Um voo de biplano sobre o Porto

O Porto, como todas as cidades, foi-se alterando ao longo dos tempos. E a melhor forma de ter a perceção dessas mudanças é do ar. Por isso, proponho-lhe um voo de biplano sobre o Porto de meados do século XX para descobrirmos como era, então, a Invicta. Venha daí!

Manuel de Sousa

Viva! Lembra-se do filme África Minha (Out of Africa, no original) de Sydney Pollack, baseado no romance da dinamarquesa Karen Blixen? E lembra-se daquela cena em que Robert Redford convida Meryl Streep para um voo sobre as belezas de África no seu biplano? Pois, é isso mesmo que vamos fazer!

Bem, não será exatamente a mesma aeronave… O biplano do filme era um DH.60 Moth, da década de 1920, e o nosso é um DH.82 Tiger Moth, da década de 1930. E, também, não vamos sobrevoar paisagens africanas, mas portuenses. Mas, tal como na sétima arte, a nossa viagem também é a fingir. Vamos ver fotografias aéreas e imaginar que estamos mesmo a sobrevoar tais paisagens naquele tempo.

Biplano DH.82 Tiger Moth da Aeronáutica Militar; foto de c.1935 [Porto Desaparecido]

Ora, tendo por base algumas fotografias publicadas na página Porto Desaparecido, proponho-lhe um curto voo à volta do Porto, para admirar as vistas. Para ilustrar este artigo, selecionei uma série de bilhetes-postais colorizados na época. Por uma questão de coerência com as demais imagens, a primeira e a última foto deste artigo, originalmente a preto e branco, foram também colorizadas, neste caso, recorrendo a uma ferramenta eletrónica.

Porém, em nome do rigor e da verdade histórica, fica o(a) leitor(a) informado(a) de que as imagens que ilustram este artigo são posteriores ao biplano, datando já das décadas de 1950 e 1960. Aliás, as incongruências começam logo no facto de o avião da imagem, com a matrícula 108 da Aeronáutica Militar, ter sido destruído na sequência de um grave acidente em 1937 (+ info), pelo que nunca poderia levantar voo do aeroporto de Pedras Rubras, que só foi inaugurado em 1945...

Bem, feitos os devidos avisos e ressalvas histórias, por favor, queria endireitar as costas da cadeira e apertar o cinto, porque... vamos levantar voo imediatamente!

Bilhete-postal do aeroporto de Pedras Rubras; foto de c.1950 [restosdecoleccao.blogspot.com | Porto Desaparecido]

Como disse, levantamos voo de Pedras Rubras, o aeroporto do Porto. Os estudos para a construção da pista iniciaram-se em 1938, por iniciativa da Câmara Municipal do Porto. Por essa altura, o Porto era servido pelo campo de aviação de Espinho que, apesar de ser militar, também tinha utilização civil.

Em Pedras Rubras, as obras começaram em 1942 com a abertura de duas pistas relvadas. Em 1945, deu-se início à construção da aerogare e finalizou-se a plataforma de estacionamento de aeronaves. A inauguração deu-se a 3 de dezembro de 1945, com um voo proveniente de Lisboa, da Companhia de Transportes Aéreos, ainda a TAP não existia. Em 1947, a aerogare foi concluída, sendo alcatroadas as duas pistas existentes. O primeiro voo internacional teve lugar em 1956, vindo de Londres. Bem mais tarde, em 1990, adotará a designação oficial de aeroporto Francisco Sá Carneiro, homenageando o então primeiro-ministro que, como sabemos, foi vitimado por um acidente aéreo dez anos antes...

Voltando ao nosso biplano. Uma vez no ar, dirigimo-nos para sudeste, em direção ao Porto, para a zona da Asprela.

É incrível a quantidade de longas extensões verdes que, nas décadas de 1950 e 60, ainda existem no Porto e nos seus arredores. Vemos a estrada da Circunvalação e o enorme edifício do São João, hospital universitário do Porto. Foi erguido por iniciativa do Estado Novo, ao mesmo tempo do seu irmão lisboeta, o Santa Maria. O edifício do Centro Hospitalar Universitário de São João foi oficialmente inaugurado a 24 de junho de 1959, dia de São João. Idealizado como um hospital escolar, foi-se tornando numa referência nacional, quer ao nível do ensino e investigação em medicina, como da assistência hospitalar à população.

Hospital de São João; foto de c.1960 [Porto Desaparecido]

Seguimos o nosso voo, rumo às Antas. O estádio das Antas foi inaugurado em 1952, tendo o Futebol Clube do Porto sido derrotado pelo Benfica no jogo inaugural. Dois anos depois, na inauguração do estádio da Luz, em Lisboa, foi a vez do FC Porto levar o Benfica de vencida, também na partida inaugural. Dois episódios, apenas, na interminável disputa entre os dois clubes... Após ter proporcionado muitas alegrias aos portistas, o estádio das Antas acabará por ser demolido em 2004, substituído pelo moderníssimo estádio do Dragão.

Para além do estádio, do nosso biplano podemos apreciar a igreja de Santo António das Antas – ainda sem a torre sineira – e a ampla e aprazível praça Velasques (mais tarde, Francisco Sá Carneiro), ainda despida de edifícios em seu redor.

Praça Velasques (hoje, de Francisco Sá Carneiro), com a igreja das Antas ainda sem torre sineira e o estádio da Antas ao fundo; foto de c.1955 [Porto Desaparecido]

Das Antas, rumamos para sudoeste, passando para a margem esquerda do rio Douro. Estamos em terras de Gaia e é a partir daí que nos acercamos do centro do Porto.

Voamos por cima da extensa avenida do Marechal Carmona (hoje, da República), com o mosteiro da Serra do Pilar à direita e o jardim do Morro à esquerda. É daqui que se obtém a melhor vista panorâmica sobre o Douro e a parte mais antiga e castiça da Invicta. À nossa frente, a ponte Luís I, porta de entrada do Porto, por excelência.

Serra do Pilar; c.1955 [Porto Desaparecido]

Continuamos sobrevoando o Porto com o nosso biplano. Aos nossos pés, contemplamos o jardim da Cordoaria, a velha Cadeia da Relação, a Universidade de Porto e a torre dos Clérigos, autêntico ex-líbris da cidade. Ao fundo, avistamos a estação ferroviária de São Bento e, à direita, conseguimos distinguir claramente as linhas modernas do Palácio Atlântico, construído entre 1946 e 1950, para servir de sede ao Banco Português do Atlântico, uma das maiores instituições bancárias da cidade e do país.

Clérigos, c.1955 [Porto Desaparecido]

Para melhor podermos apreciar a paisagem, damos mais umas voltas, sobrevoando a Baixa com o nosso biplano, admirando a grandeza da ampla – apesar da sua curta extensão – avenida dos Aliados. O imponente edifício dos Paços do Concelho ergue-se no seu topo, com uma torre que parece querer rivalizar com a dos Clérigos.

Ao lado do edifício da câmara, vemos um terreno baldio, onde será erguido o edifício dos Correios. Nestes terrenos esteve o palacete Ferreirinha, também conhecido como palacete da Trindade. Pertenceu a António Bernardo Ferreira, filho da D. Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha. Foi neste edifício que foi fundado o Clube Portuense. Tal como o velho bairro do Laranjal, também este palacete acabou sacrificado ao projeto da grande avenida central da cidade e ao arranjo urbanístico da área envolvente.

Por contraste, do lado de Gaia, o verde dos campos e dos pinhais é ainda preponderante.

Aliados e Câmara Municipal do Porto; foto de c.1955 [Porto Desaparecido]

Infletimos um pouco para noroeste, em direção à Boavista. Pelo caminho, avistamos o moderno edifício do Liceu Feminino de Carolina Michaelis, na Ramada Alta.

A origem desta escola remonta a 1914, ano em que foi criada a Secção Feminina dos Liceus do Porto. A própria Carolina Michaelis de Vasconcelos lecionou no liceu feminino em 1915 e 1916. Esteve originalmente no n.º 441 da rua de Cedofeita, onde funcionou até 1921. Daí passou para a praça do Coronel Pacheco. Em 1937, iniciou-se a construção de instalações de raiz na antiga Quinta Marion, junto da Ramada Alta. No entanto, as obras arrastaram-se e a nova escola só foi inaugurada em 1951, com a designação de Liceu Feminino de Carolina Michaelis.

Por trás do Carolina, conseguimos identificar a capela de Nossa Senhora das Dores e Senhor do Calvário, vulgarmente conhecida como capela da Ramada Alta. Em 1907, D. Carlos concedeu-lhe o título de capela real.

À esquerda da Ramada Alta, vemos a rua de 9 de Julho, assim chamada pelo dia do ano de 1832 em que as tropas liberais por aqui passaram em direção ao centro do Porto. À direita, a rua designada por Barão de Forrester mas que, até 1959, fazia parte da rua de Cedofeita. Aliás, se o(a) curioso(a) leitor(a) for ao início desta rua, no cruzamento com a rua da Boavista, verá que a numeração de Cedofeita continua na Barão de Forrester.

Liceu Feminino de Carolina Michaelis; foto de c.1964 [Porto Desaparecido]

Muito mais poderíamos dizer, mas o avião não pode parar! Logo ali à frente, damos com a praça Mouzinho de Albuquerque, por todos conhecida como a rotunda da Boavista.

Espaço arborizado, a rotunda ostenta no seu centro o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular – que é outro nome para designar as invasões francesas. Começada em 1909, com projeto da autoria do arquiteto Marques da Silva e do escultor Alves de Sousa, a obra só veio a ser concluída em 1952, sob a direção dos escultores Henrique Moreira e José Sousa Caldas. O monumento é coroado por um leão a dominar uma águia, simbolizando a derrota do exército napoleónico pelas tropas luso-britânicas.

À direita vislumbramos a estação ferroviária da Boavista, da linha da Póvoa que funcionou entre 1875 e 2001 – ano em que o Metro substituirá o comboio na ligação à Póvoa –, se bem que foi perdendo importância a partir de 1938, quando o término da linha passou a estar na estação da Trindade.

Entre a rotunda e a avenida da Boavista, vemos a chamada remise dos elétricos, uma das principais infraestruturas de apoio ao sistema de transportes públicos do Porto. Foi edificada em 1874, para servir de sede e oficina da Companhia Carris de Ferro do Porto. O edifício original foi vítima de um grande incêndio em 1928, o que levou à construção de uma nova remise com vinte portas. Este segundo edifício acabará por ser demolido em 1999, para dar lugar à Casa da Música.

A rotunda da Boavista (oficialmente, praça de Mouzinho de Albuquerque), foto de c.1958 [Porto Desaparecido]

Da rotunda, rumamos para sudoeste. Afastando-nos dois passos do centro da cidade, imediatamente o verde passa a dominar a paisagem. Avistamos a cúpula do Pavilhão dos Desportos que, desde 1952, substituiu o velho Palácio de Cristal. Aqui se realizam provas desportivas, espetáculos, feiras e exposições.

Ao fundo, a moderna ponte da Arrábida, símbolo vivo da capacidade da engenharia civil portuguesa e da genialidade de Edgar Cardoso. Construída entre 1957 e 1963, a ponte tem, à data da sua inauguração, o maior arco em betão armado do mundo.

Palácio de Cristal e ponte da Arrábida, c.1963 [Porto Desaparecido]

Acompanhando o tramo final do rio Douro, chegamos ao mar. O nosso biplano curva suavemente para nordeste, rumando já a Pedras Rubras.

Avistamos as avenidas do Brasil e de Montevideu, na Foz do Douro, e as arejadas moradias frente ao mar, onde vivem os portuenses mais abastados. Mas, não muito longe (em terrenos que, mais tarde, farão parte do Parque da Cidade), ficam Xangai e Liberdade, talvez os maiores bairros de lata do Porto. Um aglomerado de casebres de tijolo, madeira e chapa que acolhe muitos desfavorecidos. Em 1968, grande parte da população destes bairros de lata será realojada no Bairro Social de Aldoar.

Ao fundo é visível a quadrícula da malha urbana da zona industrial de Matosinhos e, mais à esquerda, o porto de Leixões.

Nevogilde; foto de 1962 [Porto Desaparecido]

E, com estas e com outras, estamos prestes a aterrar em Pedras Rubras, terminando o nosso voo pelo Porto de meados do século XX. Como vê, o nosso biplano portou-se muito bem. Tivemos um voo tão tranquilo que nem parecia que estávamos a voar!

Bem, espero que tenha gostado, caro(a) leitor(a). Marcamos já encontro para uma próxima viagem no tempo pelo Porto e não só! Até à próxima!

Para saber mais:

  • FERREIRA, M.C. (2017). Prontuário de toponímia portuense. Porto: Edições Afrontamento [compre online].
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].
  • TEDIM, J.M & SILVA, L.M. (2020). Porto visto de cima / from above. Lisboa: Edições Centro Atlântico [compre online].

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