Batalha: dos teatros aos cinemas

Desde os finais do século XVIII que várias casas de espetáculo do Porto se foram fixando na praça da Batalha. Primeiro, foi o teatro e, especialmente, a ópera a despertar as mais arrebatadas paixões dos portuenses aficionados do bel canto. Depois veio o cinema, que arrastou multidões ávidas de assistirem às mais recentes películas, nomeadamente na própria sala que ostenta o nome da praça: o Batalha. Venha conhecer mais uma faceta da vida desta praça emblemática do Porto! 

Manuel de Sousa

Caro(a) leitor(a), vimos anteriormente que a praça da Batalha tem uma forte tradição na vida boémia do Porto. E isto está muito relacionado com o facto de, desde o final do século XVIII, a Batalha ter sido o local privilegiado para a fixação de algumas das principais salas de espetáculo da cidade.

Real Teatro de São João, c.1900 [Ed. Alberto Ferreira | Porto Desaparecido]

Tudo começou com o teatro de São João, de que já falámos, que veio substituir o do Corpo da Guarda, criado em 1760, por João de Almada e Melo, nas cocheiras adaptadas do palacete do duque de Lafões que, na altura, pertencia à sua família. Apesar da precariedade deste primeiro espaço, aqui atuou Luísa Todi, a mais célebre meio-soprano portuguesa, fugindo da ordem do marquês de Pombal que proibia as mulheres de cantarem ópera em Lisboa. Pelo Porto andou, entre 1772 e 1777, quando partiu para Londres para uma carreira internacional. Já nada resta deste edifício, que ficava onde atualmente passa a avenida de D. Afonso Henriques, mais conhecida como avenida da Ponte.

Inaugurado em 1798, o São João acumulou as funções de ópera e teatro. Recebeu o título de Real em 1834, concedido por D. Pedro IV, equiparando-o ao Real Teatro de São Carlos, em Lisboa. Como os monarcas poucas vezes visitavam o São João, sempre que se realizava qualquer acontecimento relacionado com a família real, à falta dos próprios, eram colocados os retratos do rei e da rainha na tribuna real.

Anualmente, era aberto um concurso para adjudicação das temporadas de ópera e de teatro. Os empresários das companhias líricas que aqui atuavam eram, na sua maioria, italianos: Francesco Nicolini (1816-1822), José Domingos Lombardi (1834-1838), Angelo Alba (1850-1854), entre outros. Dominavam as óperas de Rossini, Verdi, Bellini e Donizetti. Só a partir de 1890, começaram a aparecer óperas dos franceses Bizet e Massenet e do alemão Wagner.

Cartaz de uma companhia dramática italiana no Real Teatro de São João, 1907 [portoarc.blogspot.pt | Porto Desaparecido]

Guerras de prima-donas

Ao contrário do que acontece nos dias de hoje, quando tratava de exprimir os seus sentimentos, o público do São João era particularmente efusivo, dentro e fora da sala de espetáculos. Tornaram-se célebres as disputas entre os partidários das prima-donas Adèle Dabedeille e Clara Belloni – Camilo Castelo Branco, por exemplo, defendia acerrimamente a segunda – que, começando com trocas de insultos, frequentemente degeneravam em cenas de pugilato entre os contendores. A 2 de maio de 1852, a meio-soprano Luigia Abbadia sofreu uma violenta pateada que degenerou em tumulto, tão grave que levou ao encerramento do São João por vários dias. E não podemos dizer que estes incidentes fossem propriamente raros...

Vejamos como Artur de Magalhães Basto, no seu O Porto do romantismo, descreve uma noite de ópera no São João, em meados do século XIX:

"A sala enchia-se a transbordar de uma multidão expansiva e animada. A 'corja do Guichard', como dizia o irado burguês, não podia faltar, barulhenta e aguerrida, pronta a defender a sua dama, nas célebres guerras de atrizes que tanto deram que falar.

O espetáculo começa e vai decorrendo numa atmosfera pouco tranquilizadora. Rebentam as primeiras palmas, estruge uma formidável pateada. Há bravos e assobios. Corre o pano. Chamados os artistas, estes aparecem no proscénio. A balbúrdia cresce. A pateada torna-se infernal. Os atores investem contra o público. Martelos, cabos de vassouras, tacão, goelas, tudo que faça barulho é posto em movimento. No ar esvoaçam pombas brancas e rodopiam bengalas e mocas e, por vezes, luzem punhais. Partem-se cadeiras inocentes e cabeças apopléticas. Os artistas são enxovalhados. A chinfrineira é indescritível, os destroços na mobília avultados e o sangue a escorrer das testas abundante... Resultado: as autoridades ordenam o encerramento do teatro por alguns dias."

Comportamentos que nós hoje, sem tirar nem pôr, apelidaríamos de puro hooliganismo!

Mas o São João também foi cenário de grandes amores. Júlio Dinis, no seu romance Uma família inglesa: cenas da vida do Porto, faz-nos um vivo retrato da folia desvairada da cidade por alturas do Carnaval. Como o(a) estimado(a) leitor(a) estará lembrado(a), foi num grandioso baile carnavalesco no São João, na noite de 19 de fevereiro de 1855, que tudo aconteceu. Pagos os 12 vinténs do ingresso e, uma vez lá dentro, asfixiava-se, tanta era a concentração de gente. Foi no meio da animação generalizada que Carlos conheceu uma misteriosa rapariga disfarçada de dominó. Acabou por descobrir que era Cecília, filha do humilde guarda-livros de seu pai, o grande empresário Richard Whitestone. Não obstante todas as dificuldades que se lhes depararam, o amor entre eles cresceu inexoravelmente. O enredo é precioso e tem um final feliz!

Fachada do Real Teatro de São João após o incêndio de 1908 [restosdecoleccao.blogspot.com | Porto Desaparecido]

Bem menos feliz foi a sorte do teatro. Em 1908, o São João acabou por sofrer um violento incêndio – felizmente sem vítimas a registar! – que deixou o teatro em ruínas, num estado irrecuperável.

No entanto, volvida uma dúzia de anos, um novo e mais monumental São João abriu portas em 1920, com projeto do arq.º José Marques da Silva. Continuou a acolher ópera e teatro, se bem que, a partir de 1932, passou a funcionar também como cinema.

Em 1992, foi adquirido pelo Estado português, tornando-se Teatro Nacional. Três anos depois, o São João foi objeto de profundas obras de restauro, a cargo do arq.º João Carreira. O conforto foi melhorado e a lotação do espaço reduzida de 1260 para 850 pessoas. Em 2012, foi classificado como monumento nacional.

Teatro de São João, c.1925 [Porto Desaparecido]

Muito próximo do São João, embora já fora da praça da Batalha, existiu um parque de diversões – o Parque das Camélias – que também teve sessões de cinema. Na vizinha rua de Alexandre Herculano, houve também uma sala de espetáculos, inaugurada em 1885, como Teatro dos Recreios. Mais tarde, alterou o nome para D. Afonso e, por último, para Éden Teatro. Ficou conhecido por ter desempenhou um papel sinistro na chamada Monarquia do Norte, em 1919. Passou a cinema durante a década de 1930, acabando por ser demolido em 1948. Neste local, está agora um desinteressante bloco de escritórios, chamado edifício Alexandre Herculano, com uma pequena galeria comercial no piso térreo.

Éden Teatro, na rua de Alexandre Herculano, c.1910 [Le Temps Perdu | Porto Desaparecido]

Mas, por ordem de antiguidade, após o São João, o mais antigo na praça da Batalha, propriamente dita, era o Águia d'Ouro. Já existia como botequim e como hospedaria quando, em 1899, abriu também como casa de espetáculos, com a designação de Teatro-Circo High Life da Águia d'Ouro. Fundado por João Batista de Carvalho, segundo projeto do eng.º Henrique de Carvalho Assunção, tinha uma lotação total de 1250 lugares (plateia: 600, geral: 350, frisas e 60 camarotes).

Fachada primitiva do Águia d'Ouro, c.1900 [Porto Desaparecido]

Aqui se realizaram concertos populares, nomeadamente os organizados por Bernardo Moreira de Sá – avô da pianista e professora Helena Sá e Costa – em 1900, reunindo peças de Beethoven, Mendelssohn, Borodin, Wagner, entre outros. Recebeu, também, espetáculos de circo e, para gáudio geral, em 1907 acolheu as primeiras sessões do cinematógrafo, com um aparelho de projeção importando de França, da Casa Lumière. No ano seguinte, apresentou a novidade do cinematógrafo falante, com atores por trás da tela a lerem as falas. O sucesso foi, no entanto, modesto...

Concerto no Águia d'Ouro, 1900 [Aurélio da Paz dos Reis; CPF | Porto Desaparecido]

Procurando retirar benefícios do desaparecimento momentâneo do São João, em 1909, o Águia d'Ouro passou a contratar várias companhias italianas para ciclos de ópera que incluíram a Tosca Madama Butterfly. Mas, poucos anos volvidos, a aposta no cinema começou a ser cada vez mais forte...

O Águia d'Ouro, com a sua nova fachada, à esquerda, e o Cinema Batalha (inicialmente chamado High-Life), à direita, 1931 [Porto Desaparecido]

Do mudo ao sonoro

Em 1928, realizaram-se grandes obras que alteraram completamente a fachada do Águia d'Ouro. No interior, os camarotes deram lugar ao balcão, mais consentâneo com o cinema. Em 1930, o Águia d'Ouro foi a primeira sala do Porto onde foi exibido o primeiro filme verdadeiramente sonoro The Jazz Singer de Al Jolson, com enorme sucesso. Pouco depois, adotou o nome "Cine Águia d'Ouro". Em 1932, o arq.º Cassino Branco assinou uma nova intervenção que retirou os pilares que se encontravam na plateia, melhorando a visão do cinema.

Cartaz do The Jazz Singer, o primeiro filme sonoro de longa-metragem, 1927 [Wikimedia Commons]

A sala continuou a projetar películas durante décadas, até encerrar em 1989. Após vários anos do mais completo abandono, o edifício sofreu obras profundíssimas – que mantiveram apenas a sua fachada –, reabrindo como hotel em 2011.

Praticamente ao lado, em 1908, abriu uma sala de projeção de cinema com o nome inicialmente usado pelo Águia d'Ouro: High-Life. Estava ligado às primeira sessões públicas regulares de cinema de que há registo na cidade. Ocorreram no verão de 1906, na rotunda da Boavista, durante a feira de São Miguel, num barracão de madeira e zinco que ostentava o pomposo nome de Salão High-Life! Dois meses mais tarde, o High-Life transferiu-se para o jardim da Cordoaria, onde se quedou por dois anos, passando, no início de 1908, a assentar arraiais na praça da Batalha.

Vai no Batalha!

O Salão High-Life foi ocupar um terreno que ficava no gaveto entre o antigo largo de Santo Ildefonso e a praça da Batalha, no local onde anteriormente se erguia um excêntrico edifício comercial, no qual estavam instalados os escritórios e o depósito de materiais de construção e sanitários da empresa "A Construtora", da qual era sócio Francisco Xavier Esteves, considerado o introdutor do betão armado nas construções civis em Portugal e que foi o autor do projeto da Livraria Lello.

Interior do cinema Batalha, 1947 [restosdecoleccao.blogspot.com | Porto Desaparecido]

Em 1913, o Salão High-Life adotou a designação de Cinema Batalha. Com projeto do arq.º Artur Andrade, em 1947 foi inaugurado o novo Cinema Batalha que se tornou emblemático em todo o conjunto da praça homónima, funcionando como elemento de ligação entre os dois espaços que sempre a caracterizaram. Era constituído por dois auditórios, um com capacidade para 950 lugares sentados (plateia: 346, tribuna: 222, balcão: 382) e outro para apenas 135 pessoas, a chamada Sala Bebé.

Cinema Batalha, 1990 [SIPA | Porto Desaparecido]

Este espaço, para além de ser central nesta praça, adquiriu uma grande importância, do ponto de vista simbólico, para a identidade portuense. Exemplo disto é a expressão típica do linguajar portuense "Vai no Batalha!" – usada quando além não acredita no que lhe estão a dizer ou acha que é do domínio da fantasia.

Encerrado durante décadas, o edifício degradou-se profundamente. Atualmente, decorrem profundas obras e anuncia-se a reabertura deste espaço para 2022, com o promissor nome de "Batalha Centro de Cinema". Todos esperamos que a reabertura deste espaço traga um novo fôlego à Batalha que lhe permita recuperar o seu lugar histórico como importante polo cultural do Porto.

São os meus votos e – tenho a certeza – são também os votos do(a) estimado(a) leitor(a). Voltarei ainda à Batalha para lhe falar das hospedarias e dos hotéis, dos botequins e dos cafés e dos confrontos políticos que aqui aconteceram. Fique bem!

Gostou deste artigo? Leia, também, os outros artigos dedicados à praça da Batalha:

Para saber mais:

  • AA.VV. (1995). Boletim IPPAR: Teatro Nacional São João. Porto: Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico.
  • ANDRADE, S.C. (2001) O Porto na história do cinema. Porto: Porto Editora.
  • BASTO, A.M. (2010). O Porto do romantismo (2.ª ed.) Porto: Caminhos Romanos.
  • CARNEIRO, L.S. (2010) A estranheza da estípite: Marques da Silva e o(s) teatro(s) de S. João. Porto: Fundação Marques da Silva.
  • CONDE, A.A.A. (2017). Luísa Todi: A diva que encantou a Europa e as suas raízes vila-realenses. Revista Tellus, n.º 67, pp. 35-56 [disponível online].
  • DINIS, J. [1868]. Uma família inglesa. Porto: Porto Editora. Biblioteca Digital, col. Clássicos da Literatura Portuguesa [disponível online].
  • FERREIRA, D. (2018). Cinema Batalha: Memória, conhecimento e inovação. Proposta de um sistema dinâmico. Porto: FBAUP [disponível online].
  • MARÇAL, H. (1958). A praça da Batalha I. O Tripeiro, 5.ª série, ano XIII, número 9 (janeiro), pp. 272-276.
  • SILVA, I.J. (2012). Ex nihilo nihil fit: O Cinema Batalha. A Obra Nasce, n.º 7, pp. 27-44 [disponível online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros.
  • VILAS-BOAS, G. & CUNHA, M.P. (2018). O palco e a cidade: Teatro no Porto 1850-1950. Porto: Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa [disponível online].

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