O desejo num elétrico chamado 7

A música Pica do 7 veio despertar no grande público português a curiosidade em relação a uma linha de elétrico que ligava o centro do Porto à Ponte da Pedra. Na verdade, ao longo de grande parte do século XX, o 7 foi responsável pelo desenvolvimento e integração na cidade de um importante eixo que incluía Arca d'Água, Amial e São Mamede de Infesta. Venha saber mais!

Manuel de Sousa

O 7 no seu término, na Ponte da Pedra, vendo-se o pica a colocar o trólei na posição para regressar ao Porto, enquanto os passageiros aguardam, em plena estrada; foto de 1974 [Porto Desaparecido]

Nada me dá a pica que o pica do 7 me dá

Todos conhecem a música Pica do 7, cantada por António Zambujo, com letra do maiato Miguel Araújo. Pois bem, neste artiguinho vamo-nos debruçar sobre esta linha de elétrico que, na verdade, eram três: o 7, propriamente dito; o 7\ (lê-se sete com traço); e o 7\\ (lê-se sete com dois traços), sendo os últimos desdobramentos do primeiro.

Nesses tempos, no carro elétrico, o guarda-freios – nome dado ao condutor do elétrico – era acompanhado pelo conductor (em inglês) ou cobrador – que se encarregava de vender bilhetes e obliterar, com um alicate próprio, bilhetes e passes –, comummente designado por pica. Depois ainda havia o revisor que, de quando em vez, aparecia num dado transporte público para verificar se todos os passageiros estavam na posse dos seus títulos de transporte válidos. Na letra da música Pica do 7, Miguel Araújo joga ainda com uma outra aceção informal da palavra pica  no sentido de vontade, vigor, entusiasmo, desejo  concretamente na verso "Mais nada me dá a pica que o pica do 7 me dá". Já agora, no calão do Brasil, a palavra pica adquiriu um sentido completamente diferente!

O 7\ a subir a rua das Carmelitas, vindo da Praça, entre o 8, para Paranhos, e um autocarro de dois pisos, para Matosinhos; foto de 1973 [Mega Anorak; Flickr | Porto Desaparecido]

Uma inauguração com "auto de fé"

Apelidada, pela imprensa da época, como risonha e higiénica povoação, São Mamede de Infesta era conhecida como o paradeiro final das pândegas do Porto boémio dos finais do século XIX. No entanto, a localidade ressentia-se das deficientíssimas ligações à cidade, à época asseguradas pelo célebre carro Ripert, um carroção movido a tração animal. Eram os horários sempre incertos, eram os intermináveis solavancos provocados pelo estado deplorável da estrada, era o desconforto geral dos veículos e a antipatia dos cocheiros, já para não falar da velocidade. Diziam os críticos que o percurso entre o Porto e São Mamede era feito à estonteante velocidade de vinte metros à hora! Enfim, o ressentimento contra o Ripert era generalizado entre a população que tinha necessidade de recorrer aos seus serviços.

No entanto, tudo mudou a 19 de fevereiro de 1910, quando a Companhia Carris de Ferro do Porto (CCFP) inaugurou uma nova linha de elétrico – veículo que, à época, era o verdadeiro símbolo de eficiência, conforto e modernidade –, ligando a praça de D. Pedro IV (hoje, praça da Liberdade) a São Mamede. O importante evento foi assim noticiado no diário O Primeiro de Janeiro

"Cumpriu-se uma das mais legítimas aspirações dos habitantes de S. Mamede. A inauguração da linha fez-se ontem, às duas horas da tarde. Engalanado o carro elétrico n.º 201, foi dado o sinal de partida. Estralejaram foguetes e a banda da Oficina de S. José, à entrada da rua do Amial, executou o hino da Carta [à época, hino nacional]. Pelo caminho, algumas casas engalanadas e muita gente que, de todos os lados, surgia, satisfeita, a saudar os que passavam."

Para marcar devidamente a ocasião, a comissão de moradores da freguesia decidiu comprar um velho carro Ripert que foi colocado no largo em frente da igreja de São Mamede, ao qual foi ateado o fogo, como forma de celebrar a libertação de São Mamede da tirania do carroção. O júbilo foi geral, no momento em que as chamas envolveram o veículo. Mas, passados uns minutos, aqui e ali viam-se os olhos marejados de alguns que recordavam, já com saudades, as peripécias vividas a bordo daqueles velhos e ronceiros carroções...

Percurso do 7

No seu percurso entre a Praça e São Mamede, o 7 subia os Clérigos até ao Carmo, continuava pela praça de Carlos Alberto, rua dos Mártires da Liberdade, praça da República, rua da Lapa, rua de Antero de Quental, rua do Vale Formoso, praça 9 de Abril (Arca d'Água), rua do Amial, rua de Silva Brinco e rua de Godinho Faria, em São Mamede. Dois anos depois, a linha foi prolongada até à Ponte da Pedra. Tinha uma extensão total de 7,2 quilómetros, percurso que, em 1934, se fazia em 35 minutos. Mais tarde, o 7 passou a iniciar no Carmo (mais concretamente na praça de Gomes Teixeira), durante o dia. Só a partir das 21 horas, começava na praça da Liberdade. E também havia o 7 vadio, designação dada ao 7 que circulava durante a madrugada…

O 7, com destino à Ponte da Pedra, a entrar na rua das Oliveiras. A chapa de trás tem a indicação "Carmo" para quando invertesse a marcha para a viagem de volta; foto de 1974 [Old Portugal | Porto Desaparecido

Entretanto, para cobrir as zonas de maior procura, foram criados dois desdobramentos: 7\ – começava na Praça e fazia o mesmo percurso do 7, mas só até ao Amial – e 7\\ – com o seguinte itinerário: praça da Batalha, rua de Santa Catarina, rua e viaduto de Gonçalo Cristóvão, praça da República, Arca d'Água, Amial, São Mamede.

O 7, circulando na rua de Godinho Faria, já próximo do término, na Ponte de Pedra; foto de 1974 [Guy | Porto Desaparecido]

Como os elétricos utilizados nesta linha eram bidirecionais, chegado ao seu término, na Ponte da Pedra, o pica saía do 7 e invertia o trólei (nome dado à vara que ligava o veículo à linha aérea de energia elétrica), de forma a que o veículo pudesse fazer a marcha em sentido contrário. No interior, os encostos da bancos eram também invertidos. Enquanto isso, o guarda-freios dirigia-se à parte oposta do veículo. E, de repente, a traseira do elétrico tornava-se frente e vice-versa. Só quanto toda a operação estivesse concluída é que os novos passageiros podiam entrar no elétrico.

O 7\ saindo da rua da Boavista e entrando na travessa da Figueiroa, no seu percurso de regresso à praça da Liberdade; foto de 1974 [Guy Arab UF | Porto Desaparecido]

No regresso, o 7 e o 7\ faziam o mesmo percurso da ida até à praça da República. Daí, seguiam pela rua da Boavista, travessa da Figueiroa, rua de Cedofeita, praça de Carlos Alberto, praça de Parada Leitão, Cordoaria e rua do Dr. Ferreira da Silva. O 7\ ainda continuava até à praça da Liberdade. O 7\\, por sua vez, fazia o percurso inverso até à rua de Gonçalo Cristóvão, donde seguia pela rua de Sá da Bandeira, rua Formosa, largo do Padrão, rua de D. João IV, avenida Rodrigues de Freitas e rua de Entreparedes, terminando na praça da Batalha.

Ascenção e queda do 7

O conjunto de linha e desdobramentos do 7 era dos mais lucrativos do STCP  entidade municipal que, a partir de 1946, assumiu a gestão dos transportes públicos. Em 1958, representava 9,6% das receitas totais da rede de elétricos.

No seu caminho de regresso ao Carmo, o 7 entra na rua de Cedofeita, vindo da travessa da Figueiroa; foto de 1976 [Porto Desaparecido]

Ao longo da década de 1960, com o intensificar do trânsito automóvel no Grande Porto, assistimos a um recuo do elétrico e à sua progressiva substituição pelo autocarro, tido como mais flexível a alterações de trajeto.

O 7\\, na viagem de regresso à Batalha, no cruzamento da rua de Sá da Bandeira com a rua de Fernandes Tomás; foto de c.1970 [Keith Halton; Flickriver | Porto Desaparecido]

A 6 de outubro de 1975, a construção do viaduto sobre a rua do Amial – atualmente, parte integrante da Via de Cintura Interna (VCI) –, ditou que os carros elétricos passassem a terminar em Arca d’Água, fazendo-se transbordo para autocarros que completavam o percurso até à Ponte da Pedra. Finalmente, em 20 de junho de 1977, os elétricos foram descontinuados e os autocarros passaram a fazer toda a extensão da linha 7. Atualmente é o autocarro 600 que, com algumas diferenças, faz esse percurso.

Ao longo do século XX, os elétricos desempenharam um papel fundamental na expansão e no desenvolvimento do Grande Porto. Pela ampliação da sua rede, foram dilatando o espaço urbano, criando novos subúrbios e integrando os antigos na cidade. À semelhança de outras linhas, o 7 foi povoando o seu trajeto, nomeadamente no Amial, em São Mamede e na Ponte da Pedra.

A história da linha 7 do elétrico terminou em 1977. Passaram já 44 anos, mas ainda há muitas pessoas com gratas recordações do 7. A este propósito, recomendo a visualização deste pequeno vídeo. O sucesso da música Pica do 7 veio trazer uma certa magia a esta linha e reintroduzir no imaginário popular os desejos e as paixões vividas nas viagens de elétrico. O(A) prezado(a) leitor(a) chegou a andar no 7? Viveu romances nos elétricos?

P.S. - Os meus agradecimentos ao Pedro Rocha pelas suas sugestões.

Para saber mais:

  • ABREU, A.B. (1981). A evolução da cidade do Porto e os sistemas dos transportes. Revista de História, vol. 4, pp. 193-201 [disponível online].
  • ALVES, J.F. (2000). Nos trilhos da cidade: Aspectos históricos dos transportes colectivos no Porto. Revista da Faculdade de Letras - História, série III, vol. 1, pp. 101-112 [disponível online].
  • MARTINS, F.P. (2007). O carro eléctrico na cidade do Porto. Porto: Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto [disponível online].
  • PACHECO, E.M.T. (1992). Os transportes colectivos rodoviários no Grande Porto. Porto: Revista da Faculdade de Letras - Geografia. I série, vol. VIII, pp. 5-64 [disponível online]
  • PEREIRA, M.C. (1995). Os velhos eléctricos do Porto. Porto: Soc. Editorial Notícias da Beira Douro.
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].

Comentários

  1. Interessante narrativa do percurso deste elétrico! Na verdade começou com o Ripert...foi queimado sim no adro da Igreja de S. Mamede de Infesta. Esse percurso até ao tempo do 7 foi narrado em teatro feito pelo Grupo Dramático Flor Infesta baseado na obra do Dr. Campos Monteiro. Eu tive imenso gosto de ser a personagem principal dona do Ripert.

    ResponderEliminar
  2. Interessante narrativa do percurso deste elétrico! Na verdade começou com o Ripert...foi queimado sim no adro da Igreja de S. Mamede de Infesta. Esse percurso até ao tempo do 7 foi narrado em teatro feito pelo Grupo Dramático Flor Infesta baseado na obra do Dr. Campos Monteiro. Eu tive imenso gosto de ser a personagem principal dona do Ripert.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado por acompanhar este blogue. Cumprimentos

      Eliminar
  3. Até 1975 morei no Amial e eram os eléctricos da linha 7 que utilizava praticamente todos os dias. Saudades desses simpáticos, embora barulhentos, veículos desse tempo!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado por acompanhar este blogue. Cumprimentos

      Eliminar
  4. Sou deste tempo, depois só ia até ao Amial(inicialmente até ao campo do Progresso e depois até aos semáforos do Amial com a circunvalação), penso que já no primeiro mandato do Dr. Cabral na Câmara do Porto e com umas grandes obras de infraestruturas na zona entre Arca D'Agua(Praça 25 de Abril) e o Amial foram retiradas as linhas e passou a ser feita por autocarro. Obrigado por me fazer recordar a minha mocidade, como por exemplo jogar a bola em cima do viaduto do Amial (hoje VCI).

    ResponderEliminar
  5. Bom dia. Gostei muito do seu artigo. Eu também escrevi um, para uma revista imobiliária, que se chamava "7, Ponte da Pedra" https://portugal.brainsre.news/7-ponte-da-pedra/

    ResponderEliminar
  6. https://portugal.brainsre.news/7-ponte-da-pedra/

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Artigos mais populares:

Ponte Luís I: história de uma obra única

Santa Catarina: da rua Formosa ao Marquês

Santa Catarina: da Batalha à rua Formosa

A fascinante história da expansão da Boavista

Serra do Pilar: mosteiro, morro e aqueduto