Batalha: no centro do turbilhão político

Local de teatros, cinemas, hotéis e cafés, a praça da Batalha foi também centro de debate político e de manifestações, polo de oposição, conspiração e rebelião, chegando mesmo à luta armada. Venha conhecer alguns episódios de convulsões sociais e políticas vividos na Batalha.

Manuel de Sousa

Caro(a) leitor(a), depois de ter escrito sobre a fisionomia, as origens, a evolução urbanística, as salas de espetáculo, as hospedarias e os hotéis, os botequins e os cafés, queria terminar este ciclo da Batalha, com um artigo dedicado ao facto desta praça, desde o final do século XIX, ter estado no centro do turbilhão político do Porto, já que por aqui passaram alguns dos conflitos mais marcantes da história da cidade e do País.

Começaria por lembrar que nós, portugueses, temos de nós próprios a imagem de um povo de brandos costumes. Miguel Torga (1907-1995) resumiu, de forma seminal, esta nossa maneira de ser:

"É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos, socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados".

Ou seja, podemos até discordar veementemente de uma dada situação, mas, no final, comemos e calamos. No entanto, mesmo admitindo que assim seja – que os portugueses são mansos por natureza – só lhe posso dizer que isso nem sempre assim foi. Aos nossos conterrâneos de há cem ou duzentos anos, rapidamente lhes subia a mostarda ao nariz. Pegavam em armas e estavam dispostos a matar e a morrer para fazer vingar os seus pontos de vista. Para não irmos mais longe, basta lembrarmo-nos da Guerra Civil de 1828-1834, que opôs liberais a absolutistas e do rol de pequenos conflitos que se seguiram.

A desejada implantação da república

Como o tema é a praça da Batalha, proponho um salto no tempo até à manhã do dia do 31 de janeiro de 1891, quando se deu a primeira tentativa de implantação da república em Portugal. Nesse dia, a praça da Batalha foi o objetivo não alcançado da revolta.

Tendo, manhã cedo, tomado o edifício da Câmara Municipal e proclamado a república, os revoltosos, acompanhados por uma grande multidão, começaram a subir a rua de Santo António (depois, de 31 de Janeiro) em direção à praça da Batalha. O objetivo era chegar ao palacete da Batalha onde estavam instalados os Correios para dar a conhecer ao resto do País, através do telégrafo, o que tinha acabado de acontecer, intimando a família real a procurar exílio no estrangeiro.

Multidão concentrada nas antigas escadas da igreja de Santo Ildefonso, no local onde a guarda municipal estava posicionada na manhã de 31 de janeiro de 1891, foto de 1907 [Joshua Benoliel, AML | Porto Desaparecido]

No entanto, como já vimos noutra ocasião, o caminho foi-lhes barrado pela guarda municipal. Colocada no cimo da rua de Santo António, nas escadas que davam acesso à igreja de Santo Ildefonso, dispararam cargas sucessivas de fuzilaria sobre a multidão. Poucas horas volvidas, a ordem foi restabelecida. O País teria de esperar quase duas décadas até que a república fosse finalmente implantada, em Lisboa, a 5 de outubro de 1910.

O desejado retorno da monarquia

No entanto, a implantação da república, em 1910, não foi consensualmente aceite. Certas franjas da população e dos próprios militares, alimentaram a ideia de uma rápida restauração da monarquia em Portugal.

Aproveitando a situação de instabilidade vivida no País após o assassinato do presidente da República Sidónio Pais, os monárquicos, liderados por Henrique de Paiva Couceiro – conceituado militar, conhecido pelas suas campanhas de ocupação colonial em Angola e Moçambique –, proclamaram a restauração da monarquia no Porto, a 19 de janeiro de 1919. Primeiro no Monte Pedral, perante as tropas, e, pouco depois, da varanda do edifício do governo civil, para toda a população. Foi neste edifício, a dois passos da praça da Batalha, que passou a funcionar a sede da recém-constituída Junta Governativa do Reino de Portugal.

A revolta monárquica estendeu-se a grande parte do Norte, mas falhou em Lisboa. No Porto, os republicanos foram perseguidos e presos, utilizando os trauliteiros (termo, algo depreciativo, dado aos apoiantes desta intentona monárquica) o Éden-Teatro, também nas imediações da Batalha, como cárcere e local de interrogatórios. Papel importante nesta intentona teve, também, o Hotel Universal, na Batalha, e o seu dono, Alberto Ramires.

Grupo de trauliteiros, 1919 [Ilustração Portuguesa | Hemeroteca Digital]

Aquela que ficou conhecida como a Monarquia do Norte durou apenas vinte e cinco dias (por isso, também conhecida como monarquia do quarteirão), caindo a 13 de fevereiro, com a entrada no Porto das tropas fiéis à república. Saldo: treze mortos e dezenas de feridos.

O desejado retorno da Primeira República

Apesar de restabelecida, a república continuou a viver períodos de grande instabilidade política, graves dificuldades económicas e crescente descontentamento social. De tal forma que, a 28 de maio de 1926, eclodiu um golpe militar em Braga que rapidamente se estendeu a todo o País, pondo fim à Primeira República e instaurando uma ditadura militar, a que todo o país se submeteu.

No entanto, nem todos se conformaram com a imposição de uma ditadura. Em fevereiro de 1927, eclodiu no Porto uma rebelião que constituiu a primeira tentativa consequente de derrube da ditadura militar que então se consolidava em Portugal, integrada num movimento mais amplo, conhecido como Reviralho. E o centro da resistência foi, precisamente, a praça da Batalha. Programada para ocorrer aquando das comemorações do 31 de Janeiro, hesitações entre os conspiradores acabaram por atrasá-la para as 4h30 da madrugada de 3 de fevereiro de 1927.

As forças dos revoltosos dirigiram-se para a praça da Batalha, estabelecendo o seu quartel-general no teatro de São João.

A praça foi rapidamente fortificada. Nos seus acessos, levantou-se o pavimento, abriram-se trincheiras, montaram-se metralhadoras e peças de artilharia. Na confluência da praça com a rua de Entreparedes, foram instaladas duas peças de artilharia; outras duas na rua de Alexandre Herculano; na esquina do hospital da Ordem do Terço, foi montada mais uma, voltada para a rua do Cativo; na entrada das ruas de Cimo de Vila e da Madeira, foi aberta uma trincheira e colocada uma metralhadora. Para completar o perímetro defensivo, na bifurcação da rua de 31 de Janeiro com a rua de Santa Catarina, foi estrategicamente colocada outra metralhadora, impedindo qualquer progressão naquelas ruas. A mortandade que causou foi tal que esta posição passou a ser conhecida como a trincheira da morte.

A trincheira da morte, 1927 [Porto Desaparecido]

No entanto, para vingar a nível nacional, revolta idêntica deveria eclodir simultaneamente em Lisboa. O que não aconteceu. Tal permitiu ao governo concentrar todas as suas forças no combate aos sublevados do Porto. Com bombardeamentos incessantes a partir da Serra do Pilar, montou-se um cerco aos revoltosos, envolvendo a praça da Batalha num anel de fogo e metralha. No reduto da Batalha, os revoltosos resistiram heroicamente até à última bala. Esgotadas as munições e sem mais opções, acabam por se render às três horas da madrugada do dia 8 de fevereiro. Pelas oito e meia da manhã, as tropas governamentais entravam triunfantes na praça da Batalha.

Durante os cinco dias que durou a revolta no Porto perderam a vida mais de cem pessoas, entre militares e civis, tendo-se registado mais de 360 feridos. No final dos confrontos, nas imediações da Batalha, muitos cavalos mortos testemunhavam a ferocidade dos combates. Os estragos causados pelos bombardeamentos e tiroteios foram grandes, com muitos edifícios públicos e privados danificados. O café Chave d'Ouro foi um deles. 

Mudam-se os tempos, perdura o inconformismo 

A ditadura militar deu lugar ao Estado Novo de António de Oliveira Salazar. No Porto, o Movimento de Unidade Democrática (MUD) – organização política de oposição – realizou comícios, desfiles e manifestações que incluíram passagens pela praça da Batalha. Como já vimos, o café Leão d'Ouro foi local de reunião de alguns dos seus dirigentes. Por toda a cidade, houve grandes manifestações de apoio às candidaturas à presidência dos oposicionistas Norton de Matos (em 1948-1949) e Humberto Delgado (em 1958).

Concentração organizada pelo MUD, 1945 [casacomum.net | Porto Desaparecido]

A praça da Batalha continuou a ser local de concentração popular no período de ebulição política que se seguiu à Revolução de 25 de Abril de 1974. Mais recentemente, em 2011, a praça da Batalha foi o polo de confluência das manifestações da Geração à rasca e, em 2013, do movimento Que se lixe a Troika

Manifestações "Geração à rasca", 2011 [TVI e RTP]

Tal demonstra que continua viva a característica da Batalha enquanto local privilegiado para a expressão popular de cariz contestatário. Veremos o que o futuro nos reserva!

Se ainda não o fez, convido-o(a) a ler os diversos artigos que dediquei à praça da Batalha:

Bom, hoje ficamos por aqui. Continue a acompanhar-nos nesta descoberta das muitas cidades que cabem dentro da nossa cidade do Porto! Até à próxima!

Para saber mais:

  • COIMBRA, A.F. (2000). Paiva Couceiro e a contra-revolução monárquica (1910-1919). Braga: Universidade do Minho [disponível online].
  • CRUZ, M.A. (2010). O golpe de 31 de janeiro de 1891: Uma ousadia breve? Revista da Faculdade de Letras - História. Porto, 3.ª série, vol. 11, pp. 11-31 [disponível online].
  • FARINHA, L. (1998). O Reviralho: revoltas republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940. Lisboa: Editorial Estampa [compre online].
  • MARTINS, R. (2008). A Monarquia do Norte. Lisboa: Bonecos Rebeldes, 2 vols [compre online].
  • OLIVEIRA, M.N.S. (2018). Crise e protesto no Portugal austeritário (2008 a 2012): a participação dos jovens portugueses no Movimento da Geração à Rasca e no Que se Lixe a Troika. Lisboa: ISCTE [disponível online].
  • SILVA, H. M. (2008). Monarquia do Norte 1919. Matosinhos: Quidnovi – Editora e Distri-buidora [compre online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].
  • TENGARINHA, J. (1994), Os caminhos da unidade democrática contra o Estado Novo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra [disponível online].

Comentários

Artigos mais populares:

Ponte Luís I: história de uma obra única

Santa Catarina: da rua Formosa ao Marquês

Santa Catarina: da Batalha à rua Formosa

A fascinante história da expansão da Boavista

Serra do Pilar: mosteiro, morro e aqueduto