho realizado. E, tanto eu como o(a) prezado(a) leitor(a), queremos saber mais!

Por agora, é tudo. Continue a acompanhar este blogue. Até à próxima!

Para saber mais:
  • ALVES, J.R. (1995). Armazéns do Anjo: Uma história de comércio a retalho. O Tripeiro, 7.ª série, ano 14, n.º 11 (novembro), pp. 336-343 [disponível online].
  • BRANCO, L.A. (2009). Lojas do Porto. Porto: Edições Afrontamento, 2 vols. [compre online].
  • DIAS, M. (2001). O futebol no Porto. Porto: Campo das Letras [compre online].
  • MARÇAL, H. (1964). A rua de Santo António (parte 1). O Tripeiro, 6.ª série, ano 4, número 9 (setembro), pp. 297-304.
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].

Comentários

  1. Artigo muito interessante, obrigada pela partilha.

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  2. Obrigado pela partilha da história do Porto. Excelente trabalho.

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  3. Artigo formidável, ainda por cima, a abertura dos Armazéns Hermínios processa-se na mesma época em que a minha bisavó materna se instala no número 5 da rua da Assumpção, em frente às escadas que dão acesso à Torre dos Clérigos, com um negócio de venda de louças. Espero que verta todos os seus artigos em livro, estarei na linha frente para o comprar.

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  4. Por lapso, não domino as técnicas da Internet, não me identifiquei, antigo funcionário do Hospital de Santo António, Jorge Mesquita.

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  5. Artigo mto interessante, que nos revela um Porto desconhecido. Mto trabalho de pesquisa por trás, mas que resultou muito bem. Parabéns.

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  6. Bastante interessante. Obrigado por nos dar a conhecer este Porto desconhecido.

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  7. Excelente artigo os meus parabéns, por divulgar a história da grande cidade invicta olvidada por muitos desconhecida pela maioria.

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