Rei Nicolau ou a tentação de Soult

O Porto foi o alvo da segunda invasão francesa a Portugal, em 1809, a cargo do marechal Soult. Tomada a cidade, Soult deixou-se seduzir pela ideia de se tornar soberano desta terra conquistada. Por pouco tempo, já que seria escorraçado da cidade e do País 45 dias depois. Venha conhecer como tudo isto se desenrolou.

Manuel de Sousa

Passage of the Douro, de Henri L'Evêque, gravura de 1812 [Arquivo Municipal do Porto | Porto Desaparecido]

Já vimos, as razões que levaram Napoleão Bonaparte a ordenar a invasão de Portugal em 1808. Vimos como a família real portuguesa escapou a Junot, mudando-se para o Brasil. Vimos como o imperador confiou ao marechal Soult a incumbência da segunda invasão francesa, que deveria tomar o Porto e seguir caminho para Lisboa. Vimos como Soult ocupou a cidade do Porto a 29 de março de 1809, quando se deu a chamada Tragédia da Ponte das Barcas.

Vamos, agora, prosseguir desse ponto e conhecer como se passou o resto da permanência de Soult em Portugal.

O saque da cidade

No dia 29 de março de 1809, depois de os franceses terem vencido as débeis defesas da cidade, o marechal Jean-de-Dieu Soult, duque da Dalmácia, decretou que o Porto fosse saqueado por 24 horas.

Jean-de-Dieu Soult, de Eberhard Wächter, pintura de 1808 [Wikimedia Commons]

A seguir à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), as Convenções de Genebra de 1949 determinaram que a destruição injustificada de propriedade privada durante uma ocupação militar é considera um crime. No entanto, ao tempo das Guerras Napoleónicas (1803-1815), a pilhagem das terras conquistadas era tida como parte integrante de uma vitória militar. Aliás, os próprios soldados tinham esse prémio em mente quando se empenhavam nos combates.

No Porto, o saque dos franceses acabou por durar praticamente quatro dias, durante os quais se assistiu a cenas de roubos, violações e assassínios. Soldados franceses invadiam as casas, arrombando portas, revirando arcas, armários e móveis à procura de ouro, prata, dinheiro ou joias, violando mulheres e ferindo ou matando todos os que lhes oferecessem resistência. Uma das vitimadas foi a Casa de Ramalde  casa solarenga da autoria de Nicolau Nasoni  que foi saqueada e, depois, incendiada. Durante muito tempo ficou conhecida como a Casa Queimada.

Muitos habitantes fugiram do Porto, levando consigo o que podiam, enterrando os objetos pequenos que deixavam para trás ou usando de dissimulações para esconder as suas riquezas. É neste contexto que surge a história do altar da capela do Santíssimo Sacramento da Sé do Porto. Trata-se de uma valiosa obra de arte em prata batida, executada por artesãos e ourives do Porto e de Lamego, em 1632. Conta-se que, quando os franceses entraram na cidade, o sacristão da Sé cobriu o altar com várias camadas de cal, de tal forma que ele passou desapercebido e, assim, foi poupado.

A verdade, porém, é outra. Os franceses sabiam do altar de prata e quiseram levá-lo. Foi o governador das Justiças do Porto, Pedro de Melo Breiner (a quem a rua do Breiner presta homenagem), que convenceu Soult a poupar o altar. Comprometeu-se, com a colaboração das principais famílias da cidade, a pagar ao marechal o valor do altar em dinheiro, para que este ficasse na cidade, dada a grande devoção que os portuenses lhe tinham. O marechal anuiu e começaram as negociações para aferir o verdadeiro valor do altar de prata. Processo que nunca se chegou a concluir...

Paço Real do Porto (Palácio dos Carrancas), gravura c.1870 [portoarc.blogspot.pt | Porto Desaparecido]

Entretanto, Soult instalou-se no Palácio dos Carrancas (que hoje alberga o Museu Nacional Soares dos Reis). Trata-se de um edifício de estilo neoclássico, mandado edificar em 1795 pelos irmãos Morais e Castro, com projeto de autoria de José Francisco de Paiva.

As aspirações de Soult

Soult enviou uma divisão para Vila Nova de Gaia, ordenando-lhes que prosseguissem a marcha para sul. Sabemos, no entanto, que não foram muito além de Santa Maria da Feira.

Solidificando a ocupação francesa, Soult procurou apresentá-la como uma forma de restabelecer a ordem e instalar um governo nacional. Autointitulando-se governador-geral do reino de Portugal e chefe do exército português, procurou que os portugueses abjurassem a soberania da Casa de Bragança. Na verdade, Napoleão tinha a intenção de fazer substituir, no trono de Portugal, a Casa de Bragança por um príncipe francês.

Nas suas Memórias, Soult nega ter tido a pretensão de se fazer aclamar soberano de Portugal, afirmando que sempre agiu em nome de Napoleão. No entanto, muitas evidências parecem confirmar que o duque da Dalmácia procurou posicionar-se como potencial soberano, se não de todo Portugal, talvez de um eventual principado do Entre Douro e Minho, com capital no Porto.

Para lograr tal desiderato, o marechal tentou limpar a péssima imagem que os portuenses tinham dele e do seu exército invasor. Para tal recorreu a vários expedientes, nomeadamente à imprensa.

Diario do Porto, 1809 [bestnetleiloes.com]

Uma semana volvida da entrada dos franceses na cidade, a 5 de abril de 1809, foi publicado o Diário do Porto, um pequeno jornal completamente pró-Soult. Várias foram as notícias que o exaltavam e o aclamavam como um herói que veio salvar Portugal. O número publicado a 6 de maio de 1809, por exemplo, noticiou o fuzilamento do soldado francês Saunier, do Regimento 19, por ter agredido violentamente uma portuense, de seu nome Tomásia Maria. Sempre em tom laudatório, a notícia acrescentava que "as intenções de Soult são de que as suas tropas sejam as primeiras e mais zelosas protetoras da segurança pública". Apesar do nome, o Diário do Porto não saía todos os dias, mas apenas uma vez por semana: aos sábados, depois do jantar. Era impresso e vendido no armazém de livros de António Álvares Ribeiro, na esquina entre as ruas das Flores e do Ferraz.

Na sua campanha de charme, Soult mandou organizar sopas dos pobres, assistiu a peças no teatro de São João, foi à missa à Sé e, com o seu Estado-Maior, deslocou-se ao santuário do Senhor de Matosinhos, centro de grande devoção popular, acendendo velas e lamparinas. Chegou mesmo a mandar devolver, aos seus legítimos donos, algumas das peças saqueadas pelas tropas francesas. Tudo isto era noticiado com grande exaltação pelo Diário do Porto.

Na sua biografia do marechal, a historiadora Nicole Gotteri salienta que as atitudes tolerantes de Soult teriam tido êxito, já que alguns portuenses teriam solicitado, por escrito, a Napoleão que o fizesse soberano do Porto.

No entanto, o já nosso conhecido cónego Apuril de Pontreau, confirmando as ambições de Soult em se tornar rei, revela que muito era conseguido através de processos ardilosos. Por exemplo, que os franceses forçaram muitos chefes de família da cidade a assinarem um livro de registo, sem lhes explicarem com que finalidade. Veio-se a saber que seria usado como prova do apoio da população à escolha de Soult como soberano. 

Reunindo um número alargado de membros da nobreza e do clero, negociantes e outros representantes da cidade, no dia 26 de abril foi organizado um grande cortejo – da praça Nova (atual praça da Liberdade) até ao palácio dos Carrancas – com passo marcado pelo ritmo dos tambores e devidamente acompanhado por militares em armas. Chegados ao palácio dos Carrancas, os presentes instaram Soult a se proclamar rei. Gritando "Viva o rei Nicolau!" os miúdos que se concentravam em frente eram brindados com moedas de cinco réis que, da varanda do palácio, Soult lhes atirava. Nas palavras de António de Resende Jorge:

"Enlevado no seu engrandecimento pessoal, rodeado de lacaios a bajulá-lo, antegozando o suspirado momento da sua coroação, Soult terá esquecido um pouco a administração. A exagerada ambição perdeu-o."

A expulsão dos franceses

Soult ainda não sabia, mas os seus momentos de glória no Porto tinham os dias contados...

A norte do Douro, as tropas portuguesas do brigadeiro Silveira impediam a ligação entre o exército de Soult e a divisão do general francês Lapisse que se encontrava em Salamanca. Ao mesmo tempo que criavam as maiores dificuldades à retaguarda francesa, impedindo-a de manter a ligação com a Galiza. Ou seja, as forças de Soult estavam praticamente isoladas.

A sul do Douro, os britânicos haviam enviado um novo contingente de militares. O tenente-general Sir Arthur Wellesley foi nomeando comandante da força expedicionária britânica na Península Ibérica, obtendo, também, o comando das forças portuguesas, quando estas atuassem combinadas com as britânicas.

Coimbra foi o ponto de reunião das forças anglo-portuguesas. No dia 6 de maio de 1809, saiu a força comandada por Beresford em direção a Peso da Régua. No dia seguinte, foi iniciada a marcha da coluna de Wellesley em direção ao Porto. No vale do Tejo ficou estacionada uma força militar britânica, para o caso das forças francesas do marechal Victor, estacionadas em Mérida, entrarem em Portugal.

As forças de Wellesley prosseguiram a sua marcha para o Norte, derrotaram os franceses em Grijó e chegaram à margem do rio Douro, em Vila Nova de Gaia, no dia 11 de maio.

Sabendo da aproximação de forças britânicas, Soult mandara já destruir a ponte das barcas e fazer atracar, na margem norte, todos os barcos do Douro, para que o exército de Wellesley não pudesse cruzar o rio. Prosseguindo na vã tentativa de captar a simpatia dos portuenses, Soult assinou um último decreto, mandando distribuir por hospitais, recolhimentos e pelo santuário do Senhor de Matosinhos o vinho de 3.700 pipas que sequestrara a negociantes ingleses. Soult sentiu-se seguro e decidiu repousar.

Local onde as tropas de Wellesley desembarcaram, na manhã de 12 de maio de 1809, foto de 2021 [Manuel de Sousa]

Entretanto, as forças anglo-portugueses escalpelizavam as margens do Douro em busca de embarcações disponíveis. Ao raiar da manhã do dia 12 de maio, um barbeiro do Porto atravessou o rio com um barquito para Oliveira do Douro. Daí, voltou à margem direita com um grupo de barqueiros que conseguiu resgatar quatro barcaças de transporte de vinho que estavam, sem guarda, logo por baixo do monte do Seminário (edifício onde atualmente estão os Salesianos do Porto). Foi com estes barcos que, no maior sigilo, o exército de Wellesley começou a atravessar o rio, do lado de Gaia para o lado do Porto.

Na cidade, começou a constar-se que os ingleses tinham conseguido passar o rio. No entanto, ninguém quis incomodar Soult no seu descanso. Ao meio-dia, Soult foi finalmente acordado e avisado de que o exército de Wellesley já estava a combater na cidade. Rapidamente, o marechal mandou reunir as suas forças, retirando apressadamente do Porto pela estrada de Valongo. Para trás deixou doentes e feridos, bem como parte significativa do arsenal e do material saqueado durante a ocupação.

Fugida de Soult da cidade do Porto, 1809 [Wikimedia Commons | Porto Desaparecido]

A retirada de Soult terá sido tão apressada que a refeição que preparavam para ele no Palácio dos Carrancas acabou por ser saboreada por Wellesley e pelos seus oficiais que também aqui se instalaram.

No dia seguinte, 13 de maio de 1809, Wellesley, numa proclamação já redigida no Palácio dos Carrancas, anunciou a expulsão das tropas francesas. E, para evitar a anarquia, dizia ainda "ordeno que os habitantes desta cidade permaneçam tranquilos nas suas casas, e que pessoa alguma, que não seja pertencente ao corpo militar, se apresente armada nesta cidade". Desta forma, terminaram os 45 dias de ocupação da cidade do Porto pelo exército do marechal Soult. 

Com os principais itinerários de fuga cortados, Soult foi forçado a retirar para Espanha através de terreno montanhoso, abandonando ou destruindo tudo o que não fosse essencial à sua sobrevivência: alimentação e munições para armas de fogo individuais. Seguiu em direção a Montalegre e daí para Ourense, onde, o que restava do exército de Soult, chegou no dia 19 de maio de 1809.

Derrotado militarmente em Portugal, Espanha e França e considerado "um saqueador de classe mundial" pelo historiador britânico Michael Glover  pelas obras de arte roubadas enquanto governador militar da Andaluzia , tal não impediu Soult de ser agraciado com as mais altas condecorações, nomeadamente a Légion d'honneur, de ver o seu nome gravado no Arco de Triunfo e a sua estátua colocada na fachada do Louvre, de ser promovido a marechal-general de França e de desempenhar o cargo de primeiro-ministro do seu país por três vezes. Faleceu aos 82 anos na terra que o viu nascer, Saint-Amans-la-Bastide, localidade que, para o homenagear, alterou o nome para Saint-Amans-Soult. É caso para dizer que o vilão de uns é o herói de outros!

Escrevo este artigo, precisamente quando passam 212 anos dos factos aqui relatados. Se ainda não o fez, convido o(a) prezado(a) leitor(a) a ler também o artigo dedicado à Tragédia da ponte das barcas.

Para saber mais:

  • ALVES, D., BARBOSA, H. & PINTO, J.R. (2016). O potencial do turismo militar para a cidade do Porto: O caso da segunda invasão francesa. Percursos & Ideias, vol. 7, pp. 22-34 [disponível online].
  • ESDAILE, C. (2009). A Batalha do Porto, de 12 de maio de 1809. OLIVEIRA, V. (coord.). O Porto e as invasões francesas (1809-2009). Porto: Público, vol. 3, pp. 109-134.
  • JORGE, A.R. (1979). O "Diário do Porto" - 1809: Um jornal pró-francês no tempo de Soult. Revista de História. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de História da Universidade do Porto, vol. 2. Actas do Colóquio "O Porto na Época Moderna", pp. 65-78 [disponível online].
  • RIBEIRO, J.M. (2009). A cidade do Porto e as invasões francesas (1807-1809). IV Congresso Histórico de Guimarães: Do Absolutismo ao Liberalismo, pp. 283-298 [disponível online].
  • SILVA, G. (2007).  Porto: Da história e da lenda. Cruz Quebrada: Casa das Letras [compre online].
  • SILVA, F.R. (2009) Objectivos e aspectos estratégicos da invasão de Soult. Revista da Faculdade de Letras - História. Porto, 3.ª série, vol. 10, pp. 103-109 [disponível online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].

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