Lady Jackson e o americano do Porto

Nestes dias de confinamento, que tal darmos um salto até ao Porto oitocentista e experimentar viajar nos seus transportes públicos? À nossa disposição temos a liteira, a cadeirinha, o carroção, o char-à-bancs, o cavalo e a mula. E não nos podemos esquecer de experimentar a novidade de 1872, uma modernice que vem do outro lado do Atlântico, a que todos chamam o americano. Vamos depressa, caro(a) leitor(a)! Atravessemos a rua, que ele está quase a partir! Mas olhe bem para o chão, porque os excrementos de animais estão por todo o lado...

Manuel de Sousa

Carro americano [Museu do Carro Eléctrico | Porto Desaparecido]

Cadeirinhas e liteiras

Até meados do século XIX, as deslocações dentro da cidade do Porto são feitas a pé ou – para os mais abonados – a cavalo. E, pelo menos desde 1669, no Porto há também a liteira e a cadeirinha. Elegante e delicada, assente sobre varais que dois lacaios carregam, a cadeirinha é, sobretudo, o transporte individual feminino. É usada para transportar um enfermo, levar uma senhora à missa ou permitir um encontro com discrição. Já para duas ou mais pessoas, a liteira é o veículo indicado. De maiores dimensões, em vez de criados são os machos que asseguram o transporte, devidamente guiados por um liteiro.

Viagem em liteira [Biblioteca Nacional Digital | Porto Desaparecido]

Carroções e trens de praça

Para deslocações fora do centro – para ir a banhos ao mar, por exemplo –, em 1840 aparece o carroção, puxado por uma junta de bois e com bancos laterais que já permitem transportar oito a dez pessoas. Este é o primeiro serviço de transporte de passageiros urbano, com caráter regular, de que há notícia. Mas, caro(a) leitor(a), não espere grande conforto e, muito menos, rapidez. Todos conhecem o carroção precisamente pela sua exasperante lentidão...

Para um serviço mais expedito e completamente personalizado, existem as caleches de aluguer e os trens de praça (correspondentes aos táxis), apesar dos seus elevados preços os tornarem acessíveis a poucos.

Caleches de aluguer em frente ao palácio da Bolsa, c.1880 [Aurélio da Paz dos Reis | Porto Desaparecido]

Burros, mulas e carruagens

Em 1851, surge um novo tipo de veículos no Porto, o char-à-bancs (aportuguesado para charabã). São carruagens mais modernas, puxadas por dois ou quatro cavalos, com capacidade para um grande número de passageiros, sentados dentro do veículo, mas também no tejadilho – onde melhor se sente a emoção da viagem! Na verdade, dado o péssimo estado de grande parte das vias, estes meios de transporte são muito desconfortáveis, com os passageiros aos solavancos e cobertos de pó.

E, é claro, há também os burros e as mulas, autênticos todo-o-terreno, com tração às quatro patas! Na sua obra As praias de Portugal: Guia do banhista e do viajante, de 1876, Ramalho Ortigão (1836-1915), escrevendo na Foz do Douro, refere a "Rosa das Burras, cujo nome provinha do seu estabelecimento em que se alugavam as mulinhas cavalgadas para a viagem a Leça".

A inovação de Nova Iorque

Entretanto, no dia 26 de novembro de 1832, à mesma latitude do Porto, mas 5.300 quilómetros mais para ocidente, um tal John Stephenson (1809-1893) tem a ideia genial de pôr uma carruagem puxada a cavalos a circular sobre trilhos. A inovação nova-iorquina, patenteada em 1833, é rapidamente adotada em todas as grandes cidades americanas e europeias. E a notícia não tarda a chegar ao Porto.

Comboio a vapor (em plataforma elevada) e carro americano (em baixo, à direita) em Nova Iorque, c.1870 [Wellcome Library | Wikimedia Commons]

Em 1858, Albino Francisco de Paiva Araújo solicita à Câmara Municipal do Porto uma concessão para explorar um serviço de caminho de ferro, "do tipo americano" até à Foz. Infelizmente, este pedido acaba por não ter provimento.

O barão de Trovisqueira

No entanto, uma dúzia de anos depois, o barão da Trovisqueira (1824-1898) tem melhor sorte. A 15 de agosto de 1870, este brasileiro de torna-viagem natural de Vila Nova de Famalicão, obtém "autorização para estabelecer à sua custa, na estrada pública entre a cidade do Porto e a povoação da Foz, podendo prolongar-se até Matosinhos, um caminho de ferro para transportes de passageiros e mercadorias, servido por cavalos".

Esta concessão, complementada por uma outra de um ramal entre a Cordoaria e Matosinhos – via rua da Restauração, alameda de Massarelos e Foz do Douro –, acaba por ser explorada por uma empresa especialmente criada para o efeito e que toma o nome de Companhia Carril Americano do Porto à Foz e Matosinhos, começando a operar em 1872. Isto faz do Porto a primeira cidade do país a ter uma rede destas carruagens puxadas por mulas e circulando sobre carris. Os veículos são popularmente conhecidos como americanos

A inauguração deste novo serviço constitui um grande acontecimento na vida da cidade. Da rua dos Ingleses (Infante) a Matosinhos, a viagem custa 120 réis, 40 réis da Cordoaria a Massarelos e 80 réis da Cordoaria à Foz. A partida dos carros é feita de meia em meia hora, desde as seis da manhã às oito da noite, sendo o início da viagem assinalado com um toque de corneta.

A empresa informa que nos seus carros não são admitidas "as pessoas em estado de embriaguez, as que se não transportarem por seu próprio pé, os cegos sem pessoa que os acompanhe, as pessoas afetadas de moléstias repugnantes, as que se apresentarem em estado imundo e as descalças". Aos fumadores solicita-se que "procurem não ser incómodos, sobretudo para as senhoras".

Anúncio da abertura provisória da linha de carros americanos, 9 de março de 1872 [Jornal do Porto | Porto Desaparecido]

O relato de uma viajante inglesa

Lady Jackson (1824-1891), uma conhecida viajante inglesa de passagem pelo Porto, tem oportunidade de experimentar este novo meio de transporte. No seu livro A formosa Lusitânia (publicado originalmente em 1874, com o título Fair Lusitania, e prontamente traduzido para português por Camilo Castelo Branco), deixa-nos um relato curioso do americano e do comportamento social dos portuenses:

"Os carros são espaçosos e arejados, sem sol nem poeira: toda a gente os frequenta. Começaram a circular o ano passado, segundo me dizem, e têm tido grande êxito […]. Algumas vezes cheguei ao carro no momento em que partia já todo ocupado. O condutor abria a porta e dizia: 'Uma senhora quer entrar'. Imediatamente, erguiam-se três ou quatro cavalheiros e eu assentava-me no lugar do sujeito mais próximo, o qual cortejando-me, saía para fora. Um inglês decerto não se levantaria para que uma mulher se sentasse no seu lugar. E provavelmente, quando as portuguesas, lá no futuro, se emanciparem, como eu lhes desejo, à semelhança das suas irmãs do Norte [da Europa], igualando-se ombro a ombro com os homens, será tão rara em Portugal como está sendo em Inglaterra aquela espécie de deferência cortesã e galantaria para com o 'sexo mais frágil' – constituído forte pela concorrência à vida comum."

E é aqui que me despeço, prezado(a) leitor(a). Querendo continuar a viagem pelos transportes urbanos do Porto, pode explorar os álbuns Transportes rodoviários e Transportes ferroviários da página Porto Desaparecido ou ler alguma da bibliografia que lhe sugiro abaixo. Obrigado por me acompanhar e continuação de boa viagem!

Gostou deste artigo? Leia, também, outros artigos sobre transportes do Porto:
Para saber mais:
  • ABREU, A.B. (1981). A evolução da cidade do Porto e os sistemas dos transportes. Revista de História, vol. 4, pp. 193-201 [disponível online].
  • ALVES, J.F. (2000). Nos trilhos da cidade: Aspectos históricos dos transportes colectivos no Porto. Revista da Faculdade de Letras - História, série III, vol. 1, pp. 101-112 [disponível online].
  • JACKSON, C.C.L. (1877). A formosa Lusitania. Porto: Livraria Portuense Editora [disponível online].
  • MARTINS, F.P. (2007). O carro eléctrico na cidade do Porto. Porto: Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto [disponível online].
  • ORTIGÃO, R. (1876). As praias de Portugal: Guia do banhista e do viajante. Porto: Livraria Universal [disponível online].
  • PACHECO, E.M.T. (1992). Os transportes colectivos rodoviários no Grande Porto. Porto: Revista da Faculdade de Letras - Geografia. I série, vol. VIII, pp. 5-64 [disponível online]
  • PEREIRA, M.C. (1995). Os velhos eléctricos do Porto. Porto: Soc. Editorial Notícias da Beira Douro.
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros.

Comentários

Artigos mais populares:

Ponte Luís I: história de uma obra única

Santa Catarina: da rua Formosa ao Marquês

Santa Catarina: da Batalha à rua Formosa

A fascinante história da expansão da Boavista

Serra do Pilar: mosteiro, morro e aqueduto