Casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre

Numa cidade tradicionalmente arredia à nobreza e, por inerência, à realeza, o casamento do rei D. João I com a inglesa D. Filipa de Lencastre foi um acontecimento ímpar na história do Porto. Vamos conhecer como as pretensões à coroa de Castela de um inglês, nascido no que é hoje a Bélgica, acabaram por estar na origem da mais antiga aliança política do mundo. Venha viajar no tempo até ao Porto do século XIV.

Manuel de Sousa

Painel de azulejos da estação de São Bento [Peter K Burian | Wikimedia Commons]

Era uma vez, numa cidade da Flandres...

Começamos a nossa história de hoje em Gante (Gent, em neerlandês). Nesta cidade flamenga, a 6 de março de 1340, Filipa de Hainault (1314-1369), esposa do rei Eduardo III de Inglaterra (1312-1377), deu à luz um rapaz – o sexto de um total de doze filhos do casal – que, pelo local de nascimento, ficou conhecido como João de Gante (John of Gaunt, em inglês). Tendo completado 19 anos, João casou-se com uma prima, de seu nome Branca (1345-1368?), filha do primeiro duque de Lencastre. No ano seguinte, nasceu Filipa (1360-1415), a primeira filha de ambos, a que se seguiram mais seis filhos. Branca faleceu ainda jovem, possivelmente vitimada pela Peste Negra.

Cumprido o necessário luto, em 1371, João de Gante casou, em segundas núpcias, com Constança (1354-1394), filha do rei Pedro I de Castela (1350-1369) e neta de Afonso XI de Castela e de Maria de Portugal – a conhecida "formosíssima Maria", como lhe chamou Camões.

As numerosas atrocidades que cometeu durante o seu reinado, valeram a Pedro I o cognome de o Cruel. Mas, como "quem com ferros mata, com ferros morre" – como diz o povo –, Pedro acabou por ser assassinado pelo seu meio-irmão Henrique de Trastâmara (1334-1379) que o substituiu no trono como Henrique II de Castela, primeiro rei da dinastia dos Trastâmara.

À primeira mulher, João de Gante foi buscar o título de duque de Lencastre, tornando-se num dos homens mais ricos de Inglaterra. No entanto, sem possibilidade de ascender ao trono inglês, o duque passou a reivindicar o trono de Castela jure uxoris, ou seja, por direito da segunda esposa, Constança, que, pela morte do pai, teria passado a legítima herdeira ao trono castelhano. Ostentando as armas de Castela e Leão, o duque de Lencastre reuniu à sua volta uma pequena corte de castelhanos descontentes, refugiados em Inglaterra. Assinando toda a documentação como "Yo, el Rey", junto dos nobres ingleses, o duque passou a insistir que o tratassem por "My Lord of Spain". 

Mas, para concretizar as suas pretensões, João de Gante necessitava desesperadamente de aliados na Península Ibérica. E é aí que entra Portugal!

Tagilde ou o início de uma longa aliança

A 10 de julho de 1372, na igreja de São Salvador de Tagilde, em Vizela, delegados do duque de Lencastre assinaram com o rei de Portugal, D. Fernando (1367-1383), aquilo que é considerado o primeiro fundamento jurídico do futuro tratado de aliança luso-britânica que se mantém em vigor até hoje. Neste documento, em suma, Portugal comprometeu-se a ajudar João de Gante a conquistar a coroa de Castela, derrotando Henrique II.

Poucos anos depois, Henrique II faleceu e o trono castelhano passou para o seu filho, João I de Castela (1358-1390). D. Fernando de Portugal – que tanto tinha de formoso como de inconstante (os dois cognomes pelos quais ficou conhecido) – acordou, pelo tratado de Salvaterra de Magos, o casamento da sua única filha e herdeira com o rei de Castela.

Falecendo o rei português, deu-se a célebre crise dinástica de 1383-1385, um período de interregno, já que muitas personalidades, tanto da nobreza, como mercadores e comerciantes, se opuseram à solução imposta pelo rei defunto que, na prática, resultaria na perda da independência de Portugal face a Castela.

Surgiram vários candidatos à coroa portuguesa, entre os quais D. João (1357-1433), mestre da Ordem de Avis, filho bastardo do rei D. Pedro I de Portugal, ou seja, meio-irmão do falecido rei D. Fernando. Por razões várias – que não será relevante estar aqui a esmiuçar –, o mestre de Avis acabou por ser aclamado rei de Portugal nas Cortes de Coimbra, reunidas naquela que é hoje conhecida como a Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra.

A batalha real

Ora, como sabemos, João I de Castela não aceitou a decisão das Cortes de Coimbra e decidiu invadir Portugal.

Batalha de Aljubarrota [Chronique d'Angleterre | Wikimedia Commons]

A 14 de agosto de 1385, nos campos de São Jorge travou-se aquela que ficaria para a história como a batalha de Aljubarrota. Apesar de possuir um exército muito superior, João I da Castela acabou por ser derrotado pelas forças de D. João I de Portugal, mercê da inteligente estratégia colocada no terreno e do apoio de 200 arqueiros ingleses que a cidade do Porto fez deslocar desde as ilhas britânicas, suportando as despesas.

Sabendo da humilhação a que o rei de Castela havia sido sujeito em Portugal e da sua posição enfraquecida, o duque de Lencastre viu aí a oportunidade de tentar fazer valer os seus direitos. Organizou uma armada e, vindo da Inglaterra, desembarcou na Corunha com cerca de cinco mil homens. Consigo vinha a pequena corte de castelhanos adversários da dinastia dos Trastâmara, bem como a sua mulher e filhas. Assentando arraiais em Ourense, João de Gante começou a preparar-se para uma grande batalha contra João I de Castela. 

A 1 de novembro de 1386, João de Gante encontrou-se pessoalmente com D. João I de Portugal, na Ponte de Mouro, em Monção. O novo rei de Portugal quis impressionar o duque e recebeu-o na luxuosa tenda que havia tomado ao rei de Castela, seu rival, em Aljubarrota. E ali mesmo foi ajustado o seu casamento com uma filha do duque. Como dote, receberia uma parte de Castela, que seria incorporada em Portugal quando João de Gante se tornasse rei do país vizinho.

A família do duque estava aos cuidados dos beneditinos, no mosteiro de São Salvador de Cela Nova, na Galiza, a curta distância do Alto Minho. No entanto, D. João I não manifestou especial interesse em conhecer nenhuma das infantas, concordando em contrair matrimónio com a mais velha, Filipa, de 27 anos. O que, pelos padrões da época, era já uma idade um pouco avançada para um primeiro casamento...

A longa espera de Filipa

O duque ordenou que Filipa fosse prontamente conduzida ao Porto, onde o casamento se haveria de celebrar. Para não se sentir sozinha, D. Filipa fez-se acompanhar da sua irmã mais nova, Joana, e de várias damas de companhia... E ainda de um bispo, um condestável, um almirante, um marechal e várias altas personalidade da corte inglesa... E ainda de cem lancheiros e mais duzentos arqueiros a cavalo!

Sé do Porto e paço episcopal (em primeiro plano, à direita) na maqueta do Porto medieval, Casa do Infante [Manuel de Sousa]

A numerosa caravana entrou no Porto pela porta do Olival (Cordoaria) "onde foi recebida com grã festa e prazer"  nas palavras do cronista Fernão Lopes. À sua espera estava já o bispo do Porto, o condestável Nuno Álvares Pereira, o alcaide-mor da cidade João Rodrigues de Sá (o Sá das Galés) e outras individualidades locais, para além de muito povo. D. Filipa recolheu ao paço episcopal  que não era o edifício atual, mas um anterior, sensivelmente no mesmo local, junto à Sé. O resto do séquito ter-se-á hospedado por diversos pontos da cidade.

Enquanto isso e sem grande pressa em conhecer a noiva, D. João I partiu para o Alentejo e depois foi até Lisboa  eventualmente visitando Inês Pires, com quem já tinha dois filhos, apesar do voto de castidade a que estava vinculado por ser mestre da Ordem de Avis. Mas, após algumas semanas, D. João I veio ao Porto e os noivos acabaram finalmente por se conhecer. Falaram na presença do bispo e trocaram presentes, após o que D. João partiu para Guimarães, deixando os dias fluir...

Sabemos que D. Filipa era loura, de olhos azuis, recatada, austera e uma crente muito fervorosa. Mas, surpreendente, Fernão Lopes não nos deixou propriamente elogios à sua beleza física. Será que D. João I não a achou atraente ou estaria aguardando o evoluir das pretensões do duque de Lencastre em Castela? Bem, o facto é que o rei foi protelando o casamento, deixando a noiva no paço episcopal do Porto à espera. D. Filipa esperou uma semana, duas semanas, três semanas, um mês, dois meses, três meses... Imagine o(a) leitor(a) como ela se deveria estar a sentir! O alongar da espera levou o duque também a impacientar-se e a pressionar o rei.

Entretanto, a 1 de fevereiro de 1387, ainda em Guimarães, os conselheiros do rei alertaram-no que se avizinhava a entrada da Quaresma, o que obrigaria o casamento a ser adiado ainda durante mais tempo, já que se considerava que trazia azar casar nesse período. Acordado repentinamente para a situação, D. João I decidiu, então, casar-se imediatamente. Cavalgou "toda a noute, em guisa que, andadas aquelas oito léguas, amanheceu el-rei na cidade" do Porto. O bispo rapidamente conduziu D. Filipa à Sé e casaram-se.

Casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre [Chronique d'Angleterre | Wikimedia Commons]

A bênção, a boda e a consumação

Normalmente, refere-se que D. João I e D. Filipa de Lencastre casaram-se na Sé do Porto a 2 de fevereiro de 1387. No entanto, o que aconteceu foi que, terminada a cerimónia, foi cada um para o seu lado: D. Filipa regressou ao paço episcopal, onde tinha estado nos últimos três meses; enquanto D. João se recolheu no convento de São Francisco.

Para entendermos isto, temos que ter presente os preceitos da doutrina canónica. Na época, um casamento real constava de três partes: as bênçãos, a boda e a consumação. O que aconteceu na Sé naquele dia foram apenas as bênçãos. Ou seja, tão-somente o início do processo.

Só então D. João escreveu às cidades e vilas de Portugal, dando conta do ato e convidando todos a acorrerem à cidade do Porto para a boda, que se realizaria 12 dias depois. Com um prazo tão curto para preparar um evento de tamanha magnitude, a cidade empenhou-se com "desvairados cuidados" para a boda, pelo que nos relatou Fernão Lopes. E, num abrir e fechar de olhos, abriu-se um grande terreiro entre o largo de São Domingos e a rua do Souto  ou seja, sensivelmente onde agora estão as ruas das Flores e de Mouzinho da Silveira  para jogos, justas e torneios medievais, propositadamente organizados para a celebração real.

No dia 5 de fevereiro de 1387, chegou ao Porto a esperada bula papal que libertava D. João I do voto de castidade. Podia, assim, casar-se e gerar herdeiros ao trono. Na manhã do dia 14, uma quinta-feira, el-rei e a rainha  cada um montado no seu cavalo branco  saíram lado-a-lado do paço episcopal para uma curtíssima viagem até à Sé. Aí ouviram missa, pregação e "aquelas palavras que a Santa Igreja manda que se digam em tal sacramento", como nos contou Fernão Lopes. Daí, os noivos regressaram ao palácio do bispo, para o grande banquete real. Os burgueses do Porto sentaram-se ao lado de importantes figuras das cortes portuguesa e inglesa, pois D. João I estava bem ciente de como o Porto tinha sido importante para o triunfo da sua causa. "As mesas estavam já muito guarnecidas de tudo o que lhe cumpria. O mestre-sala da boda era Nun'Álvares Pereira, o condestável de Portugal; servidores de toalha e copa, e de outros ofícios, eram grandes fidalgos e cavaleiros". Houve, ainda, música e exibição de acrobatas, após o que todos os convivas cantaram e bailaram até à hora da ceia.

Estava, assim, cumprida a segunda parte do casamento: a boda. Faltava a última e mais importante: a consumação. Sobre isto, estimado(a) leitor(a), atente na expressiva descrição que nos deixou o conde de Vila Franca no livro D. João I e a aliança inglesa:

"O arcebispo de Braga, empunhando o báculo, e acompanhado pelos bispos e demais prelados, dirigiu-se processionalmente em toda a pompa do culto católico aos aposentos régios, afim de benzerem o leito nupcial. Precedia-os, com tochas acesas, toda a comitiva de senhores e cavaleiros, ingleses e portugueses e todos entraram na câmara [i.e., no quarto]. No entanto, seguindo praxe medieval, as senhoras casadas haviam seguido e colocado no leito a nova esposa. Também o noivo, a quem até à porta acompanhara folgazã a turba de cavaleiros velhos e moços, soltando as desregradas expressões e trocadilhos consoantes do dia, se achava já deitado. O arcebispo e os demais prelados, entrando então gravemente no aposento, rezaram sobre os noivos e os benzeram segundo costume de Inglaterra."

E Fernão Lopes remata: "e ficando el-rei com sua mulher, foram-se os outros para suas pousadas".

Assim, no seu tão adiado momento de intimidade, João e Filipa terão (presumimos nós) cumprido a terceira e última parte do casamento: a consumação. Na época, só a cópula tornava o casamento indissolúvel. Lembremo-nos que muitos casamentos eram dissolvidos invocando, precisamente, a sua não consumação. Assim, podemos dizer que D. João e D. Filipa contraíram matrimónio entre 2 e 14 de fevereiro de 1387.

Por todo o país, os festejos duraram mais de quinze dias.

Sabemos que D. João I e D. Filipa geraram um conjunto de príncipes considerados excecionais, levando Camões a apelidá-los de Ínclita Geração. E um deles terá nascido no Porto: o infante D. Henrique.

No Porto atual, para além o painel de azulejos de Jorge Colaço na estação ferroviária de São Bento, D. João I e D. Filipa de Lencastre são também homenageados na toponímia portuense, cada um com a sua praça: a de D. João I a nascente dos Aliados, e a de D. Filipa de Lencastre, a poente da mesma avenida.

Bilhete-postal da praça de D. Filipa de Lencastre, com o hotel Infante de Sagres, c.1955 [Porto Desaparecido]

E o(a) leitor(a) perguntará:  E que aconteceu a João de Gante? Sempre conseguiu ser rei de Castela?

Não. Na verdade, a ação militar de João de Gante saldou-se em fracassos sucessivos. Acabou por assinar a paz com o seu rival João I de Castela, renunciando ao trono castelhano e acordando o casamento da sua filha Catarina (1373-1418), então com 21 anos, com o filho mais velho de João I de Castela e seu herdeiro, de catorze anos, que ascendeu ao trono em 1390, como Henrique III de Castela (1379-1406).

De regresso a Inglaterra, João de Gante acabou por falecer em fevereiro de 1399, sendo sepultado na antiga catedral de São Paulo, em Londres, ao lado da sua primeira mulher, Branca de Lencastre. O duque já não chegou a presenciar o momento, mas, a 30 de setembro do mesmo ano, o seu filho Henrique (1366-1413) acabou por ascender ao trono inglês, dando início a uma nova dinastia.

Em resumo, João de Gante não assegurou para si o título de monarca, mas garantiu coroas reais para três dos seus filhos. Ao casar-se como D. João I de Portugal, a sua filha Filipa tornou-se rainha de Portugal; tendo contraído matrimónio com Henrique III de Castela, a sua filha Catarina foi rainha de Castela; e, por fim, o seu filho Henrique, acabou por ascender ao trono inglês como Henrique IV, sendo a casa de Lencastre guindada a casa real. Enfim, um pai diligente que deixou os seus filhos muito bem colocados na vida!


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Para saber mais.

  • BASTO, A.M. (1956). Um casamento sensacional no Porto. O Tripeiro, 5.ª série, ano 12, n.º 2 junho
  • GODINHO, A.L. (2005). D. João I & D. Filipa de Lencastre. Ascendência portuguesa da Casa Real, pp. 113-133 [disponível online].
  • LOPES, F. (1897) Chronica de el-rei D. João I. Lisboa: Escriptorio, Biblioteca de Clássicos Portugueses [disponível online].
  • MIRANDA, F., SEQUEIRA, J., DUARTE, L. (2010). A cidade e o mestre: Entre um rei bastardo e um príncipe perfeito. Porto: QuidNovi, col. História do Porto [compre online].
  • PINTO, V. (2017) Uma viagem aos bastidores do casamento de D. Filipa de Lencastre e D. João I. Lisboa: Livros Horizonte [compre online].
  • SILVA, G. (2011). Porto: História e memórias. Porto: Porto Editora [compre online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].
  • STILWELL, I. (2007) Filipa de Lencastre: A rainha que mudou Portugal. Lisboa: Livros Horizonte [compre online].
  • TAVARES, J.C. (1986). Um casamento régio no Porto. O Tripeiro, vol. 5, n.º 6. 162-164.
  • VILA FRANCA, C. (1950). D. João e a aliança inglesa: Investigações histórico-sociais. Lisboa: edição da família do autor.

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