Um passeio à noite pelo Porto de há sessenta anos

Um passeio a pé depois de jantar é um bom hábito. E seria ainda melhor numa época em que não havia a concorrência da internet ou da televisão. E é isso que proponho hoje: uma volta pela Baixa do Porto de há sessenta anos. Venha daí!

Manuel de Sousa

Caro(a) leitor(a), este artigo foi tão popular  é, neste momento, o mais lido do meu blogue – que decidi procurar mais fotos noturnas da cidade. Mas, para variar, desta vez optei por imagens a cores e não a preto e branco. E selecionei um conjunto de fotografias com enquadramentos tirados ao nível da rua. Ou seja, não escolhi vistas panorâmicas, obtidas a partir de pontos altos, mas apenas fotografias que captassem o que qualquer pessoa poderia ver num passeio a pé pelo Porto.

Algumas destas fotografias foram tiradas ao entardecer, enquanto noutras já é noite fechada. As várias imagens foram captadas algures entre os inícios da década de 1960 e os inícios da década de 1970 e foram usadas em bilhetes-postais. Vamos, agora, utilizar estes postais do Porto à noite para ilustrar um passeio a pé pela Baixa, em mais um salto no tempo, recuando meia dúzia de décadas.

* * * * *

Estamos, então, entre os inícios da década de 60 e os inícios da década de 70 do século XX. Vivemos num país economicamente atrasado em relação ao resto da Europa Ocidental, sob um regime político totalitário, católico e socialmente conservador. Estamos numa época sem internet, sem computadores, nem telemóveis. Só há um canal de televisão, com emissões a preto e branco. Não há centros comerciais e a maioria das pessoas não tem automóvel. Mas os portuenses tentam fazer o melhor com o que têm, são hospitaleiros, afáveis e dotados de um forte espírito de entreajuda.

Nesta época do ano, em que os dias vão crescendo e as noites começam a ficar mais agradáveis, nada melhor do que dar uma volta pela cidade, para desmoer o jantar, antes de deitar.

Encontramo-nos na praça que homenageia o prof. Francisco Gomes Teixeira, eminente matemático e primeiro reitor da Universidade do Porto, fundada em 1911. E, por falar em universidade, temos aqui mesmo o edifício onde funcionam as Faculdades de Ciências e de Economia [atualmente, a Reitoria da Universidade do Porto].

Vista noturna da praça de Gomes Teixeira, c.1965 [bilhete postal Edições Coca | Porto Desaparecido]

No entanto, como o(a) caro(a) leitor(a) bem sabe, é a fonte, com os seus leões alados, que impõe a designação popular dada e este lugar: praça dos Leões. À noite, a iluminação elétrica confere à fonte dos leões uma beleza feérica, quase irreal...

À direita, passa um elétrico. É este o meio de transporte por excelência para deslocações dentro da cidade. No entanto, desde a introdução dos primeiros autocarros, em 1948, e dos primeiros troleicarros, em 1959, temos vindo a assistir a uma progressiva substituição dos elétricos por estes novos meios de transporte, tidos como mais modernos e rápidos. Um dia, ainda vamos ter saudades deles...

Ainda do lado direito, temos as igrejas gémeas do Carmo e dos Carmelitas e o quartel da GNR – no edifício do antigo convento dos Carmelitas.

Do lado esquerdo, ao fundo, vemos o café Âncora d'Ouro, que toda a gente conhece como o Piolho. Há várias explicações para justificar esta curiosa designação, mas ninguém sabe ao certo qual é a verdadeira. O que se sabe é que, a qualquer altura que se lá vá, encontrará de certeza muitos estudantes, principalmente das vizinhas faculdades. Os professores, geralmente, optam pelo, também próximo, café Progresso. O Piolho foi o primeiro café do Porto a comprar uma máquina italiana de espressos La Cimbali, o que propiciou a criação do neologismo regional de cimbalino, para designar o que em Lisboa se chama bica. Também foi o primeiro café do Porto a ter televisão, logo em 1957. Poucas pessoas têm um televisor em casa, primeiro porque é um aparelho caro e depois por causa da taxa obrigatória de 360 escudos por ano [informação de 1958]. Alguns compram um aparelho de televisão e "esquecem-se" de pagar a taxa. O problema surge quando, sem pré-aviso, a polícia lhes bate à porta e lhes revista a casa. Encontrando um televisor sem licença paga, é multa pela certa! 

Iniciando o nosso passeio nos Leões, descemos pelas ruas das Carmelitas e dos Clérigos, atravessamos a praça da Liberdade e passamos em frente à igreja dos Congregados. Na esquina com Sá da Bandeira deparamo-nos com dois polícias, de farda cinzenta [só em 1989, a PSP abandonará o cinzento, adotando um fardamento azul-escuro, idêntico ao da maioria das forças policiais do mundo], que conversam. A presença de polícia na rua é uma constante, para que nunca falte respeitinho, que "é muito bonito e eu gosto"  como diz todo o páter-famílias portuense!

Vista noturna da rua de Santo António (hoje, de 31 de Janeiro), c.1965 [bilhete postal Edições Coca | Porto Desaparecido]

Subimos a íngreme rua de Santo António – que foi de 31 de Janeiro entre 1910 e 1940  retomando depois ao nome original [após o 25 de Abril de 1974, voltar-se-á a chamar 31 de Janeiro]. Desde meados do século XIX, que a rua de Santo António é a principal rua comercial da cidade. Toda ela é um paraíso para os apreciadores de montras.

Em frente da sapataria Gentil fica a muito concorrida Livraria Bertrand, dependência do Porto da livraria fundada em Lisboa em 1732 [em 2010, a Bertrand será considerada a livraria mais antiga do mundo ainda em atividade pelo Guinness World Record].

Vista noturna da rua de Santo António (hoje, de 31 de Janeiro), c.1972 [Porto Desaparecido]

Subida a rua, chegamos à praça da Batalha, onde nos espera a igreja setecentista de Santo Ildefonso, cuja fachada, em 1932, foi inteiramente forrada de azulejos da autoria de Jorge Colaço. Os grandes painéis de néon, publicitando grandes marcas nacionais e internacionais, iluminam a noite e dão à cidade uma animação e um colorido muito especial.

Vista noturna da rua de Santa Catarina, a partir da praça da Batalha, c.1965 [bilhete postal Edições Coca | Porto Desaparecido]

E da Batalha, entramos na rua de Santa Catarina que – pelo menos no seu tramo inicial – é igualmente muito comercial, tendo a vantagem de ser relativamente plana, o que a torna excelente para um passeio descontraído. Cabeleireiros, relojoeiros, joalheiros, papelarias, sapatarias, pronto-a-vestir – de tudo podemos encontrar nesta rua.

Vista noturna da rua de Santa Catarina, c.1965 [bilhete postal Edições Coca | Porto Desaparecido]

Passamos o cruzamento com Passos Manuel e entramos para tomar um cafezinho no Majestic, talvez o café mais bonito e de maior prestígio da cidade. É muito frequentado pelos estudantes e professores da Escola Superior de Belas-Artes. São conhecidas as tertúlias animadas pelo escultor José Rodrigues e pelos pintores Armando Alves, Ângelo de Sousa e Jorge Pinheiro, popularmente conhecidos como os Quatro Vintesdevido à sua classificação final de curso.

Bem, distraímo-nos com a conversa e vejo agora que já são quase onze da noite! Vamos indo... Descemos Passos Manuel, atravessamos a praça de D. João I e sentimo-nos refrescados com os jogos de água da fonte da Confidente, devidamente iluminada.

Vista noturna da rua de Passos Manuel, a partir da praça de D. João I, c.1965 [Porto Desaparecido]

As pessoas vão recolhendo a suas casas. Atravessamos os Aliados, já desertos. Cruzamo-nos apenas com um guarda noturno a fazer a ronda habitual. Não nos podemos deitar tarde que amanhã é dia de trabalho!

Vista noturna do edifício da Câmara Municipal do Porto, c.1960 [bilhete postal Edições Coca | Porto Desaparecido]

E pronto, caro(a) leitor(a), é aqui que nos despedimos. Está feito o nosso passeio noturno pela Baixa do Porto, neste tempo indefinido, algures entre os inícios da década de 1960 e os inícios da década de 1970. Espero que tenha gostado. Bom descanso!

Gostou deste artigo? Leia também Passeio noturno pelo Porto das décadas de 1950/60.

Para saber mais:

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