As grandiosas paisagens do Douro internacional

Ao longo de 120 quilómetros, o rio Douro estabelece a fronteira entre Portugal e Espanha. Um território de uma beleza paisagística de cortar a respiração, dotado de um património cultural muito próprio e integrado numa das maiores áreas protegidas da Europa. Venha conhecer melhor este recanto único, venha conhecer o Douro internacional.

Manuel de Sousa

Depois de termos conhecido a nascente do rio Douro, em Picos de Urbión, e de termos acompanhado o seu percurso entre Sória e Zamora, vamos agora falar do chamado Douro internacional. São 120 quilómetros em que o rio, profundamente encaixado, estabelece a fronteira política entre Portugal e Espanha. Temos perante nós uma região de uma beleza paisagística de cortar a respiração, uma diversidade natural ímpar e um património cultural muito próprio, que o secular isolamento ajudou a preservar.

Douro Internacional ou Arribas do Douro; foto de 2008 [CGRM | Wikimedia Commons]

Uma das maiores áreas protegidas da Europa

Neste trajeto, o Douro cavou profundas gargantas, por onde corre. As margens escarpadas do vale profundo do rio formam desfiladeiros monumentais de grande espetacularidade que podem ser admirados a partir dos numerosos miradouros espalhados pelo território.

De um e outro lado da fronteira foram criados parques naturais, abarcando uma área total superior a 190 mil hectares. O Parque Natural do Douro Internacional – do lado português – e o Parque Natural das Arribas do Douro – do lado espanhol – constituem, no seu conjunto, uma das maiores áreas protegidas da Europa, integrando o projeto europeu da Rede Natura 2000 e, desde 2015, a reserva da biosfera transfronteiriça da Unesco.

O Douro e os seus afluentes são o elo de ligação de todo o território que se estende desde a barragem de Castro até Barca d'Alva, onde o rio Águeda se junta ao Douro. Os dois parques protegem a área das gargantas cavadas pelo Douro e seus afluentes e uma faixa do planalto adjacente. 

O grande desnível da orografia do Douro, o seu elevado caudal e os numerosos rios que nele desaguam, fazem deste trecho da fronteira uma das zonas de maior potencial hidroelétrico da Península Ibérica. Cientes deste potencial, em 1927, os governos da Espanha e de Portugal assinaram um acordo dividindo o aproveitamento hidroelétricos entre os dois países, de que resultou a construção das atuais barragens portuguesas (Miranda, Picote e Bemposta) e espanholas (Aldeadávila e Saucelle).

Barragem de Aldeadávila a descarregar; foto de 2010 [Raiden32 | Wikimedia Commons]

A profunda fenda aberta pelo Douro e os seus afluentes permitiu o desenvolvimento de uma vegetação tipicamente mediterrânica, já que a garganta do Douro funciona como um condensador de calor. Enquanto na peneplanície envolvente prevalecem condições climáticas caracterizadas por invernos longos e muito frios e verões curtos e moderadamente quentes, a garganta fluvial – especialmente na sua área mais a sul – apresenta invernos curtos e amenos e verões longos e quentes. Além da diversidade vegetal, as encostas mais íngremes tornaram-se locais ideais para o refúgio da fauna silvestre, principalmente de aves.

A sua localização fronteiriça, longe dos grandes centros populacionais e de acesso difícil, levou a um contínuo processo de despovoamento, mas também permitiu a conservação de um vasto património histórico, cultural e natural, patente na sua paisagem, arquitetura e tradições. A singularidade do clima, aliada à peculiaridade da orografia favorecem a existência de um ecossistema natural constituído por cerca de duzentas espécies de aves, pelo menos 45 de mamíferos, dezasseis de peixes, onze de anfíbios e dezassete de répteis.

Duzentas espécies de aves

A cegonha-preta é a ave mais emblemática da região. As cavidades e curvas das arribas são locais perfeitos para a nidificação desta ave, ameaçada de extinção. Mas há outras grandes aves de rapina nesta área. Entre elas, a forma do abutre-fouveiro é a mais fácil de identificar, circulando à vontade pela zona. As silhuetas do abutre-do-egito, do bufo-real, da águia-real, da águia-perdigueira, do milhafre-real e do falcão-peregrino também se destacam e são relativamente fáceis de reconhecer. Também frequentes são as populações de gralhas-de-bico-vermelho e cegonhas-brancas.

Douro em Miranda; foto de 2017 [Raúl Hidalgo | Wikimedia Commons]

Nas florestas dominadas por carvalhos, existem pequenas populações de gaios, galinholas, dom-fafes, melros, pica-paus e tordos. Nas matas, onde predominam as azinheiras, surge-nos o picanço-barreteiro, o picanço-real e a trepadeira-comum. Outras aves de rapina aqui presentes são a águia-pequena, o milhafre-preto, o milhafre-real e a águia-de-asa-redonda. Durante a noite, são frequentes o mocho-d'orelhas, a coruja-pequena, a coruja-do-mato e o noitibó-da-europa. Nas margens dos rios, avistam-se o borrelho-pequeno-de-coleira, o galeirão, a galinha-d'água, a garça-real, o guarda-rios e o melro-d'água. Como já foi dito, são mais de duzentas as espécies aqui existentes!

Do morcego ao burro mirandês

Das noventa espécies de mamíferos existentes na Península Ibérica, pelo menos 45 foram observadas nesta área. Destaca-se a presença de morcegos, dos quais existem catorze tipos. O abrigo proporcionado pelas arribas rochosas e o clima ameno explicam a sua especial proliferação nesta área.

Um dos mamíferos cuja presença desperta especial interesse, devido à sua escassez e rápida regressão no continente europeu, é a lontra. Também aqui, a construção de numerosas barragens provocou o seu quase desaparecimento.

O lobo também já foi bastante mais frequente, perseguido que foi durante séculos por pastores e criadores de ovelhas. Há alguns anos chegou a estar quase extinto, mas a sua população tem vindo a recuperar. Outros mamíferos, já relativamente mais abundantes, são a raposa, o javali, o coelho, a lebre, o ouriço, a doninha e a fuinha. Apesar de se considerar extinto nesta área, alguns especialistas admitem que ainda possam sobreviver alguns exemplares do lince ibérico, nos vales mais calmos e com vegetação mais preservada.

Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino, em Miranda do Douro; foto de 2020 [Ana Mendes | Wikimedia Commons]

Para além da fauna natural da região, há uma espécie animal, criada pelo homem, que merece destaque. Refiro-me ao burro-de-miranda ou burro mirandês, uma subespécie asinina característica da região de Terra de Miranda. Presente desde tempos remotos, esta variedade está perfeitamente adaptada às duras condições locais. Fisicamente robusto, de patas grossas, pelagem comprida e grossa de cor castanha-escura, o burro mirandês tem um temperamento extremamente dócil. Já foi muito usado como animal de tração, de tiro e de transporte, mas hoje está ameaçado de extinção.

Muitas áreas florestais de grande valor ecológico ainda estão preservadas, sendo comum a presença de carvalhos, sobreiros, azinheiras e zimbros. A videira é uma cultura muito difundida. Destacam-se, do lado espanhol, os vinhos da denominação de origem Arribes; do lado português, os vinhos do Planalto Mirandês e do Douro Superior. Existem, também, extensões importantes de oliveiras e de amendoeiras.

A paisagem natural é enriquecida por elementos resultantes das atividades humanas, como é o caso dos campos cultivados – delimitados por sebes de freixos e carvalhos –, das culturas em socalcos, em algumas zonas das arribas, e também das construções tradicionais, como os pombais.

A língua mirandesa

Toda esta região apresenta uma grande riqueza cultural, começando desde logo pela língua mirandesa, falada em algumas aldeias dos concelhos de Miranda do Douro e Vimioso.

Para o português médio, a excentricidade que representa o mirandês desperta curiosidade e interesse. Em bom rigor, trata-se de um dialeto do grupo asturo-leonês. As razões para o seu surgimento e sobrevivência até aos dias de hoje têm explicação histórica.

Placa toponímica em Miranda do Douro; foto de 2007 [Dantadd | Wikimedia Commons]

Como o(a) caro(a) leitor(a) estará lembrado(a) das aulas de História, quando, no século VIII, se deu a ocupação muçulmana da Península Ibérica, os cristãos ficaram reduzidos a um reduto no Norte: as Astúrias. Foi a partir desse bastião que os cristãos se foram expandindo para Sul, num processo longo de séculos, conhecido como reconquista.

Ora bem, nas Astúrias e, posteriormente, no reino de Leão, desenvolveu-se uma língua românica (derivada do latim) a que se dá o nome de asturo-leonês. A oriente desta desenvolveu-se o castelhano e a ocidente, o galego-português. Acontece que a Terra de Miranda, nesses primeiros tempos da reconquista, foi repovoada por gentes vindas de terras leonesas, ficando ligada à diocese de Astorga, e não à de Braga. A relação privilegiada com Leão ainda perdurou até inícios do século XIV, sendo que o asturo-leonês se implantou como língua corrente em Terras de Miranda.

Pelo Tratado de Alcanices (1297) a região foi definitivamente incorporada em Portugal, sendo da iniciativa do rei D. Dinis a criação da vila de Miranda. Com D. João III, a vila foi promovida a cidade, criando-se a diocese de Miranda do Douro, em 1545, sendo a arquidiocese de Braga amputada da maior parte do território transmontano. A destruição causada pela Guerra dos Sete Anos (1756-1763), popularmente conhecida como Guerra do Mirandum, levou os bispos a abandonarem Miranda, optando por residir em Bragança.

Monumento aos mirandeses, em frente à Câmara Municipal de Miranda do Douro; foto de 2008 [Carlos Cunha | Wikimedia Commons]

Não deixa de ser espantoso que a plena integração em Portugal, há mais de sete séculos, não tenha apagado completamente a língua desta terra, já que ficou politicamente isolada do restante território que falava o mesmo idioma. Mais espantoso ainda é o facto de, do outro lado da fronteira, a língua leonesa ter praticamente desaparecido  substituída pelo castelhano , enquanto que, em Miranda do Douro, se manteve com uma vitalidade surpreendente. O secular isolamento do território, face aos principais centros urbanos do litoral português, ajuda a explicar esta realidade.

Descoberto pelo filólogo José Leite de Vasconcelos, em 1882, o mirandês acabou por ser reconhecido oficialmente em 1999, sendo atualmente ensinado nas escolas da região. Para lutar contra a sua perda pela influência, têm sido publicadas várias obras em mirandês, para além de dicionários, gramáticas e prontuários ortográficos.

O caso do mirandês não é único na região. Do outro lado da fronteira, em Sayago, sobrevive outro farrapo do antigo idioma asturo-leonês. Chama-se saiaguês, mas é um falar muito estigmatizado. Em tempos idos, autores castelhanos importantes, como Lope de Rueda, Juan del Encina e até Cervantes, nas suas obras fizeram referências depreciativas em relação ao saiaguês, equiparando-o a falar rústico, deformando as suas características e usando-o como elemento de comicidade. 

Regressando a Miranda do Douro, não podemos deixar de referir os célebres Pauliteiros de Miranda, expoente máximo do folclore local. Tradicionalmente, são oito homens que interpretam uma dança guerreira, ao som de gaitas de foles e bombos. Por toda a região, sobrevivem ainda outras manifestações etnográfico-culturais, muitas delas de origens pagãs.

Pauliteiros de Miranda; foto de 2005 [Mário Pires | Wikimedia Commons]

As atividades tradicionais continuam a ter algum peso na economia das famílias locais, nomeadamente a apicultura, a charcutaria e o artesanato. Neste último caso, destacam-se os trabalhos em madeira, as flautas e gaitas de foles, os ferros forjados e a cutelaria, para além da cestaria, da latoaria e da tecelagem em lã, linho e seda, de que são exemplo as colchas e as capas de honras feitas em burel.

O património arqueológico existente no território é igualmente vasto e abrange desde gravuras rupestres, castros, testemunhos da ocupação romana e castelos medievais, até às estações de comboio das antigas linhas do Sabor e do Douro e exemplares de arquitetura do ferro dos finais do século XIX.

Infelizmente, a enorme riqueza produzida pela geração da eletricidade das barragens não se traduziu em vantagens diretas para as populações que vivem em seu redor. Num artigo publicado recentemente, Óscar Afonso, professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, lembrava que, considerando o seu PIB per capita, Miranda do Douro ocupa o 182.º lugar entre os concelhos do país. No entanto, se a riqueza produzida pelas barragens hidroelétricas de Miranda e Picote revertesse para o concelho, Miranda do Douro passaria a ser o 5.º município mais rico do país!

Vendo bem, não parece justo que os enormes proveitos destes equipamentos não revertam – pelo menos em parte – para o concelho onde estão localizados. O que se passa em Miranda do Douro, com as barragens de Miranda e Picote, passa-se em Mogadouro, com a barragem de Bemposta, e com outros concelhos por esse rio abaixo.

Chegado a Barca d'Alva, o rio Douro entra completamente em território nacional. Mas ainda tem de percorrer mais 210 quilómetros até se encontrar com o mar.

Hoje, ficamos por aqui, caro(a) leitor(a). Sugiro-lhe que veja este vídeo que lhe dará uma ideia aproximada da grandiosidade da paisagem do Douro internacional e, logo que possa, não deixe de visitar esta região:

Para saber mais:

  • BERNADAS, P. (ed.) (2019). El Duero. Barcelona: Altaïr Magazine [compre online].
  • CASTRO, J.P.R. (2004). Parque Natural Douro Internacional/Arribes del Duero: territórios transfronteiriços, suas dinâmicas. Universidade do Minho [disponível online].
  • FERREIRA, S., GROSSO-SILVA, J.M. & ALVES, P.C. (coord.) (2007). Avaliação do estado actual do conhecimento sobre a entomofauna do Parque Natural do Douro Internacional. ICETA – Universidade do Porto [disponível online].
  • Parque Natural do Douro Internacional, ICNF [disponível online].
  • QUARTEU, R. & FRÍAS CONDE, X. (2002). L mirandés: Ua lhéngua minoritaira an Pertual. Ianua. Revista Philologica Romanica, vol. 2, pp. 89-105 [disponível online].

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