Carros elétricos, troleicarros e autocarros do Porto

Em 1895, o Porto foi a primeira cidade da Península Ibérica a ter uma linha de transportes públicos movida a eletricidade. Muitas outras linhas se seguiram, atingindo o auge em 1950, com 150 quilómetros de trilhos. Entretanto, foram surgindo o autocarro e o troleicarro que, aos poucos, foram substituindo o elétrico. Venha conhecer melhor a história dos transportes públicos do Porto!

Manuel de Sousa

Como vimos anteriormente, em 1872, a Companhia Carril Americano do Porto criou a primeira rede de carruagens puxadas por mulas e circulando sobre carris – os comummente chamados americanos. Dado o sucesso do novo meio de transporte, dois anos depois surgiu uma empresa concorrente, a Companhia Carris de Ferro do Porto que foi ganhando, o que hoje chamaríamos, quota de mercado até que, em 1893, adquiriu a sua grande concorrente.

Durante alguns anos, ainda subsistiram meios de transportes concorrentes  caso dos célebres carros Ripert –, mas a Carris (nome abreviado pela qual a Companhia Carris de Ferro do Porto era mais conhecida) pensava já na concretização de um grande salto tecnológico: a tração elétrica.

Para suprimir o gado que peja a via pública

No mesmo ano em que absorveu a sua concorrente, a Carris solicitou à Câmara do Porto autorização para a "substituição, na tração dos seus carros, da força animal pela elétrica", acrescentando que tal inovação já estava a ser utilizada em diversas cidades da Europa e da América "com o mais completo êxito e aplauso público". Após descrever os pormenores técnicos da estação central que iria produzir a força motriz, em Massarelos, terminava o requerimento enumerando as vantagens do novo meio de transportes, entre as quais as de "suprimir por completo o gado que peja a via pública e de não deteriorar o pavimento das ruas". O requerimento obteve deferimento prontamente.

Carro elétrico na estrada de Carreiros (hoje, avenida de Montevideu), c.1905. De notar que, até 1928, em Portugal circulava-se pela esquerda [Aurélio da Paz dos Reis, CPF | Porto Desaparecido]

Convido o(a) leitor(a), sempre curioso(a), a saborear comigo as palavras com as quais o jornal O Comércio do Porto de 8 de setembro de 1895 noticiou, com indisfarçável deslumbramento, as maravilhas da tecnologia dos finais de Oitocentos: 

"Realizaram-se ontem as experiências e provas dinâmicas de carros americanos, impulsionados apenas pela ação elétrica. Graças à perseverança, inteligência, iniciativa e génio empreendedor do zeloso diretor da Companhia Carris de Ferro do Porto, o sr. José Ribeiro Vieira de Castro, está finalmente iniciada no nosso país a viação elétrica com todos os modernos aperfeiçoamentos. Às 10 horas e ¼ os membros da Comissão Oficial compareceram na estação da Arrábida, onde examinaram detidamente o material fixo, cuja instalação lhes mereceu todo o elogio e causou agradável impressão. É digno de ser visitado aquele magnífico estabelecimento pela perfeição de aparelhos e ótimo maquinismo. Numa enorme sala devem ser fixadas quatro máquinas a vapor e respetivos dínamos geradores de eletricidade. Por enquanto, está montada apenas uma.

Deixando aquele recinto, a Comissão passou para a casa dos trens, examinando com a maior minuciosidade todos os elementos de uma carruagem. Feito esse serviço, foi dada ordem de marcha até ao jardim da Cordoaria. Não podiam ser mais lisonjeiros os resultados da tração. De um movimento suave, cómodo e sem perigo, as carruagens elétricas realizam o máximo de perfeição de trânsito. Nelas se encontram todas as garantias de segurança, desde a magnífica iluminação elétrica até ao eficaz para-raios, desde os ótimos freios até à máxima robustez dos eixos e rodas. Feito aquele percurso com toda a facilidade, a comissão resolveu executar várias experiências entre Massarelos e a Cordoaria, com referência à velocidade e à ação dos freios, tanto elétricos como manuais. Escusado será dizer que os resultados excederam a expectativa.

Entre aqueles pontos, cuja distância é de 1.200 m, o carro subia sem o mais leve inconveniente, atingindo velocidades de 15 km/h. Numa rampa de 10%, da rua da Restauração, a carruagem galgava aquela pendente como se deslizasse por um forte declive. Em 7 minutos percorreu por várias vezes aquela extensão, dando aos observadores a mais evidente prova de completa segurança. À meia-hora da tarde estavam executadas as provas, regressando o carro à estação, onde o inteligente diretor da Companhia Carris de Ferro ofereceu aos membros da Comissão um lunch. Era quase 1 hora quando o sr. Vieira de Castro, pondo à disposição dos engenheiros o carro elétrico, os acompanhou até à Cordoaria, onde foi elogiado e abraçado por todos. Ao longo da linha estacionavam muitos indivíduos maravilhados por verem em movimento um trem sem motor visível.

Na próxima segunda-feira reúne a Comissão para elaborar o seu parecer. O dia de ontem fica registado no livro da civilização desta cidade."

Obtido o parecer favorável da Comissão Oficial, a linha Carmo-Arrábida foi eletrificada. Uma vez mais, o Porto fazia história nos transportes públicos: esta foi a primeira linha a tração elétrica a entrar ao serviço na Península Ibérica!

Comprado em 1904 pela Companhia Carris de Ferro do Porto, este foi o primeiro carro elétrico de bogies do Porto, equipado com quatro motores. Em 1972, foi vendido pelo STCP ao Rockhill Trolley Museum, dos EUA, onde ainda hoje se encontra [+info] [Foto Guedes, AHMP | Porto Desaparecido]

A rápida expansão da rede

Em poucos anos, os carros elétricos expandiram-se acabando por substituir os meios de transportes anteriores: os americanos, em 1904; os carros Ripert em 1910; a máquina, em 1914.

As novas linhas do elétrico acompanharam de perto a expansão das radiais da cidade. Foi com o elétrico que se povoaram as ruas e estradas para Monte dos Burgos, Amial, Paranhos, Conde Ferreira e Ponte de Rio Tinto. O mesmo é válido para as expansões para lá da Circunvalação e do Douro: Leça da Palmeira, São Mamede de Infesta, Ponte da Pedra, Areosa, Ermesinde, São Caetano, São Pedro da Cova, Rio Tinto, Devesas, Coimbrões, Santo Ovídio (Gaia), entre muitos outros.

Dito de uma forma simples, o carro elétrico é movido por motores de corrente contínua, sendo a energia elétrica fornecida por uma linha aérea, à qual o carro está ligado através de um trólei (nome dado à vara que liga o veículo à linha). A passagem à terra é feita através dos próprios trilhos do carro elétrico.

Elétrico n.º 115, na linha 13, vindo de Santo Ovídio, c.1912. Nesta fotografia, é bem visível a colocação do segundo trólei (do lado esquerdo), apenas usado na travessia da ponte [Porto Desaparecido]

O atravessamento da ponte Luís I pelos carros elétricos apresentava alguma complexidade técnica. Como os carris montados sobre a ponte metálica não davam passagem à terra, a solução encontrada foi a de ligar um trólei extra a uma segunda linha aérea existente apenas sobre a ponte. Assim, em cada extremo do tabuleiro da ponte, havia um funcionário da Carris que, à entrada, colocava o segundo trólei e, à saída, o retirava.

Carro elétrico número 255 no término da linha 10, no largo da Venda Nova, Rio Tinto, 1960 [P. Eaton | Porto Desaparecido]

Em meados do século XX, a rede dos elétricos atingiu o seu apogeu, com 38 linhas, 150 quilómetros de via e um parque de material circulante de 193 carros elétricos e 24 reboques.

Em 1946, a Companhia Carris de Ferro do Porto passou para a alçada da Câmara Municipal do Porto, adotando a designação de Serviço de Transportes Coletivos do Porto (STCP), se bem que o nome popular de "Carris" ainda persistiu durante duas ou três décadas.

Carro elétrico no viaduto de Gonçalo Cristóvão, 1973 [Mega Anorak | Porto Desaparecido]

Autocarros e troleicarros

Dois anos depois, o STCP inaugurava a primeira carreira de autocarros da cidade do Porto: a carreira C que partia da avenida dos Aliados e tinha o seu término no Carvalhido. Também em 1948 foram inauguradas novas carreiras: a linha D, para as Antas; a linha A, para a Foz; e a linha E, para Paranhos.

Estes primeiros autocarros eram da marca Daimler, com chassis provenientes da Inglaterra, carroçados na firma Dalfa, de Ovar. Tinham a particularidade de ter o volante à inglesa, ou seja, do lado direito do veículo. Inicialmente amarelos, em 1959 os autocarros foram pintados de verde.

Autocarro da marca Daimler, com o volante do lado direito do veículo, 1973 [Mega Anorak | Porto Desaparecido]

Em 1959, foram introduzidos os primeiros troleicarros, com o objetivo de substituir os carros elétricos na ponte Luís I, onde circulavam desde 1905. A justificação dada foi a de que a passagem dos elétricos estava a causar a corrosão eletrolítica da ponte metálica. Assim, a ponte Luís I passou a ser atravessada pelos tróleis das linhas 31 (que funcionou até 1978), 32, 33 e 36 (que persistiram até 1993).

Troleicarro no tabuleiro inferior da ponte Luís I, em 1979 [Porto Desaparecido]

A ligação a Gaia foi o primeiro revés dos elétricos. Muitos outros se seguiriam, com os tróleis e os autocarros a dominarem progressivamente. Em 1968, a rede de elétricos foi reduzida para 38 quilómetros de via, percorrida por 127 elétricos; em 1978, a rede dispunha de 21 quilómetros de via e 84 veículos; em 1988, apenas 18 quilómetros de linha e 50 veículos. Nas décadas de 1970 e 1980, dezenas de carros elétricos foram vendidos para diversos países onde, muitos deles, continuam a operar até aos nossos dias. Atualmente, no Porto, persistem apenas três linhas – 1, 18 e 22 –, acima de tudo com intuitos turísticos.

Carro elétrico n.º 122 em Dallas, EUA, 2018. Elétrico portuense, esteve ao serviço entre 1909 e 1978, quando foi adquirido pela americana San Francisco's Municipal Railway. Atualmente, circula em Dallas [+info] [Renee Groskreutz | Porto Desaparecido]

Menos sorte tiveram os troleicarros, dos quais nenhum sobrevive em funcionamento entre nós. Apesar do seu sucesso inicial, a partir da década de 1980, o elevado tráfego automóvel começou a colocar sérias dificuldades operacionais aos tróleis, tendo a rede acabado por ser totalmente encerrada no final de 1997.

Trólei de dois andares na praça da Liberdade, 1972 [Old Portugal | Porto Desaparecido]

Em 2000, a quase totalidade da frota de tróleis do Porto foi vendida para o Cazaquistão, onde continuaram a circular na cidade de Almaty durante muitos anos. Para a constituição de um futuro Museu do Troleicarro do Porto, foi preservado um exemplar de cada um dos modelos que circularam na cidade.

Troleicarro Efacec-Caetano, vendido pelo STCP, a circular em Almaty, Cazaquistão, 2005 [almaty-trolleybus.narod.ru]

E assim terminamos este artigo dedicado aos elétricos, tróleis e autocarros do Porto. Convidámo-lo(a) a visitar os álbuns Transportes ferroviários desaparecidos e Transportes rodoviários desaparecidos da página Porto Desaparecido, onde encontrará centenas de fotografias destes meios de transportes públicos. A Páscoa já passou, mas continue a evitar deslocações desnecessárias. Não facilite. Se possível, fique em casa. Até à próxima!

Gostou deste artigo? Leia, também, outros artigos sobre transportes do Porto:

P.S. - Os meus agradecimentos ao Pedro Rocha pelas suas sugestões.

Para saber mais:

  • ABREU, A.B. (1981). A evolução da cidade do Porto e os sistemas dos transportes. Revista de História, vol. 4, pp. 193-201 [disponível online].
  • ALVES, J.F. (2000). Nos trilhos da cidade: Aspectos históricos dos transportes colectivos no Porto. Revista da Faculdade de Letras - História, série III, vol. 1, pp. 101-112 [disponível online].
  • MARTINS, F.P. (2007). O carro eléctrico na cidade do Porto. Porto: Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto [disponível online].
  • PACHECO, E.M.T. (1992). Os transportes colectivos rodoviários no Grande Porto. Porto: Revista da Faculdade de Letras - Geografia. I série, vol. VIII, pp. 5-64 [disponível online]
  • PEREIRA, M.C. (1995). Os velhos eléctricos do Porto. Porto: Soc. Editorial Notícias da Beira Douro.
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].
  • VASCONCELOS, A. (2014) A ponte Luiz I. Porto: Edições Afrontamento [compre online].
  • VASCONCELOS, A. (coord.) (2010). Troleicarros do Porto: Quatro décadas na cidade. Porto: Ordem dos Engenheiros Região Norte [compre online].

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