Batalha: a evolução urbanística de uma praça

Ao longo da sua já longa existência, a praça da Batalha passou por vicissitudes várias que ajudam a explicar o estado atual. Nascida do entrecruzamento de duas realidades diferentes, este espaço cresceu entre a pretensão da unicidade e a persistência da divergência. Venha daí, em mais uma viagem no tempo para compreender a complexidade da evolução urbanística deste importante logradouro do Porto!

Manuel de Sousa

Figura 1: Igreja de Santo Ildefonso, c.1900 [Foto Guedes | Porto Desaparecido]

Caro(a) leitor(a), numa ocasião anterior, falei-lhe da singularidade da praça da Batalha, a começar pela sua estranha forma em "S". Desta vez, vamos tentar entender o porquê dessa fisionomia observando a evolução urbanística do local. Partimos da construção da chamada Muralha Fernandina e terminamos na atualidade, numa altura em que se anuncia a reabertura do antigo cinema Batalha para 2022.

E começamos de uma forma leve, com uma vista de pássaro sobre o Porto medieval...

Na verdade, a um bando de andorinhas que esvoaçasse pelos céus do Porto na primavera de 1335 era-lhe dado ver que grande parte das construções da cidade se encontravam já do lado de fora da muralha primitiva, que se limitava a proteger o morro da Sé.

Ao Porto, cidade portuária por excelência, chegavam os ecos da Guerra dos Cem Anos (1337-1453) que grassava em grande parte da Europa. Foi a vulnerabilidade do burgo a eventuais ataques, nomeadamente à sua zona ribeirinha, que levou à construção de uma nova muralha no século XIV, bastante mais ampla do que a anterior. O facto de ter sido concluída em 1376, já no reinado de D. Fernando (1345-1383), explica a razão pela qual esta cerca defensiva ficou conhecida como Muralha Fernandina.

Numa das dezoito portas da nova muralha, a porta de Cimo de Vila [B na figura 2], foi colocada uma imagem da Virgem, a Nossa Senhora da Batalha. A área imediatamente exterior à muralha passou a ser identificada como terreiro de Nossa Senhora da Batalha ou, simplesmente, terreiro da Batalha.

Figura 2: Reconstituição conjetural da área da atual praça da Batalha em 1500. A – ermida de Santo Ildefonso; B – porta de Cimo de Vila; C – muralha fernandina; D – localização hipotética do campo do Pombal; 1 – caminho para o Bonfim e Valongo; 2 – rua de Cimo de Vila; 3 – caminho para São Lázaro [Excerto da Planta do Porto medieval]

Da porta de Cimo de Vila saía um caminho para o Bonfim, Valongo e Penafiel [1 na figura 2], ao lado do qual existia a pequena ermida de Santo Ildefonso [A na figura 2], consagrada pelo bispo D. Pedro Pitões, ainda no século XII. Anexo à ermida, desenvolveu-se o hospício das Entrevadas de Santo Ildefonso que, mais tarde, passou para a administração da Misericórdia do Porto. O local não passava, então, de um lugarejo rústico, já fora da cidade delimitada pela muralha fernandina, com campos de cultivo, caminhos estreitos, ramadas e arvoredo, por onde serpenteava um ribeiro.

O largo de Santo Ildefonso e o largo da Batalha

No ano de 1590, sabemos que num desses campos de lavradio, chamado Pombal [D na figura 2], partia um caminho para São Lázaro, correspondendo aproximadamente à atual rua de Entreparedes [3 na figura 2]. Por essa época, era já claro que, por aqui, se desenvolviam dois espaços com funções diferentes:

  • uma área à frente da porta de Cimo de Vila e que se abria como zona de passagem, estabelecendo a ligação da cidade intramuros com o caminho que, passando pela ermida de Santo Ildefonso, levava ao Bonfim e a Valongo;
  • e uma outra área, à direita da saída da porta, um rossio que se estendia ao longo da muralha onde se realizava uma concorrida feira, já que os produtos se tornavam mais caros quando os mercadores transpunham as portas da muralha, pelas taxas que lhes eram aplicadas.

A persistência da organização do espaço nestas duas áreas, levou à adoção de designações toponímicas diferentes: largo de Santo Ildefonso, aplicado à primeira, e largo da Batalha, à segunda. No fundamental, é neste legado histórico longínquo que se filia a forma atípica da atual praça.

A passagem dos tempos levou à degradação da antiga ermida de Santo Ildefonso que, em 1739, foi substituída pela nova (e bastante maior) igreja homónima, fechando a praça, a nordeste [B na figura 3].

Figura 3: Batalha e largo de Santo Ildefonso, 1854. B – igreja de Santo Ildefonso; C – palacete da Batalha; D – capela de Nossa Senhora da Batalha; E – Real Teatro de São João. 1 – rua de Santa Catarina; 2 – rua de Santo António (atual 31 de Janeiro); 3 – rua de 23 de Julho (atual Santo Ildefonso); 4 – calçada da Teresa (atual rua da Madeira); 5 – rua de Cimo de Vila; 6 – travessa de Cimo de Vila; 7 – travessa do Cativo; 8 – rua de Augusto Rosa; 9 – rua de Entreparedes [adaptado de Planta, 1854]

Entretanto, em 1757, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), que ficou conhecido para a história como marquês de Pombal, nomeou João de Almada e Melo (1703-1786) para governador de Armas do Porto. Por sua iniciativa, em 1763 foi criada a Junta das Obras Públicas, responsável por grandes transformações urbanísticas no Porto. Foi da sua responsabilidade a abertura da rua de Santo António (atual 31 de Janeiro) [2 na figura 3], prolongada pela rua dos Clérigos que, a partir de 1763, passou a estar coroada pela Torre dos Clérigos.

Este conjunto arquitetónico veio reforçar, também, a monumentalidade da igreja de Santo Ildefonso [B na figura 3]. A partir da rua de Santo António, o acesso à igreja de Santo Ildefonso era feito por três lanços de escadas, com um patamar intermédio, no meio do qual se elevava um alto obelisco, esculpido a partir de uma só pedra, assente em quatro esferas de granito [figura 4]. Em 1799, o futuro escritor Almeida Garrett (1799-1854) foi batizado na igreja paroquial de Santo Ildefonso, ampliada em 1857 e cuja fachada viria a ser coberta de azulejos da autoria de Jorge Colaço (1868-1942), em 1932.

Figura 4: Igreja de Santo Ildefonso, 1833 [BPMP].

Capela de Nossa Senhora da Batalha

Mas, voltando quase século e meio atrás, dentro do programa de reformas urbanísticas empreendidas pela Junta das Obras Públicas, assistiu-se ao desenvolvimento da cidade extramuros, com a demolição de lanços sucessivos da muralha fernandina, entretanto tornada obsoleta. Tal estendeu-se também à zona da Batalha, onde, em 1793, foi derrubada a porta de Cimo de Vila. A imagem de Nossa Senhora da Batalha foi, então, transferida para uma nova capela [D na figura 3 e figura 5]erguida para o efeito nas proximidades do Teatro de São João, que então estava também em construção.

Figura 5: Capela de Nossa Senhora da Batalha, 1833. À esquerda, vê-se o Real Teatro de São João [BPMP].

Inaugurado em 1798, o Teatro de São João [E na figura 3 e figura 6] foi construído por iniciativa de Francisco de Almada (1757-1804), corregedor da comarca do Porto, filho de João de Almada e continuador da sua obra. O projeto foi do arquiteto e cenógrafo italiano Vincenzo Mazzoneschi (1747-1806). O teatro foi construído numa parcela de terreno tirada às muralhas, mas obrigou também à expropriação de cinco prédios. A obra foi inteiramente suportada pelos comerciantes e homens influentes do Porto que subscreveram as 313 ações inicialmente lançadas para a sua edificação. Mas, como os custos da construção excederam a estimativa inicial, a conclusão do edifício exigiu uma nova subscrição acionista. Terminada a obra, pelos palcos do Real Teatro de São João passaram os maiores valores da ópera europeia, tanto no género dramático, como lírico. No entanto, apesar do seu sucesso, a exploração do teatro nunca chegou a gerar lucro compensador aos seus acionistas.

Figura 6: Real Teatro de São João, 1833 [BPMP].

Palacete da Batalha

Sensivelmente do mesmo período da abertura do teatro, data um amplo edifício brasonado que se ergue em frente ao Teatro de São João [C na figura 3 e figura 7]. Foi mandado erigir por José Anastácio da Silva Fonseca (1765-1824?), fidalgo cavaleiro da Casa Real, casado com Joana Meireles Guedes de Carvalho (1774-?), senhora da Casa da Aveleda, em Penafiel. Por herança, passou para o filho de ambos, Manuel Guedes da Silva (1808-1870), casado com Maria Leonor Teresa da Câmara (1815-1894), condessa de Pangim – pelos relevantes serviços prestados pelo seu pai na Índia , que mandou colocar a pedra de armas que o edifício ainda hoje ostenta.

No entanto, sendo partidário da causa miguelista, Manuel Guedes da Silva abandonou o palacete em 1832, à entrada no Porto do exército de D. Pedro, refugiando-se na sua Quinta da Aveleda. O palacete reverteu, então, para a posse do Estado, acolhendo um hospital de sangue, durante o Cerco do Porto (1832-1833). Foi aí que esteve internado Bernardo de Sá Nogueira (1795-1876), ferido no Alto da Bandeira, em Vila Nova de Gaia, num combate travado contra as forças absolutistas, e lhe foi amputado o braço direito. Bernardo de Sá Nogueira tornar-se-ia, mais tarde, barão, visconde e marquês de Sá da Bandeira. O palacete da Batalha ou dos Guedes, como era conhecido, voltou aos seus antigos donos em 1842, mas foi comprado pelo Estado em 1881, que aí instalou a estação central dos Correios, Telégrafos e Telefones. Atualmente, o prédio é ocupado pelo hotel NH Collection Porto Batalha.

Figura 7: Casa de Manuel Guedes, palacete da Batalha, 1833 [BPMP].

Desde o início do século XIX que o espaço da praça da Batalha e do largo de Santo Ildefonso estava já quase completamente delimitado por construções. Foi por esta altura que começou a ser percebido como um local de prestígio pela Edilidade que tratou de lhe dar maior dignidade.

A feira que se realizava na praça da Batalha – onde se vendiam galináceos, hortaliças, fruta e outros géneros alimentícios – foi então transferida para o Bolhão. Em 1853, o pavimento que, até aí, era de pedra miúda e com passeios muito irregulares, foi inteiramente substituído por macadame. Em 1861, o piso da praça foi nivelado, daí resultando o rebaixamento do pavimento nas imediações do palacete da Batalha. Foram delimitadas as vias de circulação e criada uma plataforma central em calçada portuguesa, demarcada com árvores, definindo um espaço de estar. No seu centro, foi colocado o monumento ao rei D. Pedro V (1837-1861) [figura 8].

Figura 8: Bilhete-postal da praça da Batalha, c.1923 [Porto Desaparecido].

Modelada em bronze pelo escultor José Teixeira Lopes, pai (1837-1918), a estátua de D. Pedro V coroa o monumento solenemente inaugurado em 1866 pelo rei D. Luís (1838-1889), irmão mais novo do homenageado e seu sucessor no trono. Foi erguido graças ao operariado portuense que assim quis prestar homenagem à memória de rei que morreu com apenas 24 anos e pelo qual o Porto nutria grande afeição.

A estátua assenta num pedestal de forma octogonal, circundado por uma grade de ferro [figuras 8, 9 e 10]. Nas quatro faces mais estreitas do pedestal, estão representados os escudos de Portugal, da cidade do Porto, dos Braganças e da Casa de Saxe-Coburgo-Gota. Nas quatro faces mais espaçosas, quatro emblemas que representam a Religião, a Agricultura, a Indústria e as Artes, acompanhadas pelas legendas "Visita o Porto quando príncipe em 1852", "Visita a Exposição Agrícola em 1860", "Visita a Exposição Industrial em 1861" e "Os artistas portuenses por gratidão a D. Pedro V em 1862". Durante dez anos, o monumento foi guardado de dia e de noite por uma sentinela, destacada para aí do quartel-general.

Entretanto, em 1860, apesar de persistiram os dois espaços distintos, um edital do Governo Civil determinou que a praça da Batalha e o largo de Santo Ildefonso passassem a ter a denominação única de praça da Batalha. E assim ficou até aos nossos dias.

Remodelações sucessivas da Batalha

Para permitir o acesso da Batalha às Fontainhas, em 1887 foi aberta a rua Nova da Batalha, atualmente designada por rua de Alexandre Herculano. No final do século XIX, a Batalha viu reforçada a característica de ponto nevrálgico na vida da cidade com a introdução do americano [figura 1], depois substituído pelo carro elétrico [figura 8].

Na madrugada de 11 para 12 de abril de 1908, um violento incêndio reduziu o Real Teatro de São João a um montão de escombros calcinados. Poucos anos depois, iniciou-se a construção de um novo edifício, a cargo do arquiteto José Marques da Silva (1869-1947) [figura 8]. A obra foi uma oportunidade para o realinhamento dos prédios das imediações, com o objetivo de aumentar o espaço que antecedia o teatro. Em 1924, foram demolidos diversos edifícios, incluindo a capela que albergava a imagem de Nossa Senhora da Batalha que passou para a Casa do Cabido da Sé do Porto, onde ainda se encontra.

Figura 9: Bilhete-postal da praça da Batalha, c.1950 [ernstkers.nl | Porto Desaparecido]

Na praça, o trânsito automóvel foi-se intensificando e, na década de 1950, foram feitas obras de adaptação da praça aos novos condicionamentos. Foi derrubada a maioria das árvores, a placa central foi esventrada e reduzida a mera paragem de transportes públicos [figura 9]. Na década de 1970, a preponderância do trânsito automóvel cresceu ainda mais, transformando-se toda a praça em local de circulação e passagem.

Em 1982, foi aprovado um novo projeto camarário para reformular o espaço. Buscando unificar os antigos espaços de Santo Ildefonso e da Batalha, foi dado um mesmo tratamento de pavimentos a toda a praça, recorrendo à calçada portuguesa [figura 10].

Figura 10: Bilhete-postal da praça da Batalha na década de 1980 [Porto Desaparecido].

Volvidas duas décadas, no âmbito da escolha do Porto como capital europeia da cultura, em 2001, foi feita uma nova intervenção na Batalha, com projeto da autoria dos arquitetos Adalberto Dias (n.1953), Fernando Távora (1923-2005) e Bernardo Távora (n.1958). Foi reintroduzida uma plataforma central e um alinhamento de árvores, sendo, também, dado um tratamento distinto entre as duas zonas da praça, procurando respeitar a individualidade da área em frente à igreja de Santo Ildefonso. Uma fonte circular passou a estabelecer a articulação entre os dois espaços que se interpenetram. Restringiu-se a circulação automóvel a um canal e reintroduziu-se o elétrico. Mas nem tudo foi cumprido da proposta de 2001, designadamente, ficaram por recolocar as escadas entre a igreja de Santo Ildefonso e a rua de 31 de Janeiro e o obelisco que lá esteve até há cerca de 100 anos.

Figura 11: Sem-abrigo dormem à porta do encerrado cinema Batalha, 2019 [Manuel de Sousa]

Apesar das reformulações de 2001, a degradação de muito do edificado da praça contribuiu para um certo ar de abandono que a Batalha foi adquirindo [figura 11] e que nem a programação cultural do Teatro Nacional de São João, nem a criação de duas novas unidades hoteleiras no local conseguiram inverter completamente. Aguarda-se a reabertura do antigo cinema Batalha – que adotará o promissor nome de "Batalha Centro de Cinema" – para ver se a praça logra recuperar a sua centralidade perdida.

Prezado(a) leitor(a), para não tornar o artigo demasiado longo, hoje fico por aqui. Mas tenho muito mais coisas para lhe contar sobre a Batalha... Quero falar-lhe ainda dos teatros e dos cinemas, das hospedarias e dos hotéis, dos botequins e dos cafés e ainda da Batalha enquanto local de revoltas e confrontos políticos. Entretanto, pode consultar alguma da bibliografia indicada abaixo e passear pelos álbuns Santo Ildefonso e da página Porto Desaparecido, onde encontrará muitas fotografias históricas da praça da Batalha.

Até à próxima! Saudações portuenses!

Gostou deste artigo? Leia, também, os outros artigos dedicados à praça da Batalha:

Para saber mais:

  • BARBOSA, M. (2011). As praças da cidade do Porto. Porto: Edita-Me.
  • BRANCO, L.A. (1999). Planta do Porto medieval. Apoio científico: Real, M.L. e Afonso, J.F. Porto: Câmara Municipal, Departamento de Arquivos, Arquivo Histórico Municipal.
  • CLÁUDIO, M. (1994). Porto: margens do tempo. Porto, Lisboa: Livraria Figueirinhas [compre online].
  • FERNANDES, F. & CANNATÀ, M. (2002). Formas urbanas. Urban shapes. Porto: Edições ASA [compre online].
  • FERREIRA, M.F.C. (2016). Prontuário de Toponímia Portuense. Porto: Edições Afrontamento [compre online].
  • SILVA, G. (2005). Passeios pelo Porto de outros tempos. Cruz Quebrada: Casa das Letras [compre online].
  • SILVA, F.R. (2020) Porto Liberal: Guia de arquiteturas, sítios e memórias. Porto: Esencia del Lugar [compre online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].
  • VILANOVA, J.C.V. (1833) Edificios do Porto em 1833. Porto: Biblioteca Pública Municipal [disponível online].

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