Batalha: a singularidade de uma praça

Apesar de hoje estar um tanto secundarizada, no Porto de Oitocentos, a Batalha era a praça boémia por excelência, onde estavam os melhores teatros, as hospedarias mais concorridas e os botequins mais frequentados, atraindo artistas, atores, aristocratas, revolucionários e conspiradores. Detentora de uma história singular, a praça da Batalha desempenhou um importantíssimo papel na definição do próprio caráter da cidade. Venha saber mais!

Manuel de Sousa

Em 1785, o poeta inglês William Cowper (1731-1800) escreveu "God made the country, and man made the town" (Deus fez o campo e o homem fez a cidade). No entanto, a compreensão da obra humana que é o espaço urbano nem sempre é evidente, exigindo o estudo da sua génese e evolução para uma correta compreensão. Porque muito do que podemos supor ser obra do acaso, não raras vezes resulta de um longo processo evolutivo que procurou dar a melhor resposta às variadíssimas exigências que foram surgindo.

Já vimos isso mesmo em relação à praça da Liberdade, caríssimo(a) leitor(a)! Mas há um outro local do Porto do qual é fundamental conhecermos a sua história para o compreendermos: a praça da Batalha. Trata-se de um dos logradouros mais importantes da cidade e que tem muito de singular.

A começar pela própria forma. Não sei se já se apercebeu, mas a Batalha não é retangular, como a praça da República; nem triangular, como a praça dos Mártires da Pátria (a Cordoaria); nem sequer circular, como a praça de Mouzinho de Albuquerque (vulgarmente conhecida por rotunda da Boavista). Na verdade, ostenta uma forma original que se aproxima de um S.

Vista aérea da praça da Batalha, onde é percetível a sua forma em S [Google Maps]

Uma outra singularidade reside no facto de, ao contrário de numerosíssimos arruamentos da cidade do Porto, a Batalha nunca ter conhecido outra designação. Para além da Rotunda e da Cordoaria, que acabámos de referir, ao longo dos tempos, a cidade foi assistindo a muitas alterações toponímicas, nem sempre prontamente absorvidas pelos seus habitantes. São exemplos disso, a rua de 31 de Janeiro – que os mais antigos ainda chamam de Santo António – ou a praça de Francisco Sá Carneiro – que quase todos continuam a designar por praça Velasques. Há também muitos exemplos de batismos populares que igualam, ou mesmo ultrapassam, os oficiais. Dois exemplos: a praça de Gomes Teixeira, comummente chamada praça dos Leões (pela fonte que, desde a década de 1880, ocupa o seu centro) e a praça da Ribeira, que alguns designam por praça do Cubo (pela peça escultórica de José Rodrigues lá colocada na década de 1980).

Que batalha se deu na praça da Batalha?

Curiosamente a Batalha, sempre foi Batalha. Nunca conheceu outra designação, nem oficial nem popular. E, considerando a persistência do topónimo, é ainda mais estranho o facto de não se saber, ao certo, a que batalha a praça presta homenagem…

Praça da Batalha na planta do Porto de Perry Vidal, 1865 [doportoenaoso.blogspot.com | Porto Desaparecido]

A versão mais corrente para a explicação do topónimo Batalha é a que foi propagada pela primeira vez em 1623, por D. Rodrigo da Cunha (1577-1643), no seu Catálogo e história dos bispos do Porto.

Remete-nos para o ano de 920, quando Portugal – enquanto país – ainda não tinha nascido. Por estas bandas, existia um primeiro Condado Portucalense, fundado por Vímara Peres (c.820-873) em 868. Era conde de Portucale Hermenegildo Guterres (c.842-912), vassalo do rei Ordonho II de Leão (c.873-924). Com capital no Porto, este primitivo Condado Portucalense compreendia-se entre o rio Lima e Coimbra. Daí para sul estendiam-se os vastos territórios dominados pelos muçulmanos.

Parte do infindável rol de batalhas que opuseram mouros e cristãos, durante o longo período conhecido como Reconquista, está um ataque que Abderramão III  de seu nome completo, 'Abd al-Raḥmān ibn Muḥammad al-Nāṣir li-Din Allah (891-961) , primeiro califa de Córdova, empreendeu ao Norte cristão. Atacou o Porto – na época apenas protegido por uma muralha em torno do morro da Sé –, travando uma violentíssima batalha que durou todo o dia e se prolongou pela noite dentro. Hermenegildo opôs-lhe feroz resistência, obrigando Abderramão a retirar, já quando a madrugada ia alta. Ordonho II, rei de Leão, veio em socorro do Porto e surpreendeu os muçulmanos a leste da cidade. A mortandade causada foi tal que o ribeiro que corria por perto ficou tingido de vermelho de tanto sangue que nele foi derramado, ficando desde aí conhecido como Rio Tinto – este episódio é-nos revelado pelo padre Agostinho Rebelo da Costa (?-1791), na sua Descrição topográfica e histórica da cidade do Porto, de 1789.

Obviamente que estes relatos  e outros idênticos  pertencem ao domínio da lenda e não tanto da história.

Praça da Batalha, c.1900 (o selo e o carimbo dos correios são posteriores) [ernstkers.nl | Porto Desaparecido]

Historicamente, a praça da Batalha tem funcionado como charneira entre o centro da cidade do Porto – em torno da praça Nova/de D. Pedro/da Liberdade – e o seu Bairro Oriental.

Na verdade, o desenvolvimento do Bairro Oriental do Porto, cuja preocupação é já bem patente nos Almadas, acentua-se ao longo do século XIX. É este o bairro predileto dos chamados brasileiros de torna-viagem para erguerem os seus palacetes. É também por aqui que se assiste ao aparecimento de um sem-número de unidades industriais, estimuladas pela construção da ponte Maria Pia (1877) e pela chegada do comboio a Campanhã.

Importante ponto de cruzamento do trânsito da cidade, a Batalha desempenha, também, um papel de grande relevo como espaço de encontro, lazer e ócio da população portuense. É na Batalha que se localiza o Teatro de São João, inaugurado em 1794, o mais antigo e concorrido do Porto, que sempre manteve um intenso programa cultural. A presença na praça de grande número de casas de pasto, botequins, hospedarias e hotéis, contribuiu também para o popularidade que este espaço alcança no Porto de Oitocentos.

Ao longo dos séculos XIX e XX, um dos grandes atrativos da Batalha reside, também, nos cafés que aqui se notabilizam, atraindo uma clientela diversificada, incluindo personalidades relevantes na história cultural, política e intelectual do Porto e do País.

Igreja de Santo Ildefonso e praça da Batalha, c.1929 [Porto Desaparecido]

Na verdade, muito há a dizer sobre a Batalha. Em próximos artigos, vamos conhecer mais detalhadamente o aparecimento e evolução da praça da Batalha. Fique atento(a), caro(a) leitor(a)!

Gostou deste artigo? Leia, também, os outros artigos dedicados à praça da Batalha:

Para saber mais:

  • CARNEIRO, J.A. (1919). A origem do nome 'Batalha' dado à praça da Batalha da cidade do Porto. O Tripeiro, 2.ª série, ano I, número 8, p. 153.
  • CARVALHO, M.A. (2008). Batalha sem nome dá nome a praça. Viva Porto (out.), pp. 30-31.
  • CLETO, J. (2010). Lendas do Porto. Matosinhos: Quidnovi – Edição e Conteúdos.
  • COSTA, A.R. (1789). Descripção topografica e historica da cidade do Porto. Porto: Oficina de António Álvares Ribeiro [disponível online].
  • CUNHA, R. (1623). Catalogo e historia dos bispos do Porto. Porto: João Rodrigues Impressor [disponível online].
  • SILVA, R. (2012). O desenho da praça da Batalha. O Tripeiro, 7.ª série, ano XXXI, n.º 4, pp. 110-111.
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros.

Comentários

  1. Li em qualquer lado que a batalha que teve lugar foi no tempo de Almansor (cerca do ano 1000), o grão-vizir que tinha mais poder que o Califa da altura, quando invadiu o Norte, desembarcando exactamente no Douro junto ao Porto e vencendo tudo à sua passagem até Santiago de Compostela que conquistou e de que roubou os sinos da catedral e os fez transportar pelos cativos até Córdoba, a capital do Califado.

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    1. Sim, há várias lendas. D. Rodrigo da Cunha também fala da destruição do Porto por Almançor, "grande capitam de Cordoua", mas remete-a para o ano de 716. Já o padre Rebelo da Costa, sem especificar data, refere que a destruição do Porto por Almançor ocorreu pouco depois do ataque de Abderramão III (por isso, depois de 920). Talvez seja útil referir que Almançor (em árabe “al-Mansur”) não era propriamente um nome, mas sim um título honorífico ("laqab") que significava "o Vitorioso". Por isso, houve vários Almançores – ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Almançor_(desambiguação) –, sendo que o mais famoso foi chanceler do califado de Córdova e viveu entre c.939-1002.

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