Ponte Maria Pia sobre o Douro

No dia de São João, faz 30 anos que a ponte ferroviária de Maria Pia foi desativada e o seu futuro continua, ainda hoje, por definir. Venha conhecer melhor esta importante obra de engenharia civil – a primeira travessia ferroviária do Douro – e os protagonistas que estiveram por trás dela.

Manuel de Sousa

Bilhete-postal "Porto - ponte Maria Pia"; c.1910 [Repositório Temático da Universidade do Porto | Porto Desaparecido]

Estávamos em 1864 quando o caminho de ferro chegou finalmente à estação das Devesas, em Vila Nova de Gaia. Porém, quem se dirigisse ao Porto, teria de fazer os derradeiros dois quilómetros em diligências puxadas por cavalos e entrar na cidade atravessando a periclitante ponte pênsil. Para levar a linha do Norte à cidade do Porto seria ainda necessário vencer o sério obstáculo que constituía o rio Douro.

Para lograr tal desiderato, foram consideradas várias possibilidades. Como muitos entendiam que o rio só podia ser ultrapassado por uma ponte à quota baixa, uma primeira solução preconizou a construção de um túnel para fazer baixar a quota da linha férrea, desde as Devesas até à margem do rio, erguendo-se uma ponte sensivelmente no local onde hoje está a ponte do Freixo. Uma vez transposto o rio, a linha seguiria pelo vale do rio Tinto, em plena freguesia de Campanhã, onde ficaria a estação. Este ficou conhecido, precisamente, como o traçado de Campanhã. O projeto foi aprovado pelo governo e foram iniciadas as obras na margem esquerda, nomeadamente a abertura do túnel.

Entretanto, constatou-se que a estação ferroviária ficaria num vale profundo, demasiado longe do centro do Porto, cujo acesso teria de ser feito por estradas com fortes inclinações, em muitos pontos, superiores a 10%.

Os três traçados propostos para a transposição do Douro (à esquerda) e, uma vez aprovado o traçado do Seminário, as quatro propostas apresentadas ao concurso público para a construção da ponte ferroviária (à direita) [Diario Illustrado, 3 abril 1873 e Porto Maria Pia - Figuras]

Perante os investimentos já efetuados, foi feito um segundo projeto, procurando aproveitar parte do trajeto do anterior. A transposição do Douro passou ainda mais para montante, um pouco para lá do palácio do Freixo. Daí, a linha faria uma longa volta, contornando o vale do rio Tinto, colocando-se a estação terminal nas imediações do atual edifício da junta de freguesia do Bonfim. Este projeto, que ficou conhecido como o traçado do Campo do Cirne, foi também aprovado pelo governo, a 8 de novembro de 1869.

No entanto, a conveniência de fazer coincidir o término da linha do Norte com as linhas do Minho e do Douro, levou o engenheiro-chefe da Companhia Real dos Caminhos de Ferro, Pedro Inácio Lopes, a avançar com uma nova e revolucionária solução, propondo uma ponte à quota alta e bastante mais a jusante. Foi o chamado traçado do Seminário – por atravessar o rio entre Quebrantões e o monte do antigo seminário diocesano – que acabou por ser construído. Tinha várias vantagens: o traçado era mais curto, o percurso tinha poucas inclinações e garantia a ligação direta entre a linha que vinha de sul com as que vinham de norte, na estação do Pinheiro (hoje designada por Porto-Campanhã). Coube ao eng.º Pedro Inácio Lopes o acompanhamento dos trabalhos de construção da nova ponte, em conjunto com o diretor-geral da Companhia, Manuel Afonso Espregueira.

Com a adoção desta solução, ficou sem utilidade o túnel de cerca de mil metros de extensão, que, entretanto, tinha sido cavado em Gaia e que acabou por ser vendido à Real Vinícola (hoje integrada na Real Companhia Velha) que, desde então, aí armazena os seus vinhos espumantes.

Túnel dos espumantes da Real Vinícola; foto c.1940 [Hemeroteca Digital]

O nome da ponte

Feito o concurso público para a construção da ponte ferroviária, dos quatro construtores a apresentarem propostas, a escolha recaiu sobre a da casa Eiffel & Cie. que, com a sua equipa de engenheiros, logrou vencer com sucesso os diversos desafios técnicos que se lhe foram apresentando. A construção iniciou-se em janeiro de 1876.

Construção da ponte ferroviária sobre o Douro, do lado de Vila Nova de Gaia; foto de 1876 [Emílio Biel; Wikimedia Commons | Porto Desaparecido]

Um pormenor pouco conhecido é que a ponte esteve para se chamar Ponte D. Fernando, em homenagem ao marido da rainha D. Maria II, entretanto já falecida. Só no próprio dia da inauguração, a 3 de novembro de 1877, é que uma comissão de notáveis se dirigiu a Maria Pia de Saboia, rainha-consorte de D. Luís I, pedindo-lhe que aceitasse que a nova ponte fosse batizada em sua honra, tendo esta anuído. Assim, para dar nome à ponte, o rei consorte alemão foi, à última hora, preterido em favor da rainha consorte italiana!

Ilustração do jornal satírico Pae Paulino, representando a "Ponte D. Fernando"; desenho de 1877 [arquivo.cm-gaia.pt | Porto Desaparecido]

No entanto, coube a Adelaide Lopes, esposa do eng.º Pedro Inácio Lopes, protagonizar um episódio verdadeiramente insólito. Antes da carruagem real iniciar a travessia da ponte, D. Adelaide afastou-se do seu marido e da comitiva que, do lado do Porto, aguardava a família real, e, com um passo firme e ligeiro, percorreu toda a extensão da ponte do Porto até Gaia através da passadeira lateral, utilizada para manutenção, fazendo equilibrismo sobre a travessa central, ainda sem guarda. Ao que se comentou na imprensa da época, tal arrojo foi motivado por uma aposta feita com as suas amigas, tendo D. Adelaide se tornado, de facto, a primeira pessoa não relacionada com a obra a atravessar a ponte.

E foi grande a festa no dia da inauguração! Encomendou-se fogo-preso a uma afamada casa francesa que, à noite e com a presença da família real, foi lançado da Serra do Pilar. Porém, o fumo provocado foi tanto que praticamente não permitiu a visibilidade dos fogos, para deceção dos milhares de pessoas presentes.

A autoria da ponte

Apesar da ponte ser correntemente identificada como sendo de Eiffel, a questão da sua verdadeira autoria é um dos aspetos que, ainda hoje, se reveste de alguma controvérsia.

Tabuleiro da ponte Maria Pia; foto de c.1890 [Foto Guedes; Arquivo Municipal do Porto | Porto Desaparecido]

A ponte Maria Pia apresenta uma série de soluções técnicas originais. Com 354 metros de extensão e colocado a 62 metros acima do nível do rio, o tabuleiro apoia-se num arco de 160 metros de vão, na época, o maior do mundo.

Bem sabemos que a empresa Eiffel & Cie. foi buscar o seu nome ao engenheiro francês Alexandre Gustave Eiffel que, em 1869, criou uma sociedade com o engenheiro belga François Théophile Seyrig, seu colega na École Centrale des Arts et Manufactures, de Paris. Seyrig entrou para a empresa com 126 mil francos e Eiffel com 84 mil francos. Mas, apesar de ser minoritário, Eiffel assegurou para si a gerência da sociedade e um salário três vezes superior ao do seu sócio.

Entre os investigadores que se têm debruçado sobre o assunto, hoje em dia, parece consensual que coube ao eng.º Théophile Seyrig a conceção do arco metálico da ponte, elemento fundamental de todo o conjunto. No próprio material promocional produzido pela casa Eiffel & Cie. são referidos como autores da ponte Théophile Seyrig e Henri de Dion (este último, responsável pelos cálculos).

Comboio com locomotiva a vapor atravessa a ponte Maria Pia; foto de c.1940 [Repositório Temático da Universidade do Porto | Porto Desaparecido]

O facto de Eiffel ser o diretor do projeto e da empresa ostentar o seu nome, acabou por relegar Seyrig para o estatuto de mero colaborador de Eiffel. Para além disso, as grandes preocupações comerciais de Eiffel, que contrastariam com uma personalidade mais introvertida de Seyrig, acabaram mesmo por ditar a saída do belga, em litígio, da sociedade. Rompendo com o antigo sócio em 1879, Seyrig ingressou na Société Anonyme de Construction et des Ateliers de Willebroeck, em Antuérpia, e foi já com esta empresa que venceu o concurso público para a construção da ponte Luís I, fazendo jus à sua ímpar competência técnica.

Todavia, a obra posterior de Seyrig foi pouco relevante. Por contraste, após a ponte Maria Pia, a casa Eiffel construiu, só em Portugal, mais trinta e duas pontes ferroviárias. Em França, construiu o viaduto Garabit (1884); em Nova Iorque, a armadura da Estátua da Liberdade (1885); para além da famosíssima Torre Eiffel (1889), em Paris. Tudo isto contribuiu para granjear uma enorme notoriedade ao nome Eiffel que, injustamente, eclipsou o papel decisivo de Seyrig na construção da ponte Maria Pia.

Por isso, se quisermos ser justos, teremos que, no mínimo, atribuir a Seyrig a coautoria da ponte Maria Pia.

Ponte problemática

Uma vez que – no concurso público para construção da obra – a escolha recaiu sobre a solução mais económica, a ponte Maria Pia tinha apenas 3,10 metros de largura, o que a limitava a apenas uma via, para além de ser uma estrutura muito leve. Com apenas vinte anos, a ponte já inspirava cuidados. Entre 1900 e 1906, foram feitos trabalhos de reforço da estrutura e eliminadas as juntas dos carris, soldando-os. Tal permitiu que as composições pudessem passar a circular a vinte quilómetros por hora, em vez dos dez, iniciais. Em 1909, foi encomendado um relatório ao eng.º Manet Rabut, especialista francês em estruturas metálicas, que tranquilizou as autoridades, garantindo a segurança da estrutura.

Viagem inaugural do foguete entre Lisboa e Porto, em abril de 1953 [restosdecoleccao.blogspot.com]

De qualquer forma, logo em 1916, foi criada uma comissão para estudar uma segunda ligação ferroviária entre o Porto e Gaia. Em 1928, foi apresentado o primeiro anteprojeto para uma nova ponte de via dupla, em betão. Nas décadas de 1940 e 1950, foram propostos projetos para a construção de uma ponte mista, rodo e ferroviária.

Anteprojeto de uma ponte rodoferroviária para o Douro; desenho de 1939 [Arquivo Municipal do Porto | Porto Desaparecido]

Após a conclusão da ponte da Arrábida, em 1963, foi criado um grupo de trabalho para aproveitamento do cimbre metálico. Alguns(mas) leitores(as) estarão ainda lembrados(as) de ver largas dezenas daquelas grandes caixas metálicas espalhadas ao longo da estrada marginal, nas imediações da ponte Maria Pia.

Entretanto, em 1982, a ponte Maria Pia foi reconhecida como monumento nacional e, no ano seguinte, foi aberto concurso internacional para a construção de uma nova ponte.

Na verdade, a avançada idade da obra de arte e as limitações que impunha ao trânsito ferroviário, acabaram por exigir a sua substituição. A sua função passou a ser desempenhada por uma outra ponte, não menos notável, obra do eng.º Edgar Cardoso, a São João. Mas não sem antes, a American Society of Civil Engineers conceder à Maria Pia o título de International Historic Civil Engineering Landmark, sendo a única obra portuguesa a ostentar este galardão.

Construção da ponte ferroviária de São João, 170 metros a montante da Maria Pia; foto de 1989 [Mário Vilaça Bizarro | Porto Desaparecido]

A 24 de junho de 1991, a inauguração da ponte São João desonerou a Maria Pia das funções para as quais tinha sido construída. Desde essa altura, foram sendo apresentadas numerosas propostas para o reaproveitamento da ponte centenária, nomeadamente transformá-la em corredor ciclo-pedonal. No entanto, passaram já três décadas, e mantém-se a indefinição em relação ao seu futuro. Apesar de estar afastada a possibilidade da ponte colapsar – em 2009, a Refer procedeu a importantes obras de conservação –, não deixa de ser um enorme desperdício permitir que uma estrutura com esta importância e significado histórico continue, durante décadas, sem qualquer uso.

Ponte Maria Pia, entre a ponte do Infante e a de São João; foto de 2021 [Manuel de Sousa]

Gostou deste artigo? Leia, também, As primeiras pontes da "cidade das pontes" e Ponte Luís I: história de uma obra única.

Para saber mais:

  • BANDEIRA, P. & RAMALHO, P. (2015). Proposta de relocalização da ponte D. Maria Pia. Revista Passagens, pp. 52-59 [disponível online].
  • CARDOSO, A. (1994). A arquitectura do ferro no Porto Oitocentista. Porto 1865: Uma exposição. Lisboa: Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa, pp. 39-51.
  • CORDEIRO, J.M.L. (2005). A ponte de Seyrig. O Tripeiro, 7.ª série, ano 24, n.º 11 (nov.), pp. 291-294.
  • CORDEIRO, J.M.L. (2009). Ponte Maria Pia: Uma ponte de Eiffel... e de Seyrig. ocomboio.net [disponível online].
  • CORDEIRO, J.M.L. & VASCONCELOS, A. (2005). Ponte Maria Pia: A obra-prima de Seyrig. Porto: Ordem dos Engenheiros Região Norte [compre online].
  • GIL, J.M.A. (2003). Biografia breve da ponte Maria Pia. O Tripeiro, 7.ª série, ano 22, n.º 1 (jan.), pp. 4-5.

Comentários

  1. Excelente artigo! Informações muito interessantes sobre esta bela ponte.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ainda bem que gostou! Obrigado por continuar a acompanhar este blogue. Cumprimentos

      Eliminar
  2. Gosto muito deste blog e todas as semanas passo cá para ler as novidades de outros tempos. Sou da zona de Aveiro e resido há alguns anos na cidade de Gaia. Há uns tempos tornei-me sócio do Clube Desportivo do Torrão, que tem sede na Rua Cabo Simão, mesmo a montante da Ponte D. Luís, e sempre tive curiosidade em saber de onde vinha o nome do clube. Em conversa com os sócios mais velhos, aprendi que se tratava de um bairro de lata, junto ao Douro, na margem sul, ali entre os Polacos e Quebrantões. O bairro terá sido arrasado por uma cheia e nunca foi reconstruido, e nas buscas que realizei nunca consegui encontrar nenhuma informação sobre o antigo bairro, que sobrevive hoje através da colectividade. Sabe se haverá algum local ou alguma obra onde possam ser obtidas mais informações, gostaria de conseguir fazer um texto sobre este bairro, para entregar ao clube. Obrigado desde já e muitos parabéns pelo projecto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá! Obrigado por acompanhar este blogue. Sempre relacionei o Cabo Simão a algum episódio do Cerco do Porto -- a exemplo do General Torres --, mas é uma mera suposição minha. Infelizmente, não conheço bibliografia sobre o assunto. Tente contactar o Arquivo Municipal Sophia de Mello Breyner para ver se o podem ajudar. Cumprimentos.

      Eliminar

Enviar um comentário

Artigos mais populares:

Ponte Luís I: história de uma obra única

Santa Catarina: da rua Formosa ao Marquês

Santa Catarina: da Batalha à rua Formosa

A fascinante história da expansão da Boavista

Serra do Pilar: mosteiro, morro e aqueduto