Palácio de Cristal: da Torre da Marca ao Super Bock Arena

Breve história do Palácio de Cristal, desde o campo da Torre da Marca  antes mesmo de ter sido erguido o palácio projetado pelo inglês Thomas Dillen Jones  até à sua demolição e substituição pelo Pavilhão dos Desportos, mais tarde Pavilhão Rosa Mota e hoje Super Bock Arena.

Manuel de Sousa

O Palácio de Cristal aquando da inauguração da Exposição Internacional de 1865 [Porto Desaparecido]

Em tempos recuados, num dos mais aprazíveis promontórios debruçados sobre o rio Douro, a poente do núcleo delimitado pelas muralhas fernandinas, encontrava-se um alto pinheiro que servia de orientação para os barcos que entravam na barra do Douro. Um dia, a velha árvore acabou por cair e, em sua substituição, o rei D. João III mandou erigir uma torre em pedra. Ficou conhecida como Torre da Marca, aparecendo representada em numerosas gravuras antigas. A torre acabaria também por ser destruída em 1832, aquando do Cerco do Porto.

"Oporto from the Monte d'Arabida", 1829 [Robert Batty | Porto Desaparecido]

Do Crystal Palace ao Palácio de Cristal portuense

Em meados do século XIX vivia-se por toda a Europa um furor de desenvolvimento industrial e tecnológico. Em 1851, na capital da próspera Inglaterra, abria as portas a Exposição Universal. Para acolher o importante certame, nos jardins do Hyde Park foi erguido um grandioso edifício de vidro e ferro, o Crystal Palace. De linhas arrojadas e inéditas, o edifício fora concebido por Joseph Paxton, um engenhoso construtor de estufas, e edificado no tempo record de seis meses. Com 70 mil metros quadrados de área coberta, o edifício foi o primeiro exemplo de prefabricação total. Findo o objetivo para o qual foi construído, o Crystal Palace foi vendido e pôde ser desmontado peça por peça e reconstruído noutro local.

Crystal Palace, 1854 [Philip Henry Delamotte | Wikimedia Commons]

De entre os milhares de visitantes que, de todo o mundo, acorreram à exposição de 1851 encontravam-se alguns portuenses, na mente dos quais começou a germinar o sonho de um dia poder realizar algo de semelhante em Portugal. No entanto, à época, as finanças nacionais estavam depauperadas, a agricultura tradicional imperava e a indústria era insipiente.

Apesar do enquadramento desfavorável, em 1854 é fundada no Porto a Sociedade Agrícola que, três anos depois, organiza uma exposição, precisamente no campo da Torre da Marca, então o local onde se iniciavam os subúrbios semirrurais do Porto. Nesse mesmo ano, também a Associação Industrial Portuense (hoje chamada Associação Empresarial de Portugal, AEP) organizava uma exposição no Asilo de Mendicidade, nas Fontainhas. Em 1861, a mesma associação levou a cabo a Primeira Exposição Industrial Portuguesa, desta feita no Palácio da Bolsa, ainda em construção.

Perante o estímulo que estes certames provocaram na economia da cidade e da região e o interesse que despertaram no grande público, foi criada a Sociedade do Palácio de Cristal Portuense, com o objetivo de "construir um palácio destinado a exposições agrícolas, industriais e artísticas". Tal edifício seria erguido no campo da Torre da Marca.

O projeto do palácio ficou a cargo do arquiteto inglês Thomas Dillen Jones, tendo por modelo o Crystal Palace londrino. No entanto, houve que fazer cedências ao gosto portuense. Aos espaços abertos de colunas e abóbodas de ferro e vidro foi justaposta uma ampla fachada granítica com dois monumentais torreões, fazendo jus à preferência da burguesia portuense por esta pedra, tão típica da cidade e da região. Esta customização, digamos assim, teve o grande inconveniente de fixar o palácio ao local onde foi construído. Ao contrário do original londrino, o pavilhão portuense perdeu a capacidade de poder ser facilmente desmontado e erguido noutro local, caso tal viesse a ser necessário.

Construção do Palácio de Cristal, 1861-1865 [Porto Desaparecido]

O edifício do Palácio de Cristal portuense, com as suas três naves, totalizava uma área coberta de 7.900 metros quadrados. Com uma largura total de quarenta metros, a nave central tinha uma abóboda em vidro com dezanove metros de altura e 107 de profundidade. De menor volume, as naves laterais ficavam-se pelos 8,3 metros de largura e 94 de comprimento. Na fachada, a inscrição “Progredior” anunciava os novos tempos de progresso que o Palácio de Cristal encarnava.

Fachada do Palácio de Cristal [Aurélio da Paz dos Reis | Porto Desaparecido]

Exposição Internacional Portuguesa de 1865

Vencidos todos os contratempos – mormente a crónica falta de verbas –, a 18 de setembro de 1865, teve lugar a abertura oficial da Exposição Internacional Portuguesa e, com ela, a inauguração do palácio. Presidida pelo rei D. Luís, a cerimónia revestiu-se de uma solenidade e esplendor pouco habituais em terras portuenses. Para além da família real, integravam o numeroso séquito vários ministros e autoridades nacionais, bem como todas as figuras relevantes da economia, da política e da sociedade nortenhas. A assistir, uma multidão compacta de populares.

A exposição atraiu 4.300 expositores de trinta nacionalidades, estando dividida em quatro secções: matérias-primas, maquinaria, produtos manufaturados e belas-artes. Portugal jamais havia sido palco de tamanho empreendimento! Durante o mês e meio em que esteve aberta ao público, a exposição atraiu mais de 60 mil pessoas, número impressionante se atendermos a que a população do Porto não chegava, na época, aos 87 mil habitantes.

Após a exposição de 1865, o Palácio de Cristal foi palco de muitos outros certames, a par de iniciativas desportivas, culturais e recreativas. No interior da nave central, ao fundo, foi instalado um famoso órgão, tido por muitos como um dos melhores do mundo. Junto da nave lateral, para nascente, abriu o Teatro Gil Vicente, com capacidade para mil espectadores e, na extremidade oposta, as estufas com plantas tropicais. Nas naves laterais encontravam-se serviços de apoio, tais como o gabinete de leitura, os bazares e as salas de exposição e venda de belas artes. Do lado oeste, sobre os jardins e o lago, encontrava-se um requintado restaurante.

Encontro das escolas evangélicas, 1908 [Aurélio da Paz dos Reis | Porto Desaparecido]

O Porto romântico

Em volta do palácio, o espaço era igualmente muito acolhedor e rapidamente se tornou num autêntico local de desfile da fina flor da sociedade portuense. O compacto arvoredo convidava ao passeio e à tranquilidade.

Avenida das Tílias [Aurélio da Paz dos Reis | Porto Desaparecido]

No coreto da conhecida avenida das Tílias, todos os domingos e feriados havia música por conta de bandas regimentais. Mais à frente, a concha, ainda existente, apresentava peças de teatro e recitais. Ao fundo da avenida, à direita, havia um chalé alpino, de onde se apreciavam desafogadas vistas sobre a foz do rio e o mar. Nas proximidades estavam as coleções zoológicas, a aldeia dos macacos e a gaiola das águias.

Gaiolas de animais nos jardins do Palácio de Cristal, ca.1900 [Estrela Vermelha | Porto Desaparecido]

A par da Torre dos Clérigos e do Palácio da Bolsa, o Palácio de Cristal passou a integrar o restrito grupo das grandes atrações turísticas, arquitetónicas e sociais do Porto. Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, António Nobre, Júlio Brandão, entre outros artistas e intelectuais, eram visitas assíduas do palácio. O Palácio de Cristal e os seus jardins representam o ponto alto do Porto romântico oitocentista.

Jardins do Palácio de Cristal, ca.1900 [Estrela Vermelha | Porto Desaparecido]

A Exposição Colonial Portuguesa de 1934

Nas primeiras décadas do século XX, a deficitária exploração do palácio começou a comprometer a sua boa manutenção e o edifício foi revelando sinais crescentes de degradação. Em 1933, a Câmara Municipal do Porto comprou o recinto por dois mil contos (dez mil euros), com o objetivo de aí realizar a Exposição Colonial Portuguesa no ano seguinte.

Palácio de Cristal transformado em Palácio das Colónias para a Exposição Colonial, 1934 [Domingos Alvão | Porto Desaparecido]

Como sinal de afirmação do Estado Novo e da política colonial, nos jardins do palácio foram erguidas réplicas idealizadas de aldeias autóctones das colónias portuguesas de então, animadas por nativos trazidos propositadamente para o efeito. Nesse ano de 1934, milhares de portuenses acorreram ao palácio para admirar os indígenas, com o mesmo espanto que sentiam perante animais exóticos num jardim zoológico. Este foi o último grande evento realizado no palácio.

Balantas na Exposição Colonial Portuguesa, 1934 [Domingos Alvão | Wikimedia Commons]

Demolição do Palácio de Cristal

Em 1941, o violento ciclone que assolou a região agravou seriamente o estado de ruína em que já se encontrava a cobertura do edifício. A persistente exiguidade do orçamento camarário foi adiando sucessivamente reparações profundas, que tanto tinham de urgentes como de dispendiosas.

Sob a presidência do coronel Lucínio Presa, por deliberação camarária de dezembro de 1951, foi decidido demolir o Palácio de Cristal. O pretexto foi a necessidade urgente de se construir um recinto moderno para acolher o campeonato mundial de hóquei em patins a realizar no ano seguinte. Desta forma inglória, pôs-se fim ao Palácio de Cristal, símbolo ímpar da arquitetura do ferro em Portugal e que tão fortemente marcou a vida económica, social e cultural da cidade.

Demolição do Palácio de Cristal, 1952 [Porto Desaparecido]

A demolição avançou imediatamente, começando-se a construção do novo pavilhão – um projeto do arquiteto Carlos Loureiro. A 10 de outubro de 1952, ainda sem que a cúpula estivesse terminada, foi inaugurado o controverso Pavilhão dos Desportos e os jogos do campeonato de hóquei em patins puderam realizar-se, acabando Portugal por se sagrar campeão do mundo da modalidade. Pela quinta vez.

Com a cúpula por fechar, cobertores protegem o ringue da chuva, nas vésperas do Campeonato do Mundo, 1952 [O Tripeiro | Porto Desaparecido

Pavilhão dos Desportos, Pavilhão Rosa Mota, Super Bock Arena

Ao longo dos anos, o Pavilhão dos Desportos foi acolhendo, não apenas jogos de diversas modalidades, como também espetáculos musicais, de teatro e de circo, congressos e exposições. Neste local realizaram-se as feiras industriais organizadas pela Associação Industrial Portuense (hoje, AEP) até à construção da Exponor, em Leça da Palmeira, em 1987. Em 1991, o pavilhão foi rebatizado, em homenagem à maratonista e campeã olímpica portuense Rosa Mota. Na sequência de um contrato de cedência da exploração a privados, em 2019 o espaço viu o seu nome alterado para Super Bock Arena, designação que manterá durante os vinte anos de duração da concessão.

Exposição Têxtil Internacional, 1961. [AEP | Porto Desaparecido]

Apesar de conviverem com ele há setenta anos, ainda hoje muitos portuenses continuam a não ver com bons olhos este edifício de betão em forma de calote esférica. Para muitos, a demolição do antigo Palácio de Cristal foi um atentado irreparável contra o património artístico da cidade e do país. A grande maioria dos portuenses de hoje já não chegou a conhecer o antigo palácio, revivendo-o apenas através dos registos fotográficos existentes.

Super Bock Arena, 2019 [Joseolgon | Wikimedia Commons]

Para saber mais:

  • ALVES, J. (1994). "As exposições industriais do Porto nos meados do século XIX". O Tripeiro. 7.ª série, ano XIII, n.º 6, junho 1994, pp. 171-176 [disponível online]
  • ALVES, J. (2010). O progresso material: Da regeneração aos sinais de crise. Matosinhos: QuidNovi.
  • CARDOSO, A. et al. (1994). Porto 1865: Uma exposição. Lisboa: Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa.
  • CRUZ, P. (1997). Porto: A arte do ferro. Porto: ASA.
  • GONÇALVES, V. (2018). Imagens e memórias em reconstrução: Do Palácio de Cristal Portuense ao Pavilhão Rosa Mota. Porto: FLUP [disponível online]
  • RIBEIRO, A. (1965). "No centenário da inauguração do antigo palácio de Cristal (1865-1965)". O Tripeiro, 6.ª série, ano V, n.º 9, setembro 1965, pp. 273-280.
  • SAMODÃES, C. (1890). O Palacio de Crystal portuense: Breve esboço historico. Porto: Tipografia Central.
  • SANTOS, J. C. (1989). O Palácio de Cristal e a arquitectura do ferro no Porto em meados do séc. XIX. Porto: Fundação Eng.º António de Almeida.
  • SERÉN, M. C. (2001). A porta do meio. A Exposição Colonial de 1834. Fotografias de Domingos Alvão. Porto: Centro Português de Fotografia.
  • SILVA, G. (2012). Porto: Nos recantos do passado. Porto: Porto Editora.
  • SOUSA, M. (2017). Porto d’honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros.

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