Serra do Pilar: mosteiro, morro e aqueduto

Com uma forte presença na paisagem ribeirinha do Porto e de Gaia, o mosteiro da Serra do Pilar encerra uma história fascinante. Conheça as peripécias da sua construção, o papel que jogou nas Guerras Liberais, o trajeto do seu aqueduto desaparecido e o obstáculo que o seu morro constituiu à ligação entre Porto e Gaia.

Manuel de Sousa 

A Serra do Pilar é um elemento marcante na paisagem da zona ribeirinha do Porto e Gaia. Seja porque é daí que se obtém o melhor bilhete-postal do Porto, seja porque marca de forma indelével qualquer vista da ponte Luís I, colhida a partir da Ribeira. Já para não falar do importante papel histórico que desempenhou, nomeadamente durante o Cerco do Porto (1832-1833). Isto tudo terá levado à sua inclusão na candidatura do Centro Histórico do Porto a Património da Humanidade, em 1996.

Mosteiro da Serra do Pilar, ainda com sinais da destruição causada pelos confrontos do Cerco do Porto (1832-1833); foto de c.1920 [Foto Beleza | Porto Desaparecido]

Meijoeira, São Nicolau, Quebrantões

O monte granítico que hoje conhecemos como Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, teve, outrora, as designações de monte da Meijoeira, monte de São Nicolau ou serra de Quebrantões.

No século XII, aqui existiu um convento de freiras descalças de São Nicolau, cónegas de Santo Agostinho. Apesar de ter funcionamento regular, reconhecido pelo bispo do Porto, esta casa religiosa acabou por encerrar no final do século XIII, ficando o convento ao abandono.

Três séculos depois, a vontade de ficar próximo do Porto, fugindo ao arruinado e húmido mosteiro de Grijó, levou a um movimento, liderado pelo frei Brás de Barros (também conhecido como Brás de Braga) – que, mais tarde, viria a ser o primeiro bispo de Leiria , para edificar um novo mosteiro neste local. A limpidez dos ares, a paisagem desafogada, a calma e o silêncio, constituíam ambientes ideais à vida religiosa.

A 6 de dezembro de 1537, foi colocada a primeira pedra do mosteiro, sob a direção do frei Brás de Barros, tendo a seu lado os arquitetos Diogo de Castilho e João de Ruão. Tanto o primeiro, asturiano, como o segundo, francês, realizaram obras importantes, especialmente em Coimbra. As obras de construção do mosteiro, no entanto, sofreram sucessivos atrasos, tendo alguns monges regressado a Grijó, em 1563. Tal acabou por levar à cisão entre os dois mosteiros.

Segundo a documentação existente, em 1567 a primitiva igreja do mosteiro estava já concluída, havendo dúvidas sobre se a sua planta seria latina ou circular. Seja como for, esta primeira igreja acabou por ser demolida no final do século XVI, alegadamente por ser de dimensão reduzida.

O claustro, que se iniciou em 1576, ficou concluído em 1583. Pensa-se que a conceção circular do claustro estaria presente desde o início da idealização do mosteiro (1537), da autoria de Diogo de Castilho.

Coube a D. Acúrsio de Santo Agostinho, eleito prior do mosteiro em 1596, a iniciativa da edificação da nova igreja, de planta circular, finalizada em 1678. No domingo de Páscoa desse ano, o então prior D. Jerónimo da Conceição, colocou no altar-mor uma imagem de Nossa Senhora do Pilar. A partir desse momento, a igreja tomou essa invocação, abandonando o nome de Santo Agostinho da Serra que teve inicialmente. Por coerência, para dia festivo foi escolhido 15 de agosto.

Claustro circular do mosteiro da Serra do Pilar, antes das obras de restauro; foto de c.1900 [Foto Guedes; Arquivo Municipal do Porto | Porto Desaparecido]

Trata-se de uma igreja muito original, a lembrar a de Santa Maria Rotonda, o Panteão de Roma, cercada de capelas. De facto, a forma redonda aplicada, tanto à igreja como ao claustro, parece ter sido inspirada naquele edifício, uma construção romana do século II. A igreja da Serra do Pilar apresenta-se como um duplo cilindro, coroado por uma cúpula semiesférica, tendo no topo um lanternim em cantaria.

Em 1690, Manuel Couto e João Maia foram contratados para executar a obra da capela-mor, segundo projeto de Domingos Lopes. A construção da capela-mor obrigou à demolição e transladação do claustro alguns metros para nascente, mantendo, no entanto, a mesma configuração.

De mosteiro a praça de guerra

cerca de 85 metros de altitude, o mosteiro da Serra do Pilar está implantado num ponto estratégico de observação e defesa do território circundante. Daqui era possível controlar as travessias do rio Douro, bem como a navegação marítima e fluvial.

O local terá tido a sua relevância no século X, aquando da presúria do Porto por Vímara Peres. Mas, a primeira utilização militar do mosteiro ocorreu em 1580, quando D. António, o prior do Crato, impedido de entrar no Porto, se instalou no mosteiro de Santo Agostinho da Serra e, durante três dias, fustigou a cidade com disparos de artilharia.

Seria novamente palco de lutas, durante a segunda invasão francesa, em 1809. Foi na Serra do Pilar que o bispo do Porto procurou refúgio e esboçou alguma resistência às tropas de Soult. Um mês e meio depois, Artur Wellesley usou este ponto dominante para dirigir o ataque à cidade do Porto que culminou com a expulsão dos franceses.

Contudo, foi durante as Guerras Liberais (1832-1834) que o mosteiro da Serra do Pilar alcançou o maior protagonismo. Quando se deu a entrada das tropas liberais na cidade, a 9 de julho de 1832, os monges abandonaram o mosteiro. Com esta atitude  sem o saberem , estavam a pôr fim a três séculos de presença eclesiástica contínua no local.

As tropas liberais, comandadas por D. Pedro, ocuparam e defenderam este ponto estratégico, sendo o mosteiro transformado em praça-forte. Sob o comando do general Torres, a Serra do Pilar aguentou as sucessivas investidas dos miguelistas, designadamente os ataques de 13 e 14 de outubro de 1832. Nestes dias, foram disparadas cerca de três mil granadas e bombas vindas das baterias miguelistas localizadas em Gaia, que quase arrasaram o mosteiro. Contudo, o sistema fortificado resistiu aos ataques e, ao longo das sucessivas batalhas, foi sendo reforçado e melhorado. Não me quero alongar neste assunto, porque o tema do Cerco do Porto merece, certamente, um artigo dedicado...

Vista da Serra do Pilar, de Dias da Costa, mostra-nos o aspeto do local durante os ferozes recontros do Cerco do Porto (1832-1833); gravura de 1867 [Porto Desaparecido]

Neste momento, o importante é dizer que, terminada a guerra civil, com a assinatura da Convenção de Évora Monte, em 26 de maio de 1834, a rainha D. Maria II decidiu elevar o mosteiro à categoria de fortaleza, passando a funcionar como quartel militar, função que mantém até hoje.

Tendo sido palco de duras batalhas, uma vez terminada a guerra civil, o mosteiro da Serra do Pilar apresentava-se bastante destruído e assim ficou durante todo o século XIX. Em 1910, a igreja e o claustro do mosteiro foram reconhecidos como Monumentos Nacionais. Em 1925, foi constituída a Comissão dos Amigos do Mosteiro da Serra do Pilar que procurou restaurar e conservar o monumento. Em 1927, os técnicos da Direção-Geral de Belas-Artes, integrada, em 1929, na Direção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, iniciaram as obras de conservação, reabilitação e reconstrução do monumento. Tais obras prolongaram-se até aos dias de hoje.

O aqueduto

Vista de Vila Nova de Gaia, sendo bem visível (ao fundo, na linha do horizonte) o aqueduto que abastecia do mosteiro da Serra do Pilar; foto de c.1860 [Antero de Seabra; CPF | Porto Desaparecido]

O abastecimento de água ao mosteiro era assegurado por um aqueduto, sendo a água recolhida em fontes e minas localizadas a uns três quilómetros de distância, na antiga quinta do Agueiro  na proximidade das atuais ruas do Agueiro e do Eng.º Adelino Amaro da Costa. A mina atravessava a atual rua de D. Pedro V e o IC 23 para receber água de outros pontos situados no lugar de Trancoso, junto ao atual Colégio de Gaia. De seguida, a mina cruzava a atual avenida da República em direção à travessa particular Honório Tavares Costa e, depois, seguia até ao local onde hoje está a praceta do 25 de Abril. A partir daí, o aqueduto continuava à superfície, em arcadas, pela rua de 14 de Outubro e pela alameda da Serra do Pilar, entrando no mosteiro junto ao portão nascente do atual quartel.

Bilhete-postal das ruínas do antigo aqueduto do mosteiro da Serra do Pilar; foto de c.1920 [Porto Desaparecido]

O aqueduto funcionou durante mais de três séculos, mas, nos finais de Oitocentos, começou a revelar sinais de degradação, tendo ruído alguns dos seus arcos. Os restantes foram sendo demolidos até aos finais da década de 1920. Mas, ao longo do antigo percurso do aqueduto, subsistem ainda hoje diversos respiros, em forma de pirâmide, e alguns restos de arcos.

Respiro do antigo aqueduto da Serra do Pilar, na rua do Eng.º Adelino Amaro da Costa; foto de 2021 [Manuel de Sousa]

Em 1946, com publicação no Diário do Governo, o Estado procedeu à classificação como imóvel de interesse público do "troço existente do aqueduto da Serra do Pilar (lugar do Sardão, freguesia de Oliveira do Douro)", confundindo dois aquedutos que nada tinham em comum: um ainda existente – Arcos do Sardão – e outro já desaparecido – Serra do Pilar. Por estranho que possa parecer, tal equívoco ainda hoje perdura em algumas publicações e nos próprios sítios oficiais da Direção-Geral do Património Cultural na Internet (ver aqui e aqui).

Coluna do antigo aqueduto da Serra do Pilar adossada a casa na esquina da rua de Ernesto Silva com a alameda da Serra do Pilar; foto de 2021 [Manuel de Sousa]

A pedreira, o jardim e a avenida

Quando, na década de 1870, foi decidido construir uma nova ponte rodoviária – a ponte Luís I –, o centro do Porto já se tinha deslocado da Ribeira para a zona da, então chamada, praça de D. Pedro (hoje, da Liberdade), onde, em 1819, se instalaram os Paços do Concelho. Por isso, em vez de uma simples ponte à cota baixa  à semelhança da, então existente, ponte pênsil , optou-se por erguer uma grande ponte com dois tabuleiros, um junto ao rio e outro a uma cota cinquenta metros mais elevada, servindo o novo centro portuense, em expansão acelerada.

A opção pela construção de um tabuleiro à cota alta levantou problemas que tardaram a ser satisfatoriamente resolvidos, tanto a norte (no Porto) como a sul (em Gaia), mas por razões bem diferentes.

A norte, o tabuleiro da ponte foi encaixar numa área densamente construída, obrigando a expropriações e demolições para abertura da avenida Saraiva de Carvalho. A plena ligação do centro do Porto à ponte obrigou, ainda, à demolição de todo o bairro do Corpo da Guarda, para a abertura da chamada avenida da ponte, cuja cicatriz ainda hoje é bem patente, entre a estação de São Bento e as imediações da Sé.

Mas, se é verdade que a construção do tabuleiro superior da ponte Luís I teve um grande impacto na evolução da zona que hoje conhecemos como a Baixa portuense, ela representou uma autêntica revolução na margem sul.

Saída do tabuleiro superior da ponte Luís I do lado de Gaia, atual rua de Rocha Leão; foto de c.1910 [Artur Benaruf; Arquivo Municipal de Lisboa | Porto Desaparecido]

Aqui, o tabuleiro deparou-se com a escarpa da Serra do Pilar. Por isso, inicialmente foi apenas aberta uma pequena via – a que se deu o nome de avenida esquerda superior e que hoje é a rua de Rocha Leão –, contornando o maciço rochoso. Depois, seguia para a rua de Luís de Camões, ligando à estrada distrital n.º 28 (hoje rua do General Torres) que dava acesso a Oliveira de Azeméis. Nos primeiros anos, a ligação a sul do tabuleiro superior da ponte Luís I limitava-se a este arruamento, bem visível no mapa de Teles Ferreira, de 1892. Foi por esta passagem provisória que, em 1905, começou a circular o carro elétrico.

Excerto da Carta topographica da cidade do Porto, vendo-se claramente o arruamento de acesso ao tabuleiro superior da ponte Luís I a contornar o morro da Serra do Pilar; mapa de 1892 [Teles Ferreira | Porto Desaparecido]

Só mais tarde, começou gradualmente a ser desmontada a escarpa da Serra do Pilar, a oeste da ponte, que se transformou numa enorme pedreira. A prioridade foi dada à abertura de uma trincheira, em pleno morro da Serra do Pilar, alinhando o tabuleiro da ponte com o traçado da ampla via que seguia para sul, inicialmente designada avenida de Campos Henriques (depois de 1910, avenida da República; em 1950, do Marechal Carmona; e, novamente, da República, após o 25 de Abril de 1974). A metade oeste do morro só seria completamente arrasada em 1927, criando-se no seu lugar o aprazível jardim do Morro.

Pormenor de fotografia onde é visível o desmonte de parte do morro para estabelecer a ligação direta do tabuleiro da ponte com a avenida, ao fundo. O trânsito fazia-se, ainda, pela rua de Rocha Leão; foto de c.1920 [Fotografia Alvão; CPF]

Entretanto, o enorme desbaste a que a Serra do Pilar foi sujeita debilitou seriamente o afloramento granítico restante, começando a ocorrer pequenas derrocadas. Para além de se construir um novo acesso à igreja do antigo mosteiro da Serra do Pilar, houve que erguer enormes muros de sustentação para conter a escarpa a norte e a oeste. Hoje, os nossos olhos estão tão habituados a esses paredões que já não os conseguimos dissociar do local...

Como referi acima, a construção do tabuleiro superior da ponte Luís I teve um efeito verdadeiramente revolucionário em Vila Nova de Gaia. Levou à construção de uma nova avenida retilínea, com trinta metros de largura, que, ao estabelecer a ligação com o largo de Santo Ovídio  ou seja, com a estrada nacional para Lisboa , assumiu o papel de corredor de entrada do Porto. Tal levou a que este eixo de 2.550 metros se assumisse como o novo centro de Gaia, secundarizando a zona da beira-rio, e abrindo caminho a um desenvolvimento urbano e demográfico sem precedentes.

Como vê, caro(a) leitor(a), todos os recantos têm as suas histórias para contar. Temos apenas que estar atentos para as descobrir e interpretar. Até à próxima!

Para saber mais:

  • ABREU, S.M. (2007). Diogo de Castilho e João de Ruão: Uma parceria invulgar no traçado do mosteiro de S. Salvador da Serra (Serra do Pilar). Artistas e artífices e sua mobilidade no mundo de expressão portuguesa. Porto: CEPESE, pp. 495-503 [disponível online].
  • ALMEIDA, C. (2000). Análise do comportamento da igreja do mosteiro da Serra do Pilar sob acção dos sismos. Porto: FEUP [disponível online].
  • MOURA, M.E.S. (2015). A evolução morfológica da avenida da República em Vila Nova de Gaia: Uma reflexão do passado ao presente. Porto: Universidade Fernando Pessoa [disponível online].
  • OLIVEIRA, M.M.P.A. (1998). O mosteiro do Salvador: Um projecto do século XVI. Monumentos. Lisboa: DGEMN, n.º 9, pp. 16-23 [disponível online].

Comentários

  1. Obrigado por seguir este blogue.

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  2. Mais uma excelente aula de história.
    Como apreciador das coisas do passado, confesso que este ainda me escapava.
    Parabéns e obrigado.

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    1. Aprendeu alguma coisa que ainda desconhecia. Fico satisfeito por isso! Obrigado por seguir este blogue. :)

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    1. Obrigado por acompanhar este blogue. Cumprimentos.

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    1. Obrigado por acompanhar este blogue. Cumprimentos.

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  5. Muito obrigado por este contributo. Parabéns pelo excelente descritivo da história deste local.

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    1. Obrigado por acompanhar este blogue. Cumprimentos.

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  6. Mais uma vez obrigada por mais um contributo para melhor conhecer o Porto e Vila Nova de Gaia. Teresa Vasquez Cruz

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    1. Obrigado por acompanhar este blogue. Cumprimentos.

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  7. Fantástico, muito obrigada!
    Vivi 17 anos na Rua 1º de Maio e fiz a primeira comunhão na Igreja da Serra do Pilar. Não fazia ideia desta história. A minha família não é de Gaia, tudo começou com o meu avô, que foi colocado nas Finanças de Gaia, ainda na Câmara, na segunda metade dos anos 1960. Quando ele se reformou, em 1975, e regressou com a minha avó à sua Mealhada-natal, nós fomos morar para o apartamento deixado vazio por eles, na Rua 1º de Maio. Eu tinha 10 anos e só haveria de deixar Gaia com 27, para vir para a Alemanha, em 1992.
    Apesar de já não ir muito a Gaia, a cidade, e especialmente esta zona, tem um grande significado para mim, pois vivi lá anos decisivos da minha vida. Foi em Gaia que frequentei o ciclo preparatório e o liceu e foi na Universidade do Porto que me licenciei.
    Adorei este texto, mais uma vez, obrigada.

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    1. Obrigado pelo seu testemunho! Em Portugal, o conhecimento da história local é praticamente nulo. Toda a gente sabe quem foi Júlio César, Vasco da Gama ou Napoleão, mas pouco sabem do que se passou na cidade onde nasceram, da igreja onde foram batizados ou do bairro onde vivem. É essa lacuna que – com o meu diminuto contributo – me proponho ajudar a colmatar. Cumprimentos, Manuel de Sousa

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  8. Mais um excelente trabalho de pesquisa. Parabéns.

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