Batalha: das hospedarias aos hotéis

O estabelecimento de salas de espetáculo na praça da Batalha, propiciou a fixação de pensões, albergarias, hospedarias e hotéis na praça e nas imediações. Artistas, intelectuais, cantores de ópera, atores e viajantes hospedavam-se na Batalha pela qualidade e centralidade das suas unidades hoteleiras. Venha conhecer mais pormenores desta história.

Manuel de Sousa

Já vimos que, desde a inauguração do Teatro de São João, em 1798, a praça da Batalha começou a atrair outras casas de espetáculos e, atrás delas, vieram pensões, albergarias, hospedarias e hotéis. De tal forma que, em meados do século XIX, a praça da Batalha e imediações era o local de maior concentração de estabelecimentos hoteleiros do Porto. A sua proposta de valor, como hoje diríamos em linguagem de marketing, assentava na proximidade "dos correios, telégrafos, repartições públicas e teatros".

Festejos de carnaval, em frente da primeira sede dos Fenianos, na Batalha, 1906 [Aurélio da Paz dos Reis, CPF | Porto Desaparecido]

A matriarca das estalagens portuenses

A mais famosa foi a hospedaria da Águia d'Ouro, aberta em 1852, com diárias de 800 a 1.200 réis. Aqui se hospedavam os intelectuais e artistas de teatro quando se deslocavam ao Porto – casos de Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e do célebre ator Taborda –, bem como alguns morgados durienses e transmontanos. Camilo chamou-lhe "a matriarca das estalagens portuenses".

Foi no primeiro andar deste edifício que, a 25 de março de 1904, se fundou o Clube Fenianos e aqui funcionou durante 15 anos. Na primeira reunião, ficou assente a organização do desfile do Carnaval e de outros festejos que pudessem interessar à cidade e ao comércio. Na segunda reunião, ficou decidido o nome a dar ao novo clube, o qual, por sugestão do linguista, arqueólogo e etnógrafo José Leite de Vasconcelos, ficou sendo Fenianos – invocando o movimento separatista irlandês surgido no século XIX –, mais concretamente: Clube Fenianos Portuenses.

Cartaz publicitário do carnaval organizado pelos Fenianos, 1905 [Foto Guedes; AHMP | Porto Desaparecido]

Na verdade, logo em 1905, os Fenianos organizaram as primeiras e grandiosas festas carnavalescas, maravilhando os habitantes do Porto e arredores, com fogos de artifício na praça da Batalha, em frente à sua sede. As festas carnavalescas foram interrompidas em 1910, regressando em 1939 e, mais tarde, na década de 1950, caindo depois no esquecimento...

Lado ocidental da praça da Batalha, c.1940. Da esquerda para a direita: Grande Hotel da Batalha; Estanislau/Portuense/Orfeão; Sul-Americano [AHMP | Porto Desaparecido]

Camilo, D. Gertrudes e o barão de Forrester

No século XIX, com a Águia d'Ouro rivalizava em popularidade a hospedaria do Estanislau. Ficava quase na esquina com a rua da Madeira, num prédio que, mais tarde, foi ocupado pelo Hotel Portuense, depois foi a Casa de Espanha e, a partir de 1938, o Orfeão do Porto. Era célebre a cozinha deste hotel pela sua alta qualidade, conduzida pela mão sabedora de Gertrudes Engrácia. Camilo Castelo Branco zangou-se com o barão de Forrester por este ter contratado D. Gertrudes para o seu serviço pessoal, privando o resto da população dos seus deliciosos cozinhados. Gertrudes passou a acompanhar Forrester para toda a parte, acabando por falecer com o seu patrão no tristemente célebre naufrágio do Cachão da Valeira, no Alto Douro, do qual só se salvou a Ferreirinha. O preço da diária no Estanislau variava entre os 600 e os 800 réis. 

Edifício da antiga Hospedaria Estanislau (ao centro), mais tarde Hotel Portuense (o prédio da direita já fazia parte do Hotel Sul-Americano), c.1920 [AHMP | Porto Desaparecido]

Do Sul-Americano ao Império

Ao lado, funcionou o Hotel Sul-Americano, inaugurado em 1907. Foi propriedade de Álvaro de Azevedo, emigrado no Rio Grande do Sul, Brasil, que, ao regressar a Portugal, adquiriu este estabelecimento e que, após profunda remodelação, o tornou num dos melhores da cidade do Porto.

Anúncio publicitário ao Hotel Sul-Americano, 1913 [restosdecoleccao.blogspot.com | Porto Desaparecido]

Era o preferido dos brasileiros de torna-viagem, razão pela qual toda a sua decoração foi pensada em agradar a este perfil de clientes. Exemplo foram os painéis de azulejos que decoravam o interior do hotel, representando o Alto do Corcovado, o Botafogo e  cenas da baía de Guanabara.

A revista Ilustração Portuguesa descrevia assim o hotel:

"Os quartos serviram de modelo a muitos hotéis que se alinham na categoria de luxuosos. O mobiliário, ao mesmo tempo simples e luxuoso, feito expressamente pela casa Correia de Abreu, também do Porto, é de nogueira nos quartos de primeira classe e de freixo americano, tudo em estilo inglês, nos de segunda. Luz elétrica, água e esgotos em todos eles, desde o de maior preço até o mais modesto. Em asseio, higiene e comodidade não é possível exigir mais. Eis porque o sr. Álvaro de Azevedo conseguiu firmar em bases sólidas o crédito do seu estabelecimento que, a despeito de ter sofrido há bem pouco tempo uma remodelação completa na sua instalação, se prepara para novas obras de ampliação, a que o seu proprietário se vê obrigado pelo movimento sempre crescente da sua casa."

No final de 1944, após grandes transformações exteriores e interiores, o Hotel Sul-Americano deu lugar ao Grande Hotel do Império, iniciativa do industrial Joaquim Ribeiro de Almeida. Este hotel é referido pela atriz Milú, no filme O Leão da Estrela de 1947, em mais uma mentira ao amigo portuense Simão Barata: "Já temos quartos reservados no Hotel do Império" ao que Barata responde: "Ah! É muito bom hotel..." Hoje o espaço é ocupado pelo Quality Inn Porto, de três estrelas e com 113 quartos.

Lado ocidental da praça da Batalha, c.1950 [Porto Desaparecido]

Na esquina da Batalha com a rua de Cimo de Vila, ficava o Grande Hotel da Batalha, que sofreu importantes obras de beneficiação na década de 1950. Continua, mas hoje chama-se Mercure Porto Centro Hotel.

Entrada do Grande Hotel da Batalha, na sequência de remodelação de 1937-1940, projeto do arq. José Porto [Porto Desaparecido]

No edifício onde está instalada a Messe dos Oficiais, permaneceu durante muitos anos o Hotel Universal, um dos mais procurados pelos lisboetas que se deslocavam ao Porto, até ser encerrado em 1919, pelo envolvimento dos seus proprietários na intentona da Monarquia do Norte. Tinha trens (i.e., carruagens) para ligação, em exclusivo, com a Estação Central, ou seja, a estação ferroviária de São Bento.

Hotel Universal de Ramires & C.ª, c.1910. [AHMP | Porto Desaparecido]

Aurora do Lima, Estrela do Norte, Bragança e outros hotéis

Defronte do Teatro de São João, num prédio demolido em 1924, ficava o Hotel da Nova Itália, uma homenagem à Itália reunificada em 1861. Era preferido pelas prima-donas que vinham atuar naquela célebre sala de espetáculos do Porto. Como muitos outros, possuía mesa-redonda ao preço de 360 réis. Não, não era um debate, caríssimo(a) leitor(a). Na verdade, era aquilo a que hoje se convencionou chamar um self-service.

Bilhete-postal do Hotel Continental, c.1910 [Porto Desaparecido]

Nas imediações da praça da Batalha, havia ainda o Hotel Estrela, em Cimo de Vila; o Hotel-Restaurante das Camélias, na rua de Alexandre Herculano; os hotéis Aurora do Lima e Estrela do Norte, na rua de Entreparedes – "com magníficos aposentos para famílias" –; o Hotel Bragança, com entradas pela rua de Entreparedes e pela rua de Santo Ildefonso – "dos mais antigos e conceituados do país, com mesas pequenas, quartos de banho e luz elétrica" –; o América Central, depois Residencial Aviz, na esquina da avenida de Rodrigues de Freitas (hoje, Hotel Catalonia Porto), onde também estavam o Nacional e o Continental, situado, como dizia um prospeto publicitário da época, "no ponto mais central, próximo da estação dos caminhos de ferro, correios, telégrafos e teatros, passando-lhe à porta os carros elétricos para todos os pontos da cidade".

Cartão publicitário do Hotel Bragança que tinha entrada pela rua de Entreparedes e pela rua de Santo Ildefonso, c.1895 [Porto Desaparecido]

Por fim, e porque falamos de hotéis, impõe-se um regresso à praça da Batalha para referir que o palacete da Batalha ou dos Guedes, após vicissitudes várias – tendo sido moradia de família, hospital de sangue, estação dos correios e telégrafos , acabou por ser alienado pelo Estado em 2009. Após um daqueles extreme makeovers de que a nossa cidade é pródiga, renasceu também transformado em unidade hoteleira. É o NH Collection Porto Batalha, de quatro estrelas, com cinco andares e 107 quartos, apresentando-se como hotel de charme.

Publicidade a hotéis, principalmente localizados na Batalha ou imediações, jornal Ultramar, 1934 [Hemeroteca Digital | Porto Desaparecido]

Caro(a) leitor(a), hoje ficamos por aqui. Convidámo-lo(a) a consultar alguma da bibliografia indicada abaixo e, se ainda não o fez, a ler também os outros artigos dedicados à praça da Batalha:

Para saber mais:

  • FERNANDES, J.A.R. & MARTINS, L.P.S. (1989) Fragmentos de um século de vida dos cafés, restaurantes e hotéis do Porto. Comunicação apresentada no congresso O Porto na época contemporânea [disponível online].
  • FERREIRA, A.R.A. (2016). O carnaval no Porto nos anos 1950: A ação dos Fenianos. Omni Tempore: Encontros da Primavera, n.º 2, pp. 216-248 [disponível online].
  • MARÇAL, H. (1958). A praça da Batalha II. O Tripeiro, 5.ª série, ano 13, n.º 10 (fevereiro), pp. 300-304.
  • MOUTINHO, J. V. (2009). Camilo Castelo Branco: Memórias fotográficas (1825-1890). Alfragide: Editorial Caminho.
  • PINTO, J.R. & AZEVEDO, A.L. (2010) Padrões de distribuição hoteleira no Porto no final do século XIX. Percursos & Ideias, ISCEP, n.º 2, 2.ª série, pp. 155-166 [disponível online].
  • SERÉN, M. C. (1998). Manual do cidadão Aurélio da Paz dos Reis. Porto: Centro Português de Fotografia.
  • SILVA, R. (2012). Os primórdios da praça da Batalha. O Tripeiro, 7.ª série, ano 31, n.º 3 (março), pp. 78-79.
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros.

Comentários

  1. Na qualidade de 100% Tripeira e moradora na zona durante 60 anos, tiro o meu chapeu a este minucioso artigo que referenciando muitos locais desconhecidos prendeu toda a minha atenção. Parabéns!

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    1. Obrigado! Ainda vou escrever (pelo menos) mais dois artigos sobre a Batalha.

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  2. Excelente artigo, o Portuense que passar pela Praça da Batalha hoje em dia, fica chocado com o seu abandono e o turismo rasco que por lá anda a ser despejado de Outubro de 2013 até à presente data.

    Já tinham dado cabo daquela zona com obras mal projetadas e executadas para o «Porto 2001», e agora é a miséria que se vê em todos aspectos, inclusive com medíocres estabelecimentos de restauração - que não funcionam a não ser que mandem para lá os parolos e os estrangeiros ingénuos e ignorantes, que visitam a cidade - o que é pena pois a Praça da Batalha já foi um símbolo da boémia Portuense com excelentes cafés no verdadeiro sentido do termo e conceito.

    Post-Scriptum: Gostaria de lhe sugerir a criação de uma «newsletter», por forma a que seja possível receber as suas publicações, via correio electrónico.

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  3. Boa tarde, os meus avós casaram num dos hotéis da Batalha mas já não se lembram do nome. Alguém sabe qual era o Hotel que tinha uma "secção" em Matosinhos, com um café no r/c?
    É o único pormenor de que a minha avó se lembra, e também que o Hotel "sede" ficava na Batalha do lado direito quem vem de Santa Catarina. O casamento foi em 1962.

    Obrigada a quem conseguir ajudar!

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