Da Sé à Ribeira: Um passeio pelo coração histórico do Porto através das ruas da Bainharia e dos Mercadores

O Porto guarda histórias fascinantes escondidas em cada viela, rua e largo do seu Centro Histórico. Proponho-lhe, caro(a) leitor(a), um itinerário que atravessa séculos, começando no terreiro da Sé e terminando na emblemática praça da Ribeira, conhecendo a ancestral ligação da Sé à zona ribeirinha, percorrendo as velhas ruelas e calçadas e descobrindo as histórias que elas guardam.

Manuel de Sousa

Bilhete-postal da Ribeira, c.1910 [Ed. Petracchi & Notermann | Porto Desaparecido]

Caro(a) leitor(a), tal como noutro passeio anterior, iniciamos também este em frente à Sé do Porto. Mesmo ao lado, deparamo-nos com a chamada Casa da Câmara, ou Casa dos 24, uma reconstrução de 2002, da autoria do arquiteto Fernando Távora (1923-2005), no local onde existiam as ruínas de um edifício anterior. Ao longo dos tempos, contudo, a Câmara do Porto esteve em diversas localizações.

O terreiro da Sé e a Casa da Câmara

Rapidamente, reconstruímos os passos dos paços do concelho:

Na primeira metade do século XIV, os vereadores reuniam-se numa construção de madeira encostada à Sé do Porto, substituída em 1350 por um edifício de pedra, que ruiu pouco depois. As reuniões passaram então para o alpendre do convento de São Domingos. Em 1443, ergueu-se uma casa-torre na rua de São Sebastião (no local do atual do edifício de Távora), também com problemas estruturais. No final do século XVIII, a Câmara mudou-se para o colégio de São Lourenço e, em 1805, para o edifício da Casa Pia, na Porta do Sol. Em 1819, transferiu-se para o palacete de Monteiro Moreira, na praça Nova (atual, praça da Liberdade), demolido em 1916 para a abertura da avenida dos Aliados. A Câmara instalou-se, então, no Paço Episcopal, junto à Sé, até que, a 24 de junho de 1957, foi inaugurado o atual edifício da Câmara Municipal do Porto.

Paço Episcopal em 1935, quando aqui funcionava a Câmara Municipal do Porto, vendo-se, ao fundo à esquerda, a estátua "O Porto" que, anteriormente, havia estado a coroar o frontão do palacete de Monteiro Moreira, na praça de D. Pedro (hoje, da Liberdade) [Guilherme Bonfim Barreiros | Porto Desaparecido]

Passando o edifício de Távora, deparamo-nos com uma magnífica vista panorâmica, abrangendo o casario antigo e o morro da Vitória, com a silhueta da torre dos Clérigos no horizonte.

Das Escadas da Rainha à rua Escura

Descemos as escadas da Rainha, assim chamadas porque, segundo a tradição, por aqui subia D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, para acompanhar as obras da catedral. Outra versão identifica a tal rainha como sendo D. Mafalda, esposa do primeiro rei português. O paço situava-se ao fundo destas escadas, onde mais tarde funcionou o aljube.

Venda ambulante na rua Escura, c.1960 [Artur Pastor | Porto Desaparecido]

Terminada a descida, viramos à esquerda e encontramos a capela do Senhor dos Passos (ou oratório de São Sebastião), parte da antiga Via Sacra. Seguimos pela rua Escura. Inicialmente um caminho, foi aberta como rua Nova pelo bispo D. Diogo de Sousa (1461-1532). Chamou-se também rua do Ferro, devido a uma barra metálica a cerca de dois metros e meio de altura. Dizia-se que se um condenado à morte a alcançasse seria perdoado, o que  até onde julgo saber  nunca terá acontecido. Esta rua alojou importantes casas-torre, embora no século XIX tenha passado a acolher populações carenciadas, sobrelotando os velhos edifícios.

Rua dos Pelames: dos curtidores a Camilo Castelo Branco

Na cruz do Souto, um importante nó viário medieval, encontramos, à direita, a rua dos Pelames, outrora habitada por curtidores que trabalhavam nas margens do rio da Vila, emanando mau cheiro e doenças. Nesta rua viveu Diogo de Castilho (c.1490-1574), mestre de pedraria, autor dos projetos do convento de Monchique e de São Bento de Ave-Maria. Também por aqui, “num beco fétido de courama surrada”, viveu Camilo Castelo Branco (1825-1890), em 1843. Com a abertura da rua Mouzinho da Silveira (1870), foi construído um grande arco para suportar a rua dos Pelames, sob o qual se instalou uma fonte em 1885. O gradeamento colocado em 1911 visava impedir frequentes suicídios nesse local.

Cruz do Souto (entroncamento das ruas Escura, da Bainharia, dos Pelames e do Souto), c.1980 [Artur Pastor | Porto Desaparecido]

Rua da Bainharia: entre romanos e violeiros

De volta à cruz do Souto, seguimos pela rua da Bainharia que, com ajustes pontuais, segue o traçado da antiga via romana que ligava Olissipo (Lisboa) a Bracara Augusta (Braga). Em tempos, foi conhecida como rua de Funde Vila ou das Ferrarias. O nome atual – Bainharia (e não “banharia” como, às vezes, se ouve dizer) – remete para a grande concentração de bainheiros, artesãos que se dedicavam ao fabrico de bainhas para armas brancas, designadamente para espadas que, a dado momento, a rua terá tido em abundância.

A rua da Bainharia começa com um declive suave que vai aumentando progressivamente. As casas do lado esquerdo da rua encostavam à primitiva muralha, enquanto que as do lado direito tinham as traseiras para o rio da Vila.

Venda de castanhas na rua da Bainharia, 1973 [Sérgio Valente | Porto Desaparecido]

No número 50, funcionou a oficina de António Joaquim Sanhudo, artista de rabeca, violoncelo, violão e contrabaixo, premiado na Exposição Industrial do Porto de 1861. Foi um dos bem conhecidos Sanhudos da Bainharia que, entre os finais do século XVIII e meados do XX, viveram e trabalharam nesta que era também conhecida, informalmente, como a rua dos violeiros.

No gaveto da Bainharia com a rua de Santana, conservam-se aquelas que serão as duas casas mais antigas da rua, com elementos medievais, e paredes dos pisos superiores em taipa.

Rua dos Mercadores: eixo do Porto medieval

Logo a seguir, à direita surge-nos a travessa da Bainharia. No fundo deste arruamento, corria o rio da Vila. Aqui se localizavam os chamados aloques da Biquinha – os depósitos de estrume e lixo da cidade, ao ar livre, que acabaram por ser encerrados pela Câmara do Porto em 1854 – e a ponte de São Domingos para transposição do rio da Vila. Antes da abertura da rua de Mouzinho da Silveira, um dos arruamentos existentes foi a rua de São Crispim, onde se localizava o hospital do Palmeiros, mais tarde de São Crispim, no meio de um ambiente que só poderia ser considerado muito pouco saudável.

Rua dos Mercadores, c.1950 [Artur Pastor | Porto Desaparecido]

Mas o nosso percurso prossegue pela esquerda, pela rua dos Mercadores, continuação da via romana e uma das zonas mais nobres da cidade medieval, com numerosas casas-torre. Numa carta de 1374, o rei D. Fernando ordenava que os nobres e os altos prelados não permaneçam mais do que três dias no Porto e que não buscassem aposentadoria nesta rua, o que atesta a sua importância.

Crianças a brincar na rua dos Mercadores, c.1950 [Artur Pastor | Porto Desaparecido]

No entanto, a criação de novos eixos de circulação – a abertura da rua das Flores, no século XVI; da rua de São João, no século XVIII; da rua de Mouzinho da Silveira, no século XIX – lavaram à progressiva perda de relevância da rua dos Mercadores.

Praça da Ribeira: encontro com o Douro

Descendo a rua dos Mercadores, pouco depois de cruzarmos a rua do Clube Fluvial Portuense – atenção que é perigoso atravessar a rua junto da entrada do túnel, pelo que é sempre preferível andar mais uns metrinhos até à rua do Infante D. Henrique e usar a passadeira –, chegamos finalmente à praça da Ribeira, aberta para o rio Douro.

Desde cedo que as populações se fixaram nas margens do rio Douro. Neste local, o vale do rio da Vila foi aproveitado para se estabelecer o acesso da Ribeira – área de atividades piscatórias e comerciais – com o morro da Sé – zona de funções administrativas e religiosas –, dando origem ao eixo rua dos Mercadores-rua da Bainharia-rua Escura – que acabámos de percorrer. Este eixo constituía a ligação, não só à parte alta da cidade, mas também às estradas que, da cidade, partiam em direção a norte e a leste. Foi precisamente no local onde o rio da Vila se juntava ao Douro que se abriu uma espaço não edificado que deu origem à praça da Ribeira.

A Cerca Nova – mais conhecida por Muralha Fernandina –, concluída por volta de 1370, vedou o acesso direto da praça ao rio que passou a ser feito apenas através da porta da Ribeira, localizada na esquina sudeste da praça. Nos finais do século XV, um grande incêndio consumiu toda a envolvência da praça da Ribeira. Em 1763, sob o governo de João de Almada (1703-1786), foram elaborados planos para a monumentalização da praça. O projeto foi abandonado pouco depois de ter sido iniciado. Como memória desse projeto ficou apenas um maciço de pedra na esquina com a rua da Fonte Taurina, que constituiria o cunhal do edifício a edificar no local.

Entre 1776 e 1782, desenrolam-se obras segundo projeto da autoria de John Whitehead (1726-1802) que conferiram à fachada oeste da praça um aspeto muito semelhante ao atual. O lado oposto ao rio é rematado por uma fonte monumental, ostentando o escudo das armas de Portugal, sob as quais está um nicho destinado a receber uma imagem. Inserindo-se no mesmo projeto de reforma da praça, as fachadas a oeste apresentavam uma distribuição original em três registos. Posteriormente e por diversas vezes, estas fachadas foram ampliadas chegando a atingir atualmente sete pavimentos.

No entanto, o projeto de Whitehead não foi integralmente concretizado. Assim, a fachada a leste preserva o seu aspeto medieval, constituindo um interessante conjunto de casas do tipo estreito e alto do Porto.

Carros de bois, na praça da Ribeira, c.1900 [bilhete-postal | Porto Desaparecido]

Este local – área de atividades piscatórias e comerciais – foi desde sempre uma ligação vital entre a área ribeirinha (piscatória e comercial) e o morro da Sé (administrativo e religioso). A construção da Cerca Nova ou Muralha Fernandina, por volta de 1370, vedou o acesso direto ao rio, reaberto após a demolição da porta da Ribeira em 1822.

Em 1784, começou a ser construído um novo cais que se estendeu até aos Guindais e, em 1822, foi demolida a porta da Ribeira e o troço de muralha em que se inseria, abrindo a praça ao rio. Na sequência de trabalhos arqueológicos realizados no final do século XX, no centro da praça foi reconstruído um antigo fontanário que integra a escultura de José Rodrigues (1936–2016), conhecida como o “Cubo da Ribeira”.

A praça da Ribeira é hoje um dos locais mais visitados do Porto, com um conjunto de explanadas que cobrem grande parte da área deste largo icónico.

Porto: cidade viva, património do mundo

A olhar para o rio Douro, para a ponte Luís I e para a margem oposta de Vila Nova de Gaia, terminámos o nosso percurso da Sé até à Ribeira, usando o eixo que, durante séculos, constituiu a principal ligação entre duas áreas fundamentais da cidade. Percorremos ruas repletas de histórias e marcos culturais. Mas este percurso não é mais do que uma pequena amostra da extraordinária riqueza histórica e cultural da cidade do Porto. Declarada Património Mundial pela UNESCO, a cidade convida-nos continuamente a descobrir e redescobrir as suas fascinantes narrativas.

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Para saber mais:

  • AFONSO, D.B.B. (2012). A rua na construção da forma urbana medieval: Porto, 1386-1521. Porto: FLUP [disponível online].
  • BARBOSA, J.P. (2018). Património Desaparecido: Rede de Percursos e reconhecimento da Muralha Fernandina do Porto. Porto: FAUP [disponível online].
  • CARVALHO, T.P.; GUIMARÃES, C.; BARROCA, M.J. (1996). Bairro da Sé do Porto: Contributo para a sua caracterização histórica. Porto: Câmara Municipal do Porto.
  • OLIVEIRA, R.E.S. (2013). Duas muralhas, duas cidades: A história militar do Porto medieval. Porto: FLUP [disponível online].
  • SILVA, A.C. (2001). Origens do Porto. História do Porto, Porto: Porto Editora, pp. 46-117.
  • SILVA, A.M. (2010). As muralhas romanas do Porto: Um balanço arqueológico. Portvgalia: Revista de Arqueologia do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da FLUP, n.º 31-32, pp. 43–64 [disponível online].
  • SILVA, A. M. (2010) Ocupação romana da cidade do Porto: Ponto de situação e perspectivas de pesquisa. Gallaecia, n.º 29, pp. 213-262 [disponível online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].

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