Antiga Cadeia da Relação

Em pleno centro do Porto, a uns meros duzentos metros da Torre dos Clérigos, fica um vasto edifício que encerra uma grande carga simbólica. Trata-se de um exemplar único da arquitetura prisional do Antigo Regime – onde o escritor Camilo Castelo Branco esteve preso e escreveu a sua obra-prima, o Amor de Perdição – e que hoje conserva as obras dos pioneiros da fotografia em Portugal.

Manuel de Sousa

Cadeia da Relação do Porto, ca.1900 [Foto Guedes | Porto Desaparecido]

A Relação do Porto

Tinha passado apenas um ano desde que Filipe II de Espanha (1527-1598) fora aclamado rei de Portugal – dando início a um período conhecido como União Ibérica (1580-1640) – quando foi criado o Tribunal da Relação do Porto. Por falta de instalações próprias, o novo tribunal começou por funcionar na Casa da Câmara, junto à Sé. Seria já o seu filho e sucessor, Filipe III de Espanha (1578-1621), a ordenar a construção, de raiz, de um edifício que funcionasse como tribunal e cadeia, em 1603.

O local escolhido foi o, então chamado, campo do Olival, decorrendo as obras sob a direção do corregedor Manuel Sequeira Novais. A construção do enorme edifício consumiu tantos recursos financeiros que todas as outras obras da cidade tiveram de ser suspensas até à sua conclusão. Apesar disso, como se veio a comprovar, a qualidade da construção estava longe de ser a melhor...

No dia 1 de abril de 1752, um Sábado de Aleluia, sem que nada o pudesse justificar e perante os olhos incrédulos dos portuenses, o edifício desmoronou-se por completo. Tribunal e cadeia tiveram de regressar à antiga Casa da Câmara, ao lado da Sé.

Tribunal e cadeia

Foi já durante a vigência da Junta das Obras Públicas (1763-1804) que se avançou com a reconstrução do edifício. João de Almada e Melo (1703-1786) chamou Eugénio dos Santos (1711-1760), um dos principais obreiros da Baixa Pombalina de Lisboa, para traçar o novo projeto da Cadeia e Tribunal da Relação do Porto. As obras demoraram-se trinta anos, decorrendo já após a morte do autor do projeto, entre 1765 e 1796.

Estamos perante um edifício de três andares, de planta poligonal irregular e aspeto austero. Apresenta duas fachadas nobres: uma voltada a nascente, para a rua de São Bento da Vitória, e outra – que hoje é a principal – voltada para a Cordoaria, mais concretamente para o atual largo do Amor de Perdição.

Edifício da Cadeia Civil do Porto, 1961 [Foto Guedes | Porto Desaparecido]

Construído de acordo com as conceções punitivas que vigoravam na época, a área prisional estava disposta em três pisos. No piso superior, ficavam as prisões individuais. Eram conhecidas como os quartos da malta  alegadamente, pelo facto de, em tempos recuados, a Ordem de Malta ter aí detido um quarto para alojamento dos irmãos  e estavam reservadas a pessoas de estrato social e económico elevado. Aqui os presos podiam circular livremente, sendo as portas encerradas apenas durante a noite. No segundo piso, situavam-se os salões de Nossa Senhora do Carmo e de São José e a sala das mulheres, espaços igualmente coletivos, mas menos insalubres. Ao nível térreo, situavam-se as seis enxovias, batizadas com nomes de santos: Santo António, São Vítor, Santa Rita, Senhor de Matosinhos, Santa Ana e Santa Teresa (esta última para mulheres). Escuras, húmidas e muito frias, as enxovias eram lajeadas a granito e só tinham acesso por alçapões colocados no teto. Estavam sistematicamente superlotadas com presos de baixa condição.

Pelo que nos relata Camilo Castelo Branco (1825-1890) nas Memórias do cárcere, em 1860, o jovem rei D. Pedro V (1837-1861) visitou a Cadeia da Relação e fez questão de descer às enxovias. Impressionado, no final da visita terá exclamado: "Isto precisa de ser completamente arrasado!" Mas, não foi...

Camilo Castelo Branco e outros presos famosos

O edifício dispunha ainda de celas para presos incomunicáveis, uma prisão para menores e um oratório para os réus condenados à morte, no primeiro piso. Em Portugal, a pena de morte foi abolida em 1867, há mais de 150 anos, portanto. Portugal foi o primeiro Estado soberano moderno da Europa a abolir a pena capital para crimes civis.

Cadeia da Relação vista da Torre dos Clérigos, 1969 [SIPA | Porto Desaparecido]

A Cadeia da Relação do Porto acolheu assassinos, malfeitores, falsários, vagabundos, larápios de ocasião, políticos em desgraça, revolucionários falhados, entre muitos outros. Por aqui passaram, também, presos famosos. O primeiro duque da Terceira (1792-1860) esteve no número 8 dos quartos da malta; no número 13 esteve Vicente Urbino de Freitas (1849-1913), o médico acusado de envenenar os sobrinhos. Mas os presos mais famosos foram, sem dúvida, os escritores Camilo Castelo Branco e Ana Plácido (1831-1895), ele detido no quarto número 12 e ela na sala das mulheres, do segundo piso. Diz-se que Camilo escreveu o Amor de perdição na prisão em apenas quinze dias. O salteador Zé do Telhado (1818-1875), o caudilho miguelista João Pita Bezerra (1789-1835), assim como o jornalista e político João Chagas (1863-1925), também conheceram as celas da velha cadeia.

Centro Português de Fotografia

Em 1961, o Tribunal da Relação do Porto foi ocupar as novas instalações do Palácio da Justiça, muito próximo, erguido no local anteriormente estava o Mercado do Peixe. E, em 1974, após cerca de duzentos anos de atividade ininterrupta, este exemplar único de arquitetura prisional setecentista deixou definitivamente de desempenhar as funções para as quais foi construído, sendo todos os presos transferidos para o Estabelecimento Prisional de Custoias.

Em 2000 – com projeto dos arquitetos Eduardo Souto de Moura e Humberto Vieira – foram feitas profundas obras de conservação e adaptação do edifício às suas novas funcionalidades: acolher o Centro Português de Fotografia, valência que mantém até hoje.

Cadeia da Relação vista do jardim João Chagas (Cordoaria) [Manuel de Sousa | Wikimedia Commons]

Para saber mais:

  • ALVES, J. F. (1985). A Cadeia e Tribunal da Relação do Porto: Quatro documentos para a história da sua construção. Boletim do Arquivo Distrital do Porto.
  • ALVES, J. F. (1988). O Porto na época dos Almadas: Arquitectura, obras públicas. Porto: Centro de História da Universidade do Porto.
  • CASTELO BRANCO, C. (1862). Memórias do cárcere. Porto: Viúva Moré [disponível online].
  • COELHO, M. S. e SANTOS, M. J. M. (1993). O palácio da Relação e Cadeia do Porto. Porto: Edições ASA.
  • LOZA, R. (1993). Porto a Património Mundial: Processo de candidatura da cidade do Porto à classificação pela UNESCO como Património Cultural da Humanidade. Porto: Câmara Municipal do Porto.
  • QUARESMA, M. (1995). Inventário artístico de Portugal: Cidade do Porto. Lisboa: Academia Nacional de Belas-Artes.
  • SOUSA, M. (2017). Porto d’honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros.
  • TELES, A. (1917). Camilo Castelo Branco na Cadeia da Relação do Porto. Lisboa: Livraria Ferreira [disponível online].

Comentários

  1. Entrei uma vez aí era miúdo e lembro-me que as escadas eram muito altas
    como disse anteriormente era miúdo e tinha que levantar bastante a perna
    para subir eran de pedra e muito altas.

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    1. Tem de lá voltar para verificar se os degraus são, de facto, tão altos como os imagina. Muito obrigado por acompanhar este blogue!

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