Batalha: dos botequins aos cafés

No Porto, o café foi uma importante instituição que moldou o caráter e a cultura da cidade. A praça da Batalha, muito graças à concentração de salas de espetáculo, de hospedarias e de hotéis, acolhia uma série de cafés históricos, desaparecidos na voragem do tempo. Venha saber mais dos cafés da Batalha: quais eram, quem os frequentava e o que hoje sobra deles...

Manuel de Sousa

O(A) paciente leitor(a) tem-me acompanhado na descrição que tenho feito da praça da Batalha: a fisionomia, as origens, a evolução urbanística, as salas de espetáculo, as hospedarias e os hotéis. Hoje, falaremos dos botequins e cafés da Batalha.

Mas antes, uma breve referência à importância dos cafés, porventura útil para os leitores com menos de trinta anos, que sempre conviveram com telemóveis, internet e cadeias de fast-food.

Mulher tomando café, retrato de estúdio; foto de c.1900 [Foto Guedes | Arquivo Municipal do Porto]

O hábito de tomar café chegou a Portugal lá pelo século XVIII, mas a coisa só se popularizou no Porto no século seguinte, enraizando-se profundamente nas preferências populares ao longo dos séculos XIX e XX. E diria que, até aos inícios do presente século XXI, os cafés foram, no Porto, uma verdadeira instituição! Germano Silva chegou a escrever que "houve cafés nesta nossa cidade que rivalizaram com as academias e, pode mesmo dizer-se, até com a própria Universidade". Isto porque, nos cafés, discutia-se futebol, mas também política; estudava-se, mas também se namorava; tomava-se um café rápido, mas também se passava uma tarde inteira à conversa com os amigos pelo preço de um cimbalino. Frequentavam-nos estudantes, professores, advogados, caixeiros, médicos, bancários, artistas, funcionários públicos, desempregados, polícias e ladrões. Ou seja, toda a gente. Quando se conhecia alguém, em qualquer contexto, era vulgar perguntar: – Onde é que costumas parar? E parar no café X não era o mesmo que parar no café Y. Porque o café onde se parava podia definir uma inclinação político-ideológica, um estrato social, um modo de vida ou até uma preferência por um estilo musical...

A praça da Batalha não falhava a esta regra e era local de cafés históricos. Sendo que o mais antigo era o Águia d'Ouro, inaugurado há 182 anos, como nos relata o jornal O Atleta de 24 de janeiro de 1839:

"Domingo, 27 do corrente mês de janeiro, no largo de Santo Ildefonso, se abre o novo café da Águia, ao gosto moderno, onde haverá diversas bebidas com bons serviços, e neve [i.e., sorvetes] na estação competente. Na mesma casa, há todos os dias gelatina de mão de vitela e raspa de veado, própria para doentes e melhor para sãos. Também se aceitam toda a qualidade de encomendas e jantares para fora."

Para que não se pense que esta história do take-away é coisa recente, como vemos, o Águia d'Ouro já o fazia em 1839!

Na época, o café Águia d'Ouro assumiu-se como sucessor do Guichard, talvez o café oitocentista mais famoso do Porto. Localizado na praça de D. Pedro (hoje, praça da Liberdade), este botequim reunia a escol da intelectualidade portuense. Júlio Dinis e Camilo Castelo Branco, por exemplo, eram presenças assíduas. Fechou portas em 1857, tendo muitos dos seus frequentadores, subido a então rua de santo António e rumado ao então largo de Santo Ildefonso.

Camilo passou a frequentar o Águia, levando consigo muitas personalidades e usando-o nos seus romances. Escreve o romancista: "Basílio Fernandes Enxertado combinara com Dabedeille encontrarem-se no teatro de São João, no baile carnavalesco de domingo gordo, e irem dali cear salame à Águia d'Ouro". Júlio Dinis, por sua vez, em Uma família inglesa, escreve: "Águia d'Ouro, a velha confidente de quase todos os segredos políticos, particulares e artísticos desta terra".

Multidão em frente ao Águia d'Ouro, durante os festejos do carnaval; foto de 1906 [Aurélio da Paz dos Reis; CPF | Porto Desaparecido]

Homens das artes, das letras e da política encontravam-se todos no Águia d'Ouro, mas não se misturavam, sentando-se em locais predeterminados. Os homens da política – como Teófilo Braga, António Girão, Delfim Maia e Júlio Dantas – sentavam-se tipicamente à direita; enquanto os das artes e letras – como Antero de Quental, Júlio Dinis, Camilo, Arnaldo Gama e Guilherme Braga – preferiam o lado esquerdo da sala. Camilo terá passado ali muitas tardes jogando dominó. Antero de Quental, de passagem pelo Porto, alojava-se frequentemente na hospedaria da Águia d'Ouro, por cima do café. E tinha por hábito informar os seus adversários, em anúncios publicados nos jornais, que o poderiam encontrar nesse café todos os dias entre as cinco e as sete horas da tarde.

Sobre o Águia d'Ouro, com café no piso térreo e hospedaria no primeiro andar, escreve o historiador Magalhães Basto: "Uma águia coroava a tabuleta do estabelecimento, colocada sobre a fachada amarela da casa modesta. Ao nível da rua, frouxamente iluminado, era o café com o seu bilhar. No andar superior ficava a hospedaria, onde a mocidade estúrdia e folgazã se reunia frequentemente em jantares e ceias animadíssimas". 

Mas nem todos tinham uma visão positiva do espaço. O olisipógrafo Júlio César Machado, numa visita ao Porto em 1862, escreveu: "Como todos os botequins do Porto, o Águia d'Ouro é uma casa escura, antipática por fora, feia por dentro, húmida, velha, embirrante".

Anúncio publicitário do café Águia d'Ouro; anúncio de 1934 [restosdecoleccao.blogspot.com | Porto Desaparecido]

A partir do início do século XX vemos que, por influência francesa, a portuguesíssima palavra botequim vai cedendo lugar a café na designação do estabelecimento comercial que, entre outras bebidas e comidas, servia café à chávena.

Acompanhando o movimento de renovação que, em inícios da década de 1930, percorreu quase todos os cafés da cidade, também o Águia d'Ouro se modernizou. Reabriu a 7 de fevereiro de 1931, com nova fachada e um pórtico sustentando o símbolo do estabelecimento – uma grande águia dourada. No interior, mármores e espelhos revestiam as paredes. O arq.º Joaquim Augusto Martins Gaspar, discípulo de Marques da Silva, foi o autor do projeto de remodelação. No segundo piso, ficava o salão de bilhares e dos chamados jogos lícitos.

Na praça da Batalha de Oitocentos, outro local popular era o botequim conhecido como A Comuna, aberto em 1857 e frequentado por políticos contestatários, nomeadamente republicanos, socialistas e anarquistas. Encerramentos sucessivos pela polícia, acabaram por levar à fuga dos seus proprietários para o Brasil. Remodelado, o estabelecimento reabriu em 1889 com o nome Leão d'Ouro, reorientado para uma clientela mais artística e intelectual.

Entre finais do século XIX e inícios do XX, frequentavam o Leão d'Ouro personalidades ligadas ao teatro – Eduardo Brasão, Emília Eduarda –, às letras – Sampaio Bruno, António Claro, Lima Júnior, Arnaldo Leite –, às artes plásticas – Soares Lopes, Manuel Martins e António de Azevedo. Em 1934, expandiu-se para o estabelecimento contíguo e, seguindo a moda das renovações, mudou totalmente, tanto ao nível da fachada como dos interiores, que passaram a ostentar uma decoração requintada, com muitos espelhos, mármores brancos, metais dourados e mesas pequenas com tampos de vidro.

Entretanto, por essa altura, tinha também aberto um estabelecimento vizinho. Adotou o nome Chave d'Ouro e abriu as portas a 23 de dezembro de 1920, quatro anos após a inauguração do seu homónimo lisboeta. Tal como este, instalou bilhares no primeiro andar.

A Revolução de Fevereiro de 1927, na qual a praça da Batalha esteve no centro das operações, a montra do Chave d’Ouro acabou por ficar danificada. Seguindo a moda, fez obras de remodelação da fachada na década de 1930.

A vizinhança entre os cafés Leão d'Ouro e Chave d'Ouro criou uma estreita relação de cumplicidade que passou, por exemplo, pela emissão conjunta de fichas usadas indistintamente nas salas de jogos de um ou de outro café. Ostentavam a legenda "Café Chave d'Ouro e Leão d'Ouro" representando, ao centro, um leão segurando uma chave. Um excelente exemplo do que nós hoje, recorrendo ao sempre cómodo jargão inglês, chamaríamos de coopetition, ou seja, uma competição com cooperação!

Fichas usadas nas salas de jogos do Leão d'Ouro e do Chave d'Ouro [numismatas.com | Porto Desaparecido]

Para além de contarem com uma clientela fiel de empregados do comércio das redondezas, dada a proximidade do Teatro de São João, frequentavam o Chave d'Ouro e o Leão d'Ouro muitos atores da capital, em digressão pelo Norte: Chaby Pinheiro, Beatriz Costa, Amélia Rey Colaço, Teresa Gomes, António Silva, Raul de Carvalho, João Villaret, Ribeirinho e muitos outros. Nas décadas 1930 e 1940 frequentavam os dois estabelecimentos: Domingos Alvarez (pintor); Manuel Guimarães (caricaturista e realizador de cinema); Ângelo César (advogado); Cardoso do Carmo, Espregueira Mendes, Castro Henriques e Urgel Horta (médicos); bem como elementos ligados ao MUD – Movimento de Unidade Democrática, organização política de oposição ao regime salazarista. Nas décadas seguintes de 1950 e 1960, por aqui paravam Jaime Valverde e outras figuras ligaras ao TEP – Teatro Experimental do Porto.

Atriz Amélia Rey Colaço com o Augusto ao colo, fotografia tirada durante a Exposição Colonial Portuguesa, foto de 1934. Nas suas deslocações ao Porto, Amélia Rey Colaço costumava frequentar o Leão d'Ouro [Alvão | Wikimedia Commons]

Apesar da presença de muitas individualidades, desconhece-se se alguma vez o general Humberto Delgado pôs os pés nestes cafés. É, pois, falsa a informação, por vezes propalada, de que foi no Chave d'Ouro que, a 10 de maio de 1958, o general sem medo disse a célebre frase "Obviamente demito-o" quando questionado sobre o que faria ao presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, se fosse eleito presidente da República. Tal episódio histórico passou-se no café Chave d’Ouro, é verdade, mas no que ficava no Rossio, em Lisboa, não no da praça da Batalha, no Porto.

Pormenor de bilhete-postal da praça da Batalha; foto de c.1940. Da esquerda para a direita, vê-se o Leão d'Ouro original, a seguir a sua expansão efetuada em 1934 e, à direita, o prédio do Chave d'Ouro [Porto Desaparecido

Praça da Batalha; foto de 2021. Da esquerda para a direita, Tropical (antigo Leão d'Ouro original), loja de souvenirs (antiga expansão do Leão d'Ouro) e, à direita, prédio em ruínas do antigo Chave d'Ouro [Manuel de Sousa]

Como sabemos, o café Águia d'Ouro (tal como o cinema) já não existe. Deu lugar a um hotel. A sala original do Leão d'Ouro, é agora o snack-bar restaurante Tropical, que ainda funciona como tal e preserva alguns pormenores decorativos no interior. A fachada, no entanto, foi alterada. O estabelecimento contíguo ao Leão d'Ouro – e para o qual este se expandiu em 1934 – ainda mantém, nas suas linhas gerais, a fachada de cuidado desenho art déco, mas é hoje ocupado por outro tipo de comércio. O edifício do antigo café Chave d'Ouro está completamente em ruína. Fundado em 1914, o Java  muito próximo do teatro de São João e considerado o café dos atores  é o único dos cafés antigos da Batalha que ainda sobrevive.

Termino com um apontamento de humor portuense mais brejeiro: em tempos idos, contava-se que a Batalha era a praça mais rica do Porto, porque tinha o Águia d'Ouro, o Leão d'Ouro, o Chave d'Ouro e o... mijadouro!  numa alusão ao urinol então existente por baixo das escadas de acesso à igreja de Santo Ildefonso.

E pronto, caríssimo(a) leitor(a), terminamos com boa disposição! Se ainda não leu, não perca toda a série de artigos que tenho vindo a escrever, especialmente dedicada à praça da Batalha:

Para saber mais.

  • BASTO, A.M. (2010). O Porto do romantismo (2.ª ed.) Porto: Caminhos Romanos [compre online].
  • BRANCO, L.A. (2009). Lojas do Porto. Porto: Edições Afrontamento, 2 vols. [compre online].
  • CASTELO BRANCO, C. [1872]. Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado. Porto: Lello Editores [compre online].
  • COSTA, M.T.C. (2004). Os cafés do Porto. Património esquecido: O recuperar da memória. Boletim da Associação Portuguesa de Historiadores de Arte, n.º 2 (novembro). 14 pp. [disponível online].
  • DINIS, J. [1868]. Uma família inglesa. Lisboa: Editora Guerra & Paz [compre online].
  • GONÇALVES, C. & RIBEIRO, D. (2014). A arquitetura dos cafés. O Tripeiro, 7.ª série, ano 33, n.º 6 (junho), pp. 167-171.
  • GONÇALVES, C. & RIBEIRO, D. (2014). Os cafés do Porto. O Tripeiro, 7.ª série, ano 33, número 6 (junho), pp. 162-166.
  • GONÇALVES, C. & RIBEIRO, D. (2014). Os cafés do Porto e as dinâmicas sociais. O Tripeiro, 7.ª série, ano 33, n.º 8 (agosto), pp. 251-252.
  • GONÇALVES, C. & RIBEIRO, D. (2014). A vida política nos cafés. O Tripeiro, 7.ª série, ano 33, número 9 (setembro), pp. 280-281.
  • MARÇAL, H. (1958). A praça da Batalha II. O Tripeiro, 5.ª série, ano XIII, número 10 (fevereiro 1958), pp. 300-304.
  • MENDES, N.F.F. (2012). Cafés históricos do Porto. Na demanda de um património ignoto. Porto: FLUP [disponível online].
  • SILVA, G. (2005). Passeios pelo Porto de outros tempos. Cruz Quebrada: Casa das Letras [compre online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].

Comentários

  1. Tenho 71 anos e ainda me lembro dos cafés Chave d'Ouro, Aguia d'Ouro e claro, do mijadouro.
    Parabéns pela excelente descrição destas memórias.

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