Santa Catarina: da Batalha à rua Formosa

Desde a década de 1950 que, no Porto, a rua de Santa Catarina é sinónimo de compras. E, apesar das pressões a que tem estado sujeita, Santa Catarina tem resistido sempre. Nem quando apareceram as chamadas "catedrais do consumo", espalhadas por diversos pontos da periferia, Santa Catarina esmoreceu. Este é um autêntico shopping ao ar livre, em pleno centro da cidade.

Manuel de Sousa

Rua de Santa Catarina, c.1962 [flickr.com | Porto Desaparecido].

Mas Santa Catarina é muito mais do que uma rua comercial. Aqui viveram barões e viscondes, nasceram escritores, morreram monarcas, organizaram-se debates e tertúlias, publicaram-se livros e jornais, instalaram-se importantes instituições, funcionaram estabelecimentos de ensino, realizou-se o primeiro filme português. E este é, também, o local que muitos políticos escolhem para as suas arruadas em tempos de campanha eleitoral.

Estou em crer que o facto desta artéria urbana central ser relativamente plana e ter sido transformada em via pedonal há várias décadas, muito contribuiu para a consagração do local como espaço comercial e de lazer.

Por tudo isso, estimo(a) leitor(a), quero convidá-lo(a) a vir comigo percorrer os 1.540 metros da rua de Santa Catarina, começando na praça da Batalha e terminando, lá em acima, na praça do Marquês de Pombal. Aceita o desafio? Vamos lá, então.

Quem foi Santa Catarina?

Antes de mais, esta é pergunta que se impõe. 

Pois bem, na verdade, o conhecimento da vida de Santa Catarina assenta mais nas tradições religiosas do que em testemunhos historicamente comprovados. Terá vivido no século IV, na cidade de Alexandria, no Egito, que, na época, fazia parte do império romano. Com apenas 18 anos de idade, Catarina de Alexandria sofreu o martírio por ordem do imperador Maximino Daia (270-313) que ordenou que ela fosse despedaçada numa roda de navalhas, acabando por ser decapitada... Uma coisa atroz! O seu dia celebra-se a 25 de novembro. É padroeira de filósofos, estudantes, livreiros e, também, das costureiras. Na iconografia é geralmente representada com uma roda dentada e uma palma  que indica que foi mártir  e, às vezes, também uma espada.

No século XX, levantaram-se dúvidas quanto à vida e à própria existência de Catarina de Alexandria. Em 1969, tais dúvidas terão levado mesmo a Igreja Católica a retirar a celebração do dia 25 de novembro do Calendário Litúrgico Universal. Mais tarde, a comemoração de Santa Catarina foi reintroduzida, mas como "opcional".

Seja como for, Santa Catarina é objeto de grande devoção tanto na Igreja Católica, como na Anglicana, na Luterana e na Ortodoxa. O nome dado a esta rua portuense está relacionado com a capela das Almas, como veremos mais à frente.

Estátua de Santa Catarina, por cima da entrada da relojoaria Perfecta, na esquina das ruas de Santa Catarina e Passos Manuel, 2023 [Manuel de Sousa].

E assim nasceu uma rua

Hoje em dia pode ser difícil de imaginar, mas em meados do século XVIII, a norte da igreja de Santo Ildefonso tudo eram vastas quintas, hortas e campos cultivados, irrigados pelos numerosos regatos que cruzavam esta paisagem rústica. Partindo do largo de Santo Ildefonso existia um antigo caminho rural – conhecido como a Corredoura – que, serpenteando entre os campos, ligava a Fradelos (sensivelmente a zona compreendida entre as atuais ruas de Fernandes Tomás, Santa Catarina, Gonçalo Cristóvão e Bonjardim).

Em 1784, João de Almada e Melo (1703-1786), governador da Relação do Porto e responsável pela Junta de Obras Públicas (JOP), elaborou um Plano de Melhoramentos, considerado o primeiro plano geral de urbanização da cidade do Porto. Na prática, não era mais do que uma lista das obras em curso – é preciso ver que a JOP levava já 26 anos de atividade – e as que estavam ainda em projeto. 

Nele se previa a abertura e/ou melhoraria de cinco vias de expansão da cidade, como se o Porto fosse uma mão aberta. A palma da mão seria a cidade consolidada pela muralha fernandina e os cinco dedos, as cinco vias que, saindo das portas do velho burgo, se estendiam pelo território de forma radiante.

E um desses "dedos" era aquela que foi inicialmente designada por rua Nova de Santa Catarina, uma vez que já existia a rua de Santa Catarina das Flores que, entretanto, se simplificou para rua das Flores. Era um novo e retilíneo arruamento que teve o risco do arquiteto Teodoro de Sousa Maldonado (1759-1799). Cruzava terrenos da quinta do Adro – junto a Santo Ildefonso –, da quinta do capitão-mor de Arouca, da quinta de Lamelas, da quinta do Ferro e da quinta de Fradelos.

Quando o Plano de Melhoramentos foi feito, a rua de Santa Catarina tinha sido aberta há coisa de meia dúzia de anos, entre Santo Ildefonso e o local onde agora está o Grande Hotel do Porto. Mas o Plano de Melhoramentos estabeleceu o seu prolongamento até à Aguardente (praça do Marquês de Pombal). Este troço chamou-se inicialmente rua Bela da Princesa e só a partir de 1860 foi anexada a Santa Catarina. Voltaremos a este assunto mais à frente... No mesmo documento, previa-se também a abertura das ruas de Santo António (hoje, 31 de Janeiro) e Formosa.

Ora bem, feitos estes considerandos iniciais, e antes que o(a) prezado(a) leitor(a) se aborreça e desista de me acompanhar, vamos, sem mais delongas, começar a percorrer a rua de Santa Catarina, 250 anos depois dela ter sido inicialmente rasgada. E começamos onde Santa Catarina começa, ao cimo da rua de 31 de Janeiro.

A Ourivesaria Reis, a trincheira da morte e a Livraria Latina

Corria o ano de 1906 quando dois irmãos – Serafim e Manuel Reis – receberam de herança o estabelecimento comercial que o seu pai abrira em 1880, no cimo da rua de Santo António (hoje, 31 de Janeiro). Chamava-se "Reis, Filhos, Lda.", mas era conhecida como Ourivesaria Reis. Como o negócio corria de feição  com encomendas de baixelas em ouro e prata, com desenho a cargo de Rafael Bordalo Pinheiro , os irmãos decidiram alugar o rés do chão do edifício contíguo, já no gaveto com Santa Catarina. No entanto, não satisfeitos com o aspeto austero do prédio – datado de 1823 – decidiram fazer algo em grande: uma fachada dupla, composta por duas montras de quatro metros e meio por três metros de altura (uma voltada para Santo António e outra para Santa Catarina), com um átrio de entrada no cunhal das duas ruas, coroado por um busto feminino. Já agora, diga-se que, alegadamente, este será o busto de Dinamene, a amada macaense de Luís de Camões que terá perecido no naufrágio no delta do rio Mekong, na Indochina. Tudo em ferro forjado, executado na Fundição de Massarelos – propriedade da Companhia Aliança – com elementos decorativos e escultóricos ao estilo Arte Nova, um projeto da responsabilidade do arquiteto José Teixeira Lopes (1872-1919).

E esta não terá sido obra fácil de executar e de colocar no local, a julgar pelo relato que, em dezembro de 1906, nos faz a revista O mundo elegante: "foi preciso fazer cortes no prédio até à altura do primeiro andar e sustentá-lo no ar durante algumas semanas, o tempo bastante para construir por baixo a armação de aço em que aquela parte agora assenta. Este trabalho foi executado com toda a proficiência, embora melindroso como era, e tudo ficou assente com precisão matemática". Esta é, sem dúvida, uma devanture  como dizem os franceses  que ainda hoje causa grande admiração!

Mas nem tudo são rosas na história da nossa cidade. E alguns episódios sangrentos passaram-se exatamente no local onde nos encontramos! Explico rapidamente:

No dia 28 de maio de 1926, deu-se um golpe militar em Braga que rapidamente se estendeu a todo o país. Os revoltosos demitiram o governo, fecharam o parlamento e impuseram uma ditadura. Mas, como o Porto não é de se ficar, a 3 de fevereiro de 1927 eclodiu na cidade uma rebelião armada que foi a primeira tentativa consequente de derrube da ditadura militar. O quartel-general da revolta instalou-se no teatro de São João, sendo fortificados todos os acessos à praça da Batalha. Num deles, precisamente na bifurcação de 31 de Janeiro com Santa Catarina, as defesas montadas infligiram tamanhas baixas no inimigo que a posição ficou conhecida como a trincheira da morteA revolta foi breve. Cinco dias foram suficientes para a sufocar com tropas fiéis ao regime, vindas de Lisboa. Mas, para além dos estragos causados em muitos edifícios pelos bombardeamentos, incêndios e tiroteios, pelas ruas do Porto – nomeadamente, por Santa Catarina – ficou espalhada mais de uma centena de mortos, entre militares e civis, e 360 feridos!

A trincheira da morte no início de Santa Catarina, vendo-se a Ourivesaria Reis, à direita, 1927 [Porto Desaparecido].

Se calhar, nem o(a) próprio(a) leitor(a) tinha bem noção do episódio trágico que se passou exatamente neste local... Pois bem, saiba que, neste blogue, já escrevi um artigo sobre as convulsões sociais e políticas vividas nas redondezas da praça da Batalha, que pode ter interesse em ler.

Bem, regressemos à atualidade. A entrada de Santa Catarina, do lado direito, é marcada pela Livraria Latina, com o busto de Camões no topo da fachada. O autor do busto foi António Cruz (1907-1983), mais conhecido pelas aguarelas que fez do Porto e pela sua aparição no filme de 1956 O pintor e a cidadede Manoel de Oliveira (1908-2015)E, como não podia deixar de ser, o rosto de Camões está voltado para a fachada da Ourivesaria Reis, precisamente para a sua amada Dinamene.

A Livraria Latina foi fundada em 1942 por Henrique Perdigão (1887-1944). Logo no ano da fundação da livraria, Perdigão foi responsável pela organização de um concurso literário, o primeiro realizado em Portugal, que esteve na origem das edições da Coleção Latina. O primeiro vencedor foi um jovem que se apresentou com o pseudónimo Simplicimus, concorrendo com a obra Vento vindo dos montes. Tratava-se, na verdade, de José Hermano Saraiva (1919-2012) que, mais tarde, se tornaria num dos maiores divulgadores da história e num excelente comunicador televisivo. Mas o concurso literário da Latina revelou outros grandes autores, tais como António Botto (1897-1959), Teixeira de Pascoaes (1877-1952) e João Gaspar Simões (1903-1987). Diz-se que, durante o Estado Novo, a Latina vendia, por baixo do balcão, livros proibidos pelo regime.

Dos Porfírios à Palladium

Uns metros mais à frente, no número 39, também com uma fachada de ferro forjado, funcionou – desde o início da década de 1950 e durante cerca de meio século – a loja de Porfírio Augusto de Araújo. Chamava-se Porfírios e acho que não exagero se dizer que foi um estabelecimento que marcou gerações!

Rua de Santa Catarina, vendo-se a loja dos Profírios, à esquerda, c.1965 [Restos de Colecção | Porto Desaparecido]

A década de 1960 foi um tempo de revoluções na moda, na música e nos costumes. Nessa altura, o visionário Porfírio começou a visitar regularmente as grandes cidades europeias – principalmente Londres  de onde trazia peças de roupa e acessórios modernos e irreverentes. Em Portugal, fabricava imitações desses modelos, adaptadas às magras bolsas locais. Os Porfírios foram os primeiros em Portugal a comercializar calças à boca de sino e camisas floridas com colarinhos compridos para homem. Não sei se o(a) sempre atento(a) leitor(a) se lembra – ou, sequer, se é desse tempo – que a fama dos Porfírios era tal que as pessoas andavam com autocolantes com o símbolo da loja nos carros, nas motas, nos capacetes e nas pastas da escola. Porfírios era uma autêntica marca de culto!

Um pouco adiante, também do lado esquerdo, mas já no gaveto de Santa Catarina com a rua de Passos Manuel, ergue-se o edifício comummente conhecido como Palladium. Trata-se de um projeto do arquiteto José Marques da Silva (1869-1947) para uma importante firma de fabrico e comercialização de mobiliário, os Armazéns Nascimento que aqui estiveram instalados entre 1914 e 1927.

Mais tarde, o edifício foi reconvertido para café pelo arquiteto Mário de Abreu (1908-1996). Anunciado como "o maior da Península", o café Palladium foi inaugurado em 1940 por António Ferro (1895-1956), diretor do Secretariado de Propaganda Nacional. Ostentava uma decoração de grande efeito, com colunas de vidro e néones. Tinha sala de café no rés do chão, salão de chá no piso sobrelevado, sala de jogos no primeiro andar, bilhares no segundo e cabaré no terceiro, com entrada e elevador exclusivos. Eram presença assídua no Palladium Jorge de Sena, José Régio, Adolfo Casais Monteiro, Sant'Anna Dionísio, Nadir Afonso, Júlio Resende e outros. O café funcionou até 1974.

Piso térreo do café Palladium, vendo-se o vão central do edifício, 1940. Obras posteriores de remodelação e adaptação destruíram grande parte do interior [Alvão | Porto Desaparecido].

Após mais obras de remodelação e adaptação – que destruíram grande parte do interior –, reabriu como estabelecimento comercial: as Galerias Palladium. Nos anos mais recentes passou a ser ocupado por uma loja da Fnac e outra da C&A.

Na atualidade, uma das grandes atrações turísticas deste edifício é o seu relógio com carrilhão, voltado para Passos Manuel. De três em três horas, enquanto batem as horas, por baixo do relógio abrem-se portas de onde saem quatro figuras ligadas à cidade: São João Batista, o infante D. Henrique, Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco. E é ver as turbas de turistas que aí se amontoam, com os seus telemóveis em riste, partilhando estes breves instantes com o mundo, através das suas redes sociais…

Na outra esquina está um bonito prédio, projetado em 1923 pelo arquiteto Francisco de Oliveira Ferreira (1884-1957) – autor do risco de edifícios como o café "A Brasileira", a sede dos Fenianos, a Câmara Municipal de Gaia ou o edifício Heliantia, em Valadares. Aqui funcionou a Casa Inglesa, grande estabelecimento de pronto-a-vestir da cidade. A partir de 2011, este espaço passou a ser ocupado pela loja principal  ou flagship store, como agora é uso dizer-se  da Marcolino Relojoeiro, empresa que abriu portas em 1926, na rua de Santo Ildefonso. E temos que concordar que eles têm feito um excelente trabalho de restauro e valorização deste edifício!

Rua de Passos Manuel

E temos a rua de Passos Manuel à nossa frente. Na verdade, o homem chamava-se Manuel da Silva Passos (1805-1862), mas ficou conhecido como Passos Manuel. Natural de Guifões, foi advogado, político liberal, parlamentar brilhante e várias vezes ministro, mas nunca viveu nesta rua. Quem aqui viveu foi o seu irmão, José da Silva Passos (1802-1863). A rua foi aberta em duas fases. Na década de 1870, em terrenos pertencestes à empresária Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha, abriu o lanço entre Santa Catarina e Sá da Bandeira – que estava a ser rasgada pela mesma época. No virar do século XIX para o XX, abriu a parte entre Santa Catarina e o, então, largo de Santo André (a atual praça dos Poveiros), em terrenos da quinta de Lamelas. O nome Passos Manuel foi-lhe dado logo em 1877 e, coisa que poucas vezes acontece entre nós, a rua nunca conheceu outro nome.

Atravessada a passadeira junto ao edifício Palladium deparamo-nos com a Perfecta, ourivesaria histórica que abriu portas em 1920. No cunhal da fachada está uma pequena estátua de Santa Catarina, datada de 1961, com a célebre roda dentada na mão (ver acima, segunda fotografia deste artigo). A imagem que, hoje em dia, passa praticamente despercebida ao transeunte apressado, era objeto de devoção das costureiras que lhe prestavam grande homenageavam no dia 25 de novembro, dia de Santa Catarina. A iniciativa era patrocinada pelo, então, Grémio Regional da Indústria de Vestuário do Norte e incluía atuação de ranchos folclóricos, banda de música, cortejo das costureiras, desfile dos bombeiros e até casamentos. O ritual foi abandonado após o 25 de Abril. O que foi pena! Fazem falta tradições populares deste género na cidade. Ora, veja como era em 1973.

Do outro lado da rua, o alinhamento dos edifícios foi bastante tardio e só se verificou na segunda década do século XX. Até aí, nas primeiras dezenas de metros desse troço, os edifícios do lado direito da rua estavam recuados em relação aos demais, desenhando uma ampla curva e criando um pequeno largo. Este era o ponto de encontro das costureiras da rua, o local onde os saltimbancos mostravam as suas habilidades e, por ocasião das festas públicas, aqui se montava um coreto para atuação de bandas filarmónicas. No primeiro andar da casa armoriada, que ficava na esquina, tinha consultório o Dr. Alfredo Nazaré (Nazareth, na grafia da época), um dos melhores dentistas do Porto da passagem do século XIX para o seguinte. Duas casas ao lado, Domingos Alvão abriu a sua casa fotográfica, como veremos mais adiante...

Esquina de Santa Catarina com Passos Manuel, vendo-se os edifícios primitivos, ainda não alinhados com a rua, 1913 [Alvão | Porto Desaparecido].

Mas voltemos à atualidade e ao primeiro edifício que hoje nos aparece, fazendo gaveto com Passos Manuel. Aqui, no número 108, funcionou a Liga Portuguesa de Profilaxia Social, fundada em 1924. A iniciativa foi pioneira em Portugal em termos de intervenção médica junto das populações e antecedeu a criação da rede de dispensários de higiene social. As preocupações centravam-se nos muitos problemas de saúde pública do Porto de há 100 anos: alcoolismo, tuberculose, tétano, sífilis, lepra, prostituição infantil, entre outros. A instituição continua a existir, agora na rua de Sant'Ana, centrando a sua ação na vertente educativa e no apoio domiciliário, sobretudo nas zonas mais necessitadas.

O café Majestic

E eis que chegamos ao célebre café Majestic, sobejamente conhecido por todos!

Entre 1991 e 1993 viveu no Porto uma jovem britânica chamada Joanne. Tinha o seu ganha-pão num instituto de línguas na avenida Fernão de Magalhães, onde era professora de inglês. Mas o que ela gostava mesmo era de escrever. Na época, começara a trabalhar num livro infantil que tinha por herói um jovem rapaz órfão, a que deu o nome de Harry Potter. Alguns anos mais tarde, o livro foi publicado e tornou-se um sucesso e Joanne ficou mundialmente conhecida como J.K. Rowling (n. 1965).

Ora, como o(a) caríssimo(a) leitor(a) muito bem sabe, há lugares no Porto que apregoaram aos quatro ventos ter uma ligação umbilical a J.K Rowling, sem que ela nunca lá tivesse posto os pés. Pois bem, no caso do Majestic, foi a própria a confirmar publicamente ter sido este o café mais bonito onde ela já escreveu.

Com projeto do arquiteto João Queirós (1892-1982), o Majestic foi inaugurado há pouco mais de cem anos, com a presença do piloto aviador Gago Coutinho (1869-1959). Desde a sua abertura que foi considerado um café luxuoso e aristocrático, muito devido à decoração ao estilo Belle Époque. Numa crónica para a revista Ilustração Portuguesa, André de Moura louvava-o assim: "Acaba de dar-se entre nós o exemplo do que deva ser um café. Trata-se do novo estabelecimento desta classe que vem de inaugurar-se num dos grandes pontos centrais do Porto, à rua de Santa Catarina. É um dos mais nobremente sumptuosos que conhecemos, pelo que justifica bem o seu título: Majestic."

Frequentaram o café nomes importante da cultura nacional, como Teixeira de Pascoaes, António Nobre, Leonardo Coimbra e Óscar Lopes. O café foi, também, lugar de frequência assídua de estudantes e professores da Escola Superior de Belas-Artes do Porto (ESBAP). Algumas tertúlias foram animadas pelos escultores José Rodrigues (1936-2016) e Ângelo de Sousa (1938-2011) e pelos pintores Armando Alves (n. 1935) e Jorge Pinheiro (n. 1931)  eram conhecidos como os Quatro Vintes, por todos terem terminado os respetivos cursos na ESBAP com vintes valores.

Em 1983, o Majestic foi classificado como imóvel de interesse público.

Edifícios da Fiat Portuguesa, Fotografia Alvão e Café Majestic, c.1940 [Alvão | Porto Desaparecido].

Na porta ao lado, no número 120, fica a Fotografia Alvão. Natural do Porto, Domingos Espírito Santo Alvão (1872-1946) começou por trabalhar no ateliê de Emílio Biel (1838-1915). As obras mais conhecidas de Alvão resultaram de uma encomenda feita pelo Instituto do Vinho do Porto, em 1933: um levantamento exaustivo do território duriense, do qual resultou um conjunto de fotografias belíssimas. Igualmente famosas são as imagens que captou, em 1934, na Exposição Colonial Portuguesa, realizada no Palácio de Cristal, e que Alvão fotografou em regime de exclusividade. 

A Casa Alvão continua hoje a funcionar no mesmo local, mas parece mais apostada na comercialização de produtos gourmet. Seja como for, em 2017, o estabelecimento foi reconhecido pela Câmara do Porto através do programa Porto de Tradição "que visa proteger e salvaguardar os estabelecimentos e entidades com relevante papel no plano cultural, de valorização do património histórico e das vivências tradicionais da cidade".

A seguir, no número 132, encontramos o edifício-sede do Sport Clube do Porto. Fundado em 1904 por dois praticantes de remo, o Sport Club do Porto procurou criar hábitos de cultura física e prática desportiva nos seus associados, desenvolvendo uma grande diversidade de atividades: remo, ginástica, atletismo, vela, andebol, tiro, hóquei em campo, hipismo, automobilismo, halterofilismo, karaté, ténis, esgrima, natação, entre outras. E foi em Santa Catarina que o Sport construiu aquela que é a piscina mais antiga do Porto e onde gerações de portuenses aprenderam a nadar.

Em frente, no número 147, fica a Casa da Beira Alta, fundada em 1956. Considerada a associação regionalista mais antiga do Porto, congrega os muitos beirões radicados entre nós, acolhendo numerosas atividades de índole cultural. Esta associação cultural e recreativa tem o estatuto de instituição de utilidade pública desde 2000. No piso térreo do edifício fica a confeitaria Império que anda a adoçar a boca aos portuenses desde 1941.

Stand da C. Santos, representante da Mercedes, c.1950 [Alvão | Porto Desaparecido].

Do outro lado da rua, encontramos o grande edifício onde, durante 42 anos, funcionou a C. Santos, representante da Mercedes no Porto. Pela sua localização central, foi o local escolhido pelo grupo Inditex – grupo têxtil sediado na vila galega de Arteixo, nos arredores da Corunha – para, após ter aberto em Espanha dezenas de lojas da sua marca Zara, fazer uma primeira experiência internacional. E a cidade do Porto apresentava-se como o local ideal. Se a experiência fracassasse, seria fácil encaixotar tudo e regressar à Galiza, sem dar nas vistas. Mas a experiência foi um sucesso imediato! De tal maneira que, logo no ano seguinte, abriram a primeira loja nos Estados Unidos, a seguir em França e por aí fora… Em 2015, a Zara tinha já 2162 lojas em 88 países e, dois anos depois, era considerada a marca espanhola mais valiosa do mundo!

O primeiro filme português

Quase em frente à Zara, onde agora funciona uma loja da Benetton, esteve a antiga Camisaria Confiança.

Em 1883, numa época em que a indústria de camisaria nacional era débil e não tinha capacidade para satisfazer o mercado interno, António Silva e Cunha (1858-), de Vila Meã, abriu no Porto um pequeno e modesto estabelecimento, a Camisaria Confiança. A pouco e pouco, este industrial foi adquirindo maquinaria mais moderna e ampliando as suas instalações, até que, em 1894, inaugurou a Fábrica Confiança, mesmo ao lado do Grande Hotel do Porto. Com uma área de 4.800 metros quadrados, nesta fábrica operavam 125 máquinas de costura movidas a eletricidade – produzida localmente por um gerador a vapor – e trabalharam mais de mil operárias.

E foi aqui que, em 1896, Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931) realizou aquele que é considerado o primeiro filme do cinema português. Chama-se a Saída do pessoal operário da Fábrica Confiança e foi feito apenas um ano depois de os Irmãos Lumière terem realizado o seu filme La sortie de l'usine Lumière à Lyon.

Fábrica Confiança e Grande Hotel do Porto, 1899 [Foto Guedes | Porto Desaparecido].

Em 1903, com apenas 16 anos, aqui trabalhou, como caixeiro, Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) que era afilhado do patrão. Mais tarde, como sabemos, Amadeo tornar-se-ia num dos maiores pintores modernistas portugueses, vindo a falecer com apenas 30 anos, vitimado pela gripe espanhola.

Em 1907, a Fábrica Confiança abriu uma sucursal em Lisboa. Por essa altura já a Confiança liderava, não só no mercado nacional e colónias, como exportava grande parte da sua produção para o Brasil.

O Grande Hotel do Porto

Mesmo ao lado, no número 197, fica o Grande Hotel do Porto. Inaugurado em 1880, por iniciativa do brasileiro de torna-viagem Daniel Martins de Moura Guimarães (1827-1893), com risco do arquiteto João Geraldo Sardinha (1845-1906). Começou com 30 quartos (agora tem 94), com ginásio, balneários, gerador de eletricidade e serviço de transfer para Campanhã e São Bento. No topo do edifício funcionava um aprazível terraço, com chão de mosaicos e um lago ao centro – o primeiro rooftop da cidade –, ideal para um chá nas tardes solarengas. Para além de tudo isso, a programação regular de festas, bailes e banquetes cedo conquistou a nata da sociedade portuguesa e não só.

Rooftop do Grande Hotel do Porto, c.1930 [Restos de Colecção | Porto Desaparecido].

O Grande Hotel do Porto acolheu a destronada família imperial brasileira, imediatamente após o derrube da monarquia no país irmão, no final de 1889. Chegaram ao Porto na véspera de Natal, ocupando todo o primeiro piso do hotel, especialmente adaptado para receber a comitiva imperial. A imperatriz Teresa Cristina (1822-1889) que sofria de dispneia e chegou já muito doente, acabou por falecer na sequência de uma paragem cardiorrespiratória, quatro dias depois. O corpo da imperatriz foi levado para Lisboa e sepultado na igreja de São Vicente de Fora. O imperador D. Pedro II (1825-1891) partiu para Paris, logo de seguida. Mas não foram precisos mais de dois anos para que, também ele, viesse dormir o sono eterno a seu lado. Os restos mortais do casal só seriam repatriados em 1921, sendo recebidos com grande pompa no Brasil. Jazem na catedral de São Pedro de Alcântara, na cidade de Petrópolis, próxima do Rio de Janeiro.

Mas não foi só a antiga família imperial brasileira que frequentou o Grande Hotel do Porto. Eça de Queirós (1845-1900), por exemplo, também era hóspede frequente. Neste hotel esteve retido o primeiro-ministro Afonso Costa (1871-1937), em dezembro de 1917, aquando do golpe de estado de Sidónio Pais. No livro de honra do hotel encontram-se assinaturas de personalidades como António Ferro, Aquilino Ribeiro, Miguel Unamuno, Fernando Namora, Oleg Popov, Maria João Pires, Roberto Carlos, o conde de Barcelona (avô do atual monarca espanhol, Filipe VI), o barão Rothschild, o marechal Carmona e muitos outros.

Ao longo dos tempos, o Grande Hotel foi sendo permanentemente modernizado e remodelado, mas sempre com a preocupação de manter o charme clássico que caracteriza o hotel.

Ao lado do Grande Hotel do Porto, com declive acentuado, fica a rua de António Pedro. Homenageia o homem (1909-1966) das artes cénicas que, em 1953, fundou o Teatro Experimental do Porto e o dirigiu durante largos anos. Mas a designação inicial deste arruamento foi viela das Pombas. Tratava-se de um mero caminho que, em 1774, ligava à viela da Neta – um quelho tortuoso que teve o seu fim quando foi aberta a rua de Sá da Bandeira. Em 1917, passou a travessa do Grande Hotel, adotando o nome atual em 1973.

Grande Bazar do Porto, Arnaldo Gama e Alves da Veiga

Painel de azulejos do Grande Bazar do Porto, 2019 [David Francisco | azulejopublicitario.pt]

Mesmo em frente ao Grande Hotel do Porto, nos números 192 a 198, no edifício onde atualmente existe uma loja da Seaside, esteve, durante quase todo o século XX, o Grande Bazar do Porto, de Luiz Soares. Comercializando brinquedos, artigos desportivos, perfumes, bijuterias, artigos de viagem, discos e gramofones foi um dos estabelecimentos mais frequentados pela burguesia da cidade. Em 1927, o Grande Bazar do Porto tornou-se agente nacional exclusivo da marca britânica de gramofones e discos His Master's Voice. Recordando esse tempo, o edifício preserva belos painéis de azulejos datados de 1918, produzidos pela Fábrica Cerâmica do Carvalhinho.

Quase ao lado, no número 206, está a casa onde nasceu o escritor Arnaldo Gama (1828-1869). Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, exerceu advocacia no Porto, cidade que constituiu o cenário principal da sua obra de ficção. Foi jornalista, publicou poesia, contos e romances históricos, designadamente, O génio do mal (1856-1857), Um motim de há cem anos (1861) e A última dona de S. Nicolau (1864).

Do lado oposto da rua, há dois estabelecimentos comerciais com valor histórico, ambos reconhecidos pelo programa Porto de Tradição da Câmara do Porto. O primeiro é a loja Porto Meia, no número 213, estabelecimento fundado em 1936, dedicado exclusivamente à venda de gravatas e lenços. Em 1973, passou a comercializar também artigos de camisaria, meias, malhas e tecidos. O segundo é a Casa Lima, no número 231. Foi fundada em 1877, na rua do Souto, dedicada ao fabrico e comércio de bengalas e guarda-sóis. Em 1909, transferiu-se para Santa Catarina, para o local onde ainda hoje está, alargando o leque de produtos também às gravatas, malas de viagem e guarda-chuvas. Entre 1918 e 2016, teve outra loja, na rua de Sá da Bandeira, mesmo ao lado do café "A Brasileira". Apesar de todas as vicissitudes, a Casa Lima continua na mesma família há cinco gerações.

Logo a seguir deparamo-nos com a rua Formosa. Foi numa das esquinas de Santa Catarina com a rua Formosa que Augusto Alves da Veiga (1850-1924) teve o seu escritório de advocacia. Foi aqui que se planeou a revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891, cuja liderança lhe foi atribuída. Natural de Mirandela, Alves da Veiga formou-se em Coimbra e veio trabalhar para o Porto em 1874. Para além de advogado, foi também escritor, professor, político e estadista.

Bilhete-postal da rua de Santa Catarina, vendo-se o Grande Hotel do Porto (edifício com torreão) e a placa da Casa Lima, 1920 [Ed. J.O. | Porto Desaparecido].

Como referi no início, a abertura da rua Formosa estava já prevista no Plano de Melhoramentos de 1784. O arruamento começou por se chamar rua da Neta, mas aparece já com a designação atual em 1813. 

E pronto, caro(a) leitor(a). Hoje vamos ter de ficar por aqui. Estava-se mesmo a ver que não iria ser possível fazer a rua toda de uma só vez, observando-a com olhos de ver, como estamos a fazer. Mas marcamos já encontro futuramente para prosseguir o caminho até ao Marquês. Posso contar consigo? É que eu não quero andar pela rua a falar sozinho... Preciso mesmo que venha comigo. Combinado?

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Para saber mais:

  • BROCHADO, A. (1996). Santa Catarina: História de uma rua. Porto: Livraria Telos Editora.
  • CARDOSO, A. (1997). O arquitecto José Marques da Silva e arquitectura no Norte do País na primeira metade do século XX. Porto: FAUP [compre online].
  • FERRÃO, B.J. (1997). Projecto e transformação urbana do Porto na época dos Almadas, 1758-1813: Uma contribuição para o estudo da cidade pombalina. Porto: FAUP [compre online].
  • FERREIRA, M.F.C. (2016). Prontuário de toponímia portuense. Porto: Edições Afrontamento [compre online].
  • FERREIRA, N.P.S. (2017) A arquitectura residencial portuense na primeira metade do século XX: Licenciamento de obras, autores, tipologias e morfologias. Porto: FLUP [disponível online].
  • MIGUEL, N.M.F.S.R. (2010). A rua de Santa Catarina e as suas arquitecturas. Porto; FAUP [disponível online].
  • NONELL, A.G. (2002). Porto, 1763-1852: A construção da cidade entre Despotismo e Liberalismo. Porto: FAUP [compre online].
  • ROCHA, E., FERNANDES, J.R. (2009). O tempo, o espaço, o comércio e o caso da Rua de Santa Catarina, na cidade do Porto. in Cadernos de Doutoramento em Geografia. Porto: FLUP, pp. 266-267 [disponível online].
  • SILVA, C.S. (2021). Cafés do Porto. Porto: Book Cover Editora [compre online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].

Comentários

  1. Anónimo6/9/23 23:53

    Para quem viveu alguns anos no Porto e atravessava regularmente a Rua de Santa Catarina é espantoso conhecer um pouco mais da sua história e compará-la com a atualidade. É incrível como deixamos passar tantos e tão ricos detalhes apenas por nos esquecermos de observar. Um ótimo artigo, espero ansiosamente pela continuação!

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    1. Obrigado pelo seu comentário e por acompanhar este blogue.

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  2. Interessante nunca me tinha aprecebido da imagem de Santa Luzia por cima do portal da Prefecta muito grata por nos dar a conhecer a bela cidade do Porto

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    1. Obrigado pelo seu comentário e por acompanhar este blogue. No entanto, deixe-me esclarecer que a imagem não é de Santa Luzia, mas sim de Santa Catarina. Cumprimentos.

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  3. João Pedro Mésseder19/9/23 11:26

    Muitos parabéns! Belíssimo artigo com o qual aprendi imenso. A 2.ª parte, que também já li, é igualmente excelente. Obrigado!

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    1. Obrigado pelo seu comentário e obrigado por acompanhar este blogue.

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  4. Toda a minha Infância até à adolescência foi vivida nesta rua desde a rampa da Escola Normal, ao colégio Florinhas do Lar, na altura só Freiras, muito simpáticas e bondosas até à Batalha, onde meu Pai trabalhava a Jaime da Costa. Rainha Isabel no seu coche Real, a subir, Sá da Bandeira......

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