Cale, Portucale e a Cerca Velha do Porto

No Porto, quando se fala em muralhas, toda a gente pensa logo nas chamadas Muralhas Fernandinas. No entanto, quando estas foram erguidas, no século XIV, já existia outra cerca defensiva, em torno do morro da Sé, vulgarmente identificada como Cerca Velha ou Muralha Primitiva. Desta, à vista de todos, praticamente só subsiste um cubelo e um pequeno troço de muralha, junto à calçada de Vandoma. Mas a Cerca Velha é bem mais vasta e encerra numerosos enigmas. Venha saber mais!

Manuel de Sousa

Cubelo e pequeno pano da Cerca Velha (reconstruídos em 1940), junto à calçada de Vandoma [Manuel de Sousa | Wikimedia Commons].

Porto suevo?

O morro da Sé – tradicionalmente conhecido como Pena Ventosa – é uma saliência granítica com uma cota máxima próxima dos 80 metros, rodeada de vertentes de acentuado declive que descem para o rio Douro e para o vale do antigo rio da Vila que hoje corre encanado, por baixo das ruas de Mouzinho da Silveira e de São João. Estas características – que constituíam boas condições defensivas – foram decisivas para que este tivesse sido o berço original da urbe portuense.

Este Porto primitivo seria protegido por uma muralha. Pelo conhecimento que temos dos restos da Cerca Velha que chegaram ao século XIX, sabemos que abrangia uma área de cerca de três hectares, teria um perímetro de aproximadamente 750 metros e quatro portas: Nossa Senhora da Vandoma, São Sebastião, Sant'Ana e Nossa Senhora das Verdades.

Apesar de nunca ninguém ter duvidado de que se tratava de uma obra antiga, até não há muito tempo, era erradamente conhecida como Muralha Sueva, por se julgar terem sido os suevos os seus construtores. A atribuição da muralha ao período suevo – cujo reino durou entre 409 e 585 – tem uma longa tradição historiográfica que remonta, pelo menos, a D. Rodrigo da Cunha (1577-1643) que, no seu Catálogo e história dos bispos do Porto, de 1623, justificava a edificação do castelo de Portucale novum no âmbito dos conflitos militares que opuseram os suevos aos alanos, nas primeiras décadas do século V.

D. Rodrigo da Cunha [Wikimedia Commons] e o seu Catálogo e história dos bispos do Porto (1623) [Google Livros].

Do ponto de vista documental, a atribuição da fundação do Porto aos suevos assenta na distinção feita entre duas povoações separadas pelo rio Douro no Parochiale suevorum ou Divisio Theodemiriobra de Martinho de Dume (c.518-579). Trata-se de um manuscrito que descreve a organização eclesiástica do reino suevo, contendo uma relação de 132 paróquias, agrupadas em treze dioceses.

Duas das treze dioceses suevas são assim descritas: Ad sedem Portugalensem in castro novo, seguindo-se a listagem das paróquias que integravam esta diocese; e Ad Conimbricensem, também com as suas respetivas paróquias, sendo a última designada como Portucale castrum antiquum.

Na época, o rio Douro servia de limite entre as dioceses portucalense (a norte) e conimbricense (a sul). castrum antiquum, a sul do Douro, aparece também classificado como romanorum e o castro novo, a norte do rio, como suevorum. E foi esta informação que levou muitos estudiosos a atribuir aos suevos a fundação do Porto e das suas muralhas.

Em suma, o que este documento nos diz é que, no século VI, havia dois Portucales: um em Gaia, referido como mais antigo e criado pelos romanos; outro no Porto, mais recente e fundado pelos suevos. Mas será que foi mesmo assim?

Cale e Portucale

Ora bem, a problemática em torno da localização de Cale – na margem direita ou esquerda do Douro – já fez correr rios de tinta. Sendo certo que Cale estava próxima da foz do rio Douro, a sua localização exata foi objeto de numerosas teoriasHoje, graças às muitas intervenções arqueológicas realizadas no Porto desde a década de 1980  falaremos disto já a seguir –, não parece haver dúvidas de que a Cale romana corresponde à cidade do Porto, mais concretamente à Pena Ventosa, ou morro da Sé, ocupado desde o Bronze Final.

Nos finais do século II a.C., esta povoação seria o lugar principal de um dos povos do Noroeste peninsular: os callaeci, em latim, ou galaicos, em português. Por aqui passou o cônsul romano Décimo Júnio Bruto (180 a.C.-113 a.C.) que os derrotou, acrescentado "Galaico" ao seu nome. Como os galaicos foram o primeiro povo que o cônsul defrontou depois de ter atravessado o Douro, o nome Callaecia ou Galécia acabou por ser estendido pelos romanos a uma vasta região do Noroeste peninsular, ocupada por muitos outros povos. Daí não ser descabido dizer-se que, antes de dar nome a Portugal, esta terra terá começado por dar nome à Galiza!

Mas, se parece certo que a Cale romana se localizava no Porto, também é certo que, no século VI, Portucale era nome comum à cidade do Porto e à povoação situada na margem esquerda do Douro, o Castelo de Gaia. Mas que razão levou a que o povoado da margem esquerda fosse referido como antigo e o da margem direita como novo? Não deveria ser ao contrário?

É tema sobre o qual não há unanimidade entre os estudiosos. Uma das possibilidades será que, sendo a Cale romana na margem direita do Douro, na margem esquerda terá existido um portus, onde viajantes e comerciantes, vindos de sul, fariam a transferência das suas bagagens para as barcas que atravessariam o rio. O local chamar-se-ia então Portus Cale, Portus Calis ou Portus ad Calem. Alguns séculos mais tarde, o nome, já evoluído para Portucale ou Portugale, ter-se-á estendido também à antiga Cale. Daí que, no século VI, esta apareça chamada como Portucale novum, não porque tivesse sido fundada mais recentemente, mas apenas porque teria adotado o nome que, anteriormente, se aplicava (apenas ou principalmente) ao povoado da outra margem, agora Portucale antiquum.

Mas pode haver outras possíveis explicações. Por exemplo, ao escrever-se Ad sedem Portugalensem in castro novo nParochiale suevorum, poderia querer dizer-se tão simplesmente "À sé portucalense na sua nova localização". Isto porque terá sido por essa altura que o bispado, até aí estabelecido em Magnetum – atualmente Meinedo, no concelho de Lousada  se transferiu para o Porto.

Mas isso de Meinedo ter sido a sede originária do bispado do Porto  apesar de ser comummente aceite pela historiografia tradicional  não está isento de críticas. Recentemente (2020), Francesco Renzi (n. 1985) e Andrea Mariani (n. 1979) reabriram a discussão sobre o Parochiale suevorum à luz de novas fontes, apontando a fragilidade de certas conclusões que têm sido assumidas como verdades inquestionáveis.

Documento n.º 551 do Liber Fidei (séculos XII-XIII), uma das várias versões do Parochiale suevorum [Universidade do Minho | Wikimedia Commons]. 

O tema é, sem dúvida, complexo. Para começar, não há apenas um Parochiale suevorum, mas nove versões que divergem em numerosos aspetos, que vão desde o nome de muitas paróquias, até à questão das sedes metropolitanas. A verdade é que os documentos que datam da passagem da Tardo-Antiguidade para a Alta Idade Média exigem uma análise extremamente prudente. Porque é sabido que muitos deles foram manipulados e truncados  quando não completamente falsificados  nos séculos XI e XII. Num contexto de Reconquista cristã e de reorganização dos poderes político-religiosos, muitos documentos desse período foram usados para servir de fundamento histórico às pretensões do momento.

Já agora, caro(a) leitor(a), permita-me que dê um salto momentâneo à atualidade: já reparou que, nos conflitos a que assistimos nos dias de hoje (Rússia-Ucrânia, Israel-Palestina, RP China-Taiwan e outros), cada contendor recorre frequentemente a invocações históricas para justificar as suas ações e aspirações? E, para tal, não hesita em distorcer a história. Ou, até, a inventar. O importante é que sirva os seus intentos atuais. Ora bem, há mil anos não era diferente!

Bom, para que o(a) sempre interessado(a) leitor(a) se possa familiarizar melhor com todas estas problemáticas  Cale, Portucale, Meinedo, Parochiale suevorum e afins –, deixo abaixo alguma bibliografia recente e disponível à distância de um clique... Vai ver que isto tudo é muito mais complexo do que imaginava. E também verá que a história é uma obra em constante construção...

Arqueologia urbana

Seja como for, no meio disto tudo, se há situação que parece completamente resolvida é a da alegada origem sueva do Porto. Na verdade, ao longo do século XX, a tese sueva já havido sido posta em causa por investigadores como Artur de Magalhães Basto (1894-1960) e outros. Porém, provas irrefutáveis de que esta suposição estava errada só começaram a surgir nas décadas de 1980 e 1990, aquando da realização de intervenções arqueológicas no n.º 5 da rua de D. Hugo. Tais trabalhos vieram revelar vestígios arquitetónicos da ocupação do morro da Sé durante a Idade do Ferro e a época romana, bem como a primeira evidência material de uma linha defensiva bem anterior à cerca medieval.

Entretanto, realizaram-se numerosas escavações, sondagens e acompanhamentos arqueológicos de obras que decorreram em diversos edifícios do morro da Sé – ascendendo a algumas centenas de intervenções arqueológicas – que vieram trazer alguma luz sobre os períodos mais antigos da urbe, onde as fontes históricas se remetiam ao silêncio.

Os trabalhos arqueológicos realizados em casas do lado norte da rua e do largo da Pena Ventosa, levaram à identificação de trechos de amuralhamentos antigos, o mesmo sucedendo num edifício localizado no largo do Colégio, junto à igreja de São Lourenço, popularmente conhecida como dos Grilos. Uma outra intervenção de grande envergadura, levada a cabo no quarteirão da Bainharia – entre as ruas de São Sebastião, Escura e da Bainharia –, pôs a descoberto outro extenso troço defensivo.

Como resultado de todos os trabalhos arqueológicos realizados no morro da Sé durante as últimas décadas, é hoje possível documentar diversos tramos de antigas cercas defensivas do primitivo núcleo urbano.

Assim, partindo da primeira descoberta arqueológica, a do arqueossítio da rua de D. Hugo, n.º 5, contamos com o pequeno alinhamento datado dos finais do século III ou do século IV. Seguindo no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio e pelo rebordo da plataforma superior da colina do morro da Sé, deparamo-nos com importantes achados no quarteirão da Bainharia, onde se localiza o tramo mais extenso e mais bem conservado, com uma datação que aponta para os séculos II-I a.C. Ou seja, estamos perante uma obra pré-romana ou, porventura, contemporânea dos primeiros contactos com os invasores romanos.

Avançando para poente ao longo da rua da Pena Ventosa, as fundações da muralha romana correm sob as paredes posteriores das casas que têm frente para a rua da Bainharia, tirando partido do grande desnível topográfico que existe entre ambos os arruamentos. Neste local, a muralha apresenta um alçado máximo conservado de 1,75 metros. Foi construída com blocos de granito de médio e grande calibre rudemente aparelhados, assentes com auxílio de terra argilosa de coloração avermelhada e com as juntas colmatadas com cascalho. Estima-se que a muralha tivesse originalmente uma espessura superior a dois metros. Pelo espólio associado, a sua construção é datada entre a segunda metade do século I e a primeira metade do seguinte. No largo do Colégio, descobriu-se um muro de planta circular ou elíptica que parece corresponder ao arranque de um torreão, à semelhança dos da muralha de finais do século III de Bracara Augusta, na atual cidade de Braga. Entre este local e a parte média da rua de D. Hugo, pelo sul do morro da Sé, não existe ainda indicação rigorosa do traçado das muralhas devido à falta de trabalhos arqueológicos nesta área.

Resumindo, os arqueólogos responsáveis pelos trabalhos já realizados apontam para propostas de datação da edificação das estruturas estudadas que vão dos séculos II a I a.C. (Bainharia) aos séculos I a.C. a III d.C. (rua da Pena Ventosa) e aos séculos III a V d.C. (rua de D. Hugo e largo do Colégio).

Cerca Velha do Porto. Linha amarela: traçado arqueologicamente comprovado; Linha vermelha: traçado hipotético. A: Porta de Vandoma, porta de Nossa Senhora de Vandoma; B: Porta das Mentiras, porta de Nossa Senhora das Verdades; C: Portal, porta de Sant'Ana; D: porta da Sapataria, porta de São Sebastião [Manuel de Sousa | Google Maps].

Aposto que o(a) leitor(a) já está a perguntar: – A que se deve toda esta disparidade de datas? Estaremos perante circuitos amuralhados distintos? Ou diferentes momentos de construção ou reconstrução de uma mesma estrutura?

Bem, não é fácil dar uma resposta cabal. Seja como for, uma coisa é certa, todas estas estruturas são anteriores à chegada dos suevos a terras portucalenses. Por isso, uma vez mais, suevas é que as muralhas não são!

Era uma vez, um castro na Pena Ventosa...

Recapitulando, os dados recolhidos permitem-nos conjeturar que na Pena Ventosa terá existido um castro desde o final da Idade do Bronze, dotado da respetiva cerca amuralhada.

Já agora, diga-se que este Porto primitivo não seria um grande povoado, do género da citânia de Briteiros, implantada no topo aplanado do monte, mas teria um aspeto mais próximo do castro de São Lourenço, em Esposende, mais pequeno e construído numa zona acidentada.

Castro de São Lourenço, em Vila Chã, Esposende [João Carvalho | Wikimedia Commons].

Apesar das primeiras investidas e ocupações romanas terem ocorrido com Décimo Júnio Bruto, em 138-136 a.C., como já vimos, foi só em 29-19 a.C. que se efetivou o domínio total da região do noroeste peninsular. Uma vez romanizado, o povoado ter-se-á convertido numa civitas, uma unidade administrativa semiautónoma dotada de um conjunto de edifícios públicos relevantes, tais como fórum, basílica, teatro, templo, banhos públicos e aquedutos.

Como escreveu Armando Coelho da Silva (n. 1943): "será lícito supor a expansão da cidade no período tardo-romano até à zona ribeirinha, onde estaria sediada a estação viária citada no Itinerário de Antonino como situada nas proximidades de Cale e instalações portuárias, certamente dotadas, além de cais de acostagem, de serviços destinados a alojamento, fiscalidade e outros, no local da antiga alfândega do Porto, onde foi encontrado um edifício com mosaicos romanos do século IV d.C." Refere-se aqui à chamada Casa do Infante.

Casa do Infante [Manuel de Sousa | Wikimedia Commons].

Mais tarde, a guerra e a insegurança que caracterizaram os finais do século III fariam erguer novas muralhas, protegendo o núcleo principal da urbe. Após a presúria de Portucale por Vímara Peres (820-873), em 868, as muralhas seriam reparadas e, na sequência da doação da cidade ao bispo D. Hugo (?-1136) por D. Teresa (c.1080-1130) em 1120, deu-se nova reconstrução da antiga cerca amuralhada.

Ou seja, a chamada Cerca Velha ou Muralha Primitiva não foi apenas uma muralha, erguida de uma só vez, mas sim vários muros, sucessivamente construídos e reconstruídos ao longo de muitos séculos. E será que o perímetro do troço amuralhado foi sempre igual ao que chegou ao século XIX, com cerca de 750 metros e quatro portas? Provavelmente, não.

A Cerca Velha na Idade Média

É de supor que a muralha de D. Hugo fosse mais restrita do que aquela que chegou ao século XIX, semelhante a um castelo – daí a utilização frequente do nome Castelo para designar o topo do morro da Sé que encontramos na documentação medieval e da Idade Moderna. Também é provável que fosse dotada de apenas duas portas, tal como era habitual na época: a principal que, por regra, tomava o nome da povoação importante mais próxima e uma outra, secundária, chamada da traição. Aplicando ao Porto, teríamos que a porta de Vandoma seria a principal e a secundária, a das Verdades – na Idade Média conhecida como "das Mentiras". Não existiria, por isso, a porta de Sant'Ana nem a de São Sebastião.

Cerca Velha representada da maqueta do Porto medieval na Casa do Infante [Manuel de Sousa | Wikimedia Commons].

O desnível considerável entre o planalto da Sé e o atual largo do Colégio, leva alguns autores a admitirem que os primeiros traçados não incluíssem a zona das Aldas, pelo que a porta de Sant'Ana – primeiramente designada por Portal – deverá fazer parte de um acrescento posterior ao século XII. O facto de se ter encontrado uma sepultura tardo-romana no largo do Colégio parece confirmar essa ideia, uma vez que sabemos que os romanos sepultavam sempre os seus mortos fora dos perímetros amuralhados. Para além disso, não há referências documentais ao desenvolvimento urbano da zona das Aldas anteriores ao século XIV. Mas, a haver cerca, esta seria provavelmente uma cerca baixa, essencialmente destinada à contenção de gado, o que pode ser explicado pela permanência na zona de diversos açougues – i.e., matadouros – ao longo da Idade Média.

Por outro lado, também a porta de São Sebastião – que, até finais do século XV, se chamava porta da Sapataria – terá sido um acrescento do século XII. A sua abertura, protegida por dois cubelos góticos, surge num contexto de guerra que caracterizou os reinados de D. Dinis (1261-1325; r. 1279-1325) e de D. Afonso IV (1291-1357; r. 1325-1357). Terá sido a estreiteza da porta de Sant'Ana a levar à abertura da porta da Sapataria, mais larga e que possibilitava a entrada de carros.

A partir dos finais da Idade Média, assistimos à sacralização das portas da cerca, com a construção de capelas anexas, com invocação dos seus oragos. Como já vimos, a porta da Sapataria passou a São Sebastião e o Portal passou a Sant'Ana. Com culto datado já da Idade Moderna, a antiga porta das Mentiras passa a Nossa Senhora das Verdades e, por último, Vandoma passa a Nossa Senhora de Vandoma, sendo criada a conhecida lenda dos gascões.

Segundo esta efabulação, nos finais do século X, uma esquadra de guerreiros vindos da Gasconha, região do sudoeste de França, teria desembarcado no Porto para ajudar a libertar a cidade do domínio muçulmano e erguer as muralhas defensivas. Entre eles estaria D. Nónego, bispo de Vandoma (Vendôme, no centro de França) que se tornaria também bispo do Porto. Com ele teria vindo uma imagem da Virgem, a Nossa Senhora de Vandoma, que seria colocada na muralha, dando nome à porta próxima e passando a integrar a heráldica da cidade desde então.

Bandeira do município do Porto. No brasão, representação de Nossa Senhora de Vandoma – padroeira da cidade – sobre a porta da Cerca Velha [Brgesto | Wikimedia Commons].

Vários autores, entre os quais Pedro Vitorino (1882-1944), há muito haviam contestado o mito, tendo datado a imagem do século XIV. Quanto ao nome Vandoma, já João de Barros (1496-1570), em 1549, fazia referência à importante fortaleza de Vandoma, a cinco léguas do Porto (c.25 km), na estrada para Penafiel e atual freguesia do concelho de Paredes. Seria esta a Vandoma, que outrora teria uma relevância regional bem superior à atual, a dar nome à porta da muralha.

A partir do século XIV, com a construção da Cerca Nova, mais conhecida como Muralha Fernandina, a Cerca Velha foi perdendo importância. O casario foi-se encostando aos velhos muros até quase só ficarem visíveis as portas. No século XIX, também estas desapareceriam. A porta das Verdades foi demolida em data desconhecida, a de São Sebastião em 1819, a de Sant'Ana em 1821 e, finalmente, a de Vandoma em 1855.

Limitações (e oportunidades?)

Há ainda muitos hiatos nesta história e outras tantas incógnitas que novas escavações arqueológicas poderão vir a ajudar a aclarar. No entanto, é preciso ter presente que, para além das suas potencialidades, a arqueologia urbana tem, também, sérias limitações. Designadamente, porque gera uma quantidade tão elevada de espólio que se tem revelado impossível de processar em tempo útil. Em consequência, nos arquivos de muitos países, acumulam-se milhares e milhares de relatórios que (quase) ninguém lê e, nos depósitos, milhões de objetos do qual se retira escasso ou nenhum aproveitamento científico. Por outras palavras, muitos dos trabalhos arqueológicos, nomeadamente em contexto urbano, acabam por ser revelar bem menos proveitosos do que seria de esperar.

E, como se isso não bastasse, tal como nos lembra António Manuel Silva (n. 1962), arqueólogo da Câmara Municipal do Porto, "é bastante preocupante que, das mais de três centenas de intervenções feitas no Porto, nem 5% se encontrem publicadas e, destas, praticamente nenhuma com monografia integral, incluindo o estudo e caracterização dos espólios."

Mas estaremos nós condenados para sempre a assistir impotentes a todo este desperdício? Será que a tecnologia nos poderá, num futuro próximo, ajudar a ultrapassar as limitações atuais?

Na verdade, o processamento de quantidades colossais de dados (tanto textos, como imagens), a sua classificação, indexação e análise, bem como o apoio na sua interpretação e tradução são tarefas que ferramentas tecnológicas, como a chamada inteligência artificial (IA), desempenham com bastante sucesso. É claro que, para tal, será necessário que se constituam equipas multidisciplinares que reúnam arqueólogos, historiadores e especialistas em IA, entre outros, de forma a garantirem a configuração mais adequada dos tão propalados algoritmos. Será que, nesse cenário, poderemos almejar a um nível de conhecimentos bastante mais exaustivo, tirando partido de 100% da informação recolhida? O futuro dirá!


Gostou deste artigo? Então, leia também:

Para saber mais:

  • AFONSO, D.B.B. (2012). A rua na construção da forma urbana medieval: Porto, 1386-1521. Porto: FLUP [disponível online].
  • ALARCÃO, J. (2015). Os limites das dioceses suevas de Bracara e de Portucale. Portvgalia - Revista de Arqueologia do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da FLUP, Porto, n.º 36, pp. 35–48 [disponível online].
  • ALARCÃO, J. (2019). O Nome e os lugares de Portucale. Revista de Portugal, n.º 16, pp. 8-15 [disponível online].
  • ALARCÃO, J. (2005). Notas de arqueologia, epigrafia e toponímia – III. Revista portuguesa de arqueologia, vol. 8, n.º 2, pp. 293-312 [disponível online].
  • BARBOSA, J.P. (2018). Património Desaparecido: Rede de Percursos e reconhecimento da Muralha Fernandina do Porto. Porto: FAUP [disponível online].
  • CARVALHO, T.P.; GUIMARÃES, C.; BARROCA, M.J. (1996). Bairro da Sé do Porto: Contributo para a sua caracterização histórica. Porto: Câmara Municipal do Porto. 
  • MARÇAL, H. (2012). Tipologias de ocupação da Rua D. Hugo (Morro da Sé, Porto). Oppidum, ano 7, n.º 6, pp. 77-88 [disponível online].
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