De Sória a Zamora: a linha defensiva do Douro

Por volta do ano 1000, no interior da Península Ibérica, o vale do rio Douro era um grande campo de batalha, na guerra que opunha mouros a cristãos. Para proteger as terras a norte, ao longo da vasta linha do Douro, foi erguida uma formidável sucessão de muralhas, torres e atalaias. Era Castela, a terra dos castelos. Venha conhecer um pouco da riqueza histórica e patrimonial do rio Douro espanhol.

Manuel de Sousa

Entrada do castelo de Gormaz, foto de 2012 [Wikimedia Commons]

No seguimento da iniciativa de olharmos para o que está do outro lado da fronteira, já que – passada a pandemia e repostos os princípios de Schengen – ela não existe enquanto barreira física, mas apenas mental, trago um segundo artigo dedicado ao Douro espanhol.

No primeiro, falámos da nascente do rio, nos Picos de Urbión, e recordámos a tenaz resistência dos numantinos ao domínio romano. Hoje, começando em Sória, descemos o rio, seguindo o seu percurso rumo a ocidente, até à fronteira, ao ponto onde o Douro toca, pela primeira vez, em tierras pertuesas  assim mesmo, já que são mirandesas estas primeiras terras portuguesas.

Comecemos, então.

Meia dúzia de quilómetros a jusante das ruínas de Numância, o rio Douro passa pela cidade de Sória que, no seu escudo, ostenta o lema Sória pura, cabeça de Estremadura, remetendo-nos para um outro tempo, no qual o Douro foi zona de guerra entre mouros e cristãos.

A palavra Estremadura foi, ao longo dos tempos, assumindo abrangências geográficas diversas. Embora a teoria de que o topónimo deriva de Extrema Dorii, os estremos do Douro, seja, hoje em dia, questionada por muitos autores, a verdade é que o termo foi primeiramente usado para designar as terras recém-conquistadas no vale do Douro ou imediatamente a sul deste rio.

Castela: terra de castelos

Por estas terras do interior da Península Ibérica, o início do repovoamento da bacia do rio Douro realizou-se fundamentalmente entre os anos 850 e 975, partindo da base cantábrica do baluarte defensivo criado por Afonso I das Astúrias. Aplicando a tradição jurídica romana, todas as terras abandonadas – que, na consequência de guerras sucessivas, era toda a bacia do Douro – passaram a ser propriedade do rei, integrando-se no seu património. Mas, muito rapidamente, os sucessivos monarcas (primeiro, das Astúrias; depois, de Leão) começaram a conceder terras a membros da nobreza ou a ordens militares e religiosas.

As campanhas de Almançor (976-1002) marcaram uma interrupção ou, até, um retrocesso, neste processo repovoador.

São desta época as incontáveis atalaias e torres defensivas que salpicam toda a vasta área da bacia do Douro e que deram o nome a Castela – terra de castelos – que, tal como aconteceria mais tarde com Portugal, começou por ser um condado e depois evoluiu para reino.

Muralhas de Gormaz, foto de 2014 [Pacho.X | Wikimedia Commons]

No século X, a região da bacia do Douro era um posto avançado castelhano-leonês frente à Espanha muçulmana. Este campo de batalha contínuo estava reforçado por uma série de poderosas fortalezas dispostas ao longo do Douro, tais como Berlanga de Duero, Gormaz, Peñaranda de Duero e Peñafiel, entre muitas outras.

Castelo de Peñafiel, foto de 2005 [Hector Blanco de Frutos | Wikimedia Commons]

Um manto de lendas cobre algumas das batalhas que asseguraram o domínio cristão do vale do Douro. Uma delas foi a batalha de Simancas, ocorrida em 939, que pôs frente a frente os exércitos do rei de Leão, Ramiro II, e os do primeiro califa de Córdova, Abderramão III (exatamente o mesmo de uma das lendas da praça da Batalha). A contenda prolongou-se durante vários dias, foi antecedida de um eclipse do sol e, durante a batalha, São Milhão (ou Emiliano) apareceu, conduzindo os cristãos à vitória. No ano 1000, na batalha de Calatañazor, Almançor foi vencido pela primeira vez por uma coligação de castelhanos, leoneses e navarros, tendo contraído uma doença misteriosa  provavelmente, o tifo  que o levaria a falecer dois anos depois, mergulhando o califado de Al-Andaluz no caos, por desavenças quanto à sua sucessão.

São Milhão na batalha de Simancas, foto de 2008 [Cenobio | Wikimedia Commons]

Valhadolid capital

Muito próximo do ponto em que as águas do rio Pisuerga se juntam às do Douro, fica Valhadolid, a maior cidade da bacia hidrográfica do Douro. Atualmente com quase 300 mil habitantes, Valhadolid adquiriu grande importância no período de reconquista e repovoamento do vale do Douro. Durante a Idade Média, foi sede da corte de Castela, sendo dotada de várias instituições, como a Real Audiência e Chancelaria, a Casa da Moeda e a universidade (fundada em 1241). O rei Carlos I – mais conhecido como Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico – fez de Valhadolid a capital política e, entre 1601 e 1606, foi capital do império espanhol (que, naquele tempo, incluía Portugal e o seu império), até que esta função passou definitivamente para Madrid.

Valhadolid em Civitates orbis terrarum, 1572 [Georg Braun; Frans Hogenberg | Wikimedia Commons]

Foi em Valhadolid que casaram os Reis Católicos, que nasceu Filipe II (o primeiro dos Filipes a ser, também, rei de Portugal), que Fernão de Magalhães apresentou o seu plano para chegar às Molucas navegando para ocidente, que morreu Cristóvão Colombo e que Cervantes terminou de escrever o D. Quixote e o publicou, pela primeira vez. Fazendo parte da região tida como o berço do castelhano, é em Valhadolid que, segundo muitos especialistas, melhor se fala a língua castelhana e onde as cinco vogais são mais nitidamente pronunciadas.

Vinte e oito quilómetros a jusante de Valhadolid, banhada pelo Douro, fica a vila de Tordesilhas. Pertenceu a várias rainhas de Castela, entre as quais algumas nascidas em Portugal. Assim, foram senhoras de Tordesilhas, Maria de Portugal – a "formosíssima Maria", como lhe chamou Camões, filha de D. Afonso IV de Portugal, e casada com Afonso XI de Castela – e Beatriz – filha de D. Fernando de Portugal, último rei da primeira dinastia, casada com João I de Castela (noutra ocasião, já falámos sobre as confusões que isso acarretou). No entanto, Tordesilhas é especialmente conhecida por ter sido o local onde, em 1494, foi assinado o tratado que estabeleceu a divisão, entre Portugal e Espanha, das terras por descobrir.

Casco histórico de Tordesilhas, foto de 2011 [LBM1948 | Wikimedia Commons]

Duarte de Almeida, o decepado

Seguindo a marcha do rio Douro em direção a ocidente, passamos pela pequena cidade de Toro. Foi aqui que, a 1 de março de 1476, se deu uma batalha que opôs as tropas dos Reis Católicos às portuguesas de D. Afonso V e do príncipe D. João (futuro rei D. João II de Portugal), numa altura em que Portugal se envolveu na guerra de sucessão espanhola. Apesar de ambos os lados terem declarado vitória no campo de batalha, o resultado prático foi uma vitória política dos Reis Católicos, confirmando o trono de Castela nas mãos de Isabel I e a união de Castela e Aragão.

Nesta batalha passou-se um episódio singular. O rei D. Afonso V confiou a guarda do estandarte português ao alferes-mor Duarte de Almeida que, no furor da batalha, se viu cercado por castelhanos. Lutou afincadamente para proteger a bandeira, erguendo-a o mais alto que podia. No entanto, uma violenta cutilada cortou-lhe a mão direita. Indiferente à dor, o alferes-mor empunhou-a orgulhosamente com a esquerda. Mas, outro golpe decepou-lhe também essa mão. Desesperado, tomou a bandeira nos braços e nos dentes, resistindo até cair moribundo. A bandeira foi momentaneamente perdida, até que o nobre português Gonçalo Pires a conseguiu recuperar. Este ato de heroicidade desmedida foi digno de admiração de ambos os lados da contenda. Amputado das duas mãos, Duarte de Almeida conseguiu sobreviver aos graves ferimentos, passando a ser conhecido como O Decepado.

Feito heroico de Duarte de Almeida, o Decepado, gravura de c.1900 [José Bastos | Biblioteca Nacional de Portugal]

Zamora – às vezes, aportuguesado para Samora – é a última cidade espanhola no Douro. Foi chamada a bem cercada, devido às suas famosas muralhas que constituíam um dos melhores bastiões ocidentais da linha do Douro espanhol.

No dia de Pentecostes de 1125, o jovem D. Afonso Henriques, com apenas catorze anos de idade, armou-se cavaleiro na catedral de Zamora. Dezoito anos mais tarde, a 5 de outubro de 1143, encontrou-se aqui com Afonso VII de Leão e Castela, com quem firmou o Tratado de Zamora. Para alguns historiadores, este tratado representa o reconhecimento da independência de Portugal. Enquanto outros, entendem que o facto de Afonso VII ter reconhecido Afonso Henriques como rei de Portugal se deveu apenas à sua pretensão de ser imperador e, por isso, ver com bons olhos ter reis como seus vassalos. Seja como for, a verdade é que foi a partir desse momento que D. Afonso Henriques começou a procurar incessantemente o reconhecimento papal, o que só viria a acontecer 36 anos depois, através da célebre bula Manifestis probatum.

O Douro em Zamora, foto de 2012 [Miguel Ángel Quintas | Wikimedia Commons]

Após mais algumas dezenas de quilómetros a serpentear por terras espanholas, eis que o Douro, na sua margem direita, toca em Paradela, concelho de Miranda do Douro. Durante os 122 quilómetros seguintes, o Douro estabelecerá a fronteira entre os dois países ibéricos, até penetrar completamente em território nacional em Barca d'Alva.

Terminamos, assim, mais um périplo por terras de nuestros hermanos, sempre com o rio Douro por perto. Espero que tenha gostado do passeio, caro(a) leitor(a)! Até à próxima!

Gostou deste artigo? Leia, também, Urbión e a história trágica de Numância e As grandiosas paisagens do Douro internacional

Para saber mais:

  • BERNADAS, P. (ed.) (2019). El Duero. Barcelona: Altaïr Magazine [compre online].
  • CORTÁZAR, F.G. (2009). Atlas de historia de España. Barcelona: Editorial Planeta [compre online].
  • GÓMEZ-PANTOJA, J.L. (1989) Castillos en el Duero. Gérion, Universidad Complutense de Madrid, n.º 7, pp. 241-249 [disponível online].
  • HORTELANO MÍNGUEZ, L.A. (2006). El turismo en el valle del Duero: Una ruta temática jalonada de hitos naturales y culturales. População e Sociedade n.º 13. CEPESE, Afrontamento [disponível online].
  • NOGUEIRA, F.M. (2017) Batalha de Toro: Duarte de Almeida, o Decepado. JP, p. 4 [disponível online].

Comentários

Artigos mais populares:

Ponte Luís I: história de uma obra única

Santa Catarina: da rua Formosa ao Marquês

Santa Catarina: da Batalha à rua Formosa

A fascinante história da expansão da Boavista

Serra do Pilar: mosteiro, morro e aqueduto