As primeiras pontes da "cidade das pontes"

Abandonada a ideia de erguer uma colossal construção em pedra, a ponte das barcas foi a solução possível para uma ligação permanente entre as duas margens do Douro. A ponte pênsil que lhe sucedeu, recorrendo à tecnologia do ferro, nunca ofereceu garantias de segurança convincentes. Venha conhecer a história das primeiras pontes que ligaram Porto e Gaia. 

Manuel de Sousa

View of the city of Oporto, de Charles Van Zeller (des.) e Robert Havell (grav.); gravura de 1833 [Arquivo Municipal do Porto | Porto Oitocentista]

O Porto é conhecido como a cidade das pontes, por ter seis pontes que o ligam a Vila Nova de Gaia, sendo que uma delas até está, há trinta anos, sem qualquer utilização. Aliás, o Porto já tinha essa designação quando havia apenas três pontes!

É verdade que, em Portugal, não há outra cidade com tantas pontes (com a óbvia exclusão de Vila Nova de Gaia que, desde 1984, também é cidade). Mas, não sei se o(a) estimado(a) leitor(a) tem noção, mas em Londres, por exemplo, há 34 pontes a cruzarem o Tamisa; em Paris, há 37 pontes sobre o Sena e, em Roma, são 42 as ligações entre uma e outra margem do Tibre!

Para além disso, as pontes sobre o Douro são relativamente recentes. A primeira ponte permanente e suspensa sobre as águas do Douro (excluo, portanto, a ponte das barcas) só foi inaugurada em 1843, enquanto as pontes mais antigas de Londres, Paris e Roma datam de há, pelo menos, dois mil anos.

Em Portugal também há pontes antigas, nomeadamente com origens romanas, como as de Ponte de Lima e de Chaves, ou quinhentistas, como a ponte de Santa Clara, em Coimbra. Mas, então, que razões explicam uma chegada tão tardia das pontes à cidade das pontes?

Um rio muito particular

O rio Douro tem características que o tornam difícil de transpor por pontes, já que tem um leito profundo, corrente muito forte no inverno e cheias frequentes.

O encaixe abrupto do rio Douro deve-se, fundamentalmente, a dois fatores. Por um lado, ao facto de o rio correr na área de maior altitude média do Maciço Antigo, de elevada precipitação, o que faz dele o rio ibérico de maior caudal. Por outro lado, a descida geral do nível de base no final do Terciário conferiu-lhe grande capacidade erosiva. Assim se explicam as vertentes quase abruptas a tão pouca distância do mar. Os montes de Quebrantões (Serra do Pilar) e Arrábida, por exemplo, têm ambos cerca de setenta metros de altitude. Para além disso, o Douro possui um estuário estreito para o caudal que apresenta, pelo que, em períodos de cheias, o rio facilmente sobe mais de cinco metros do seu nível médio.

Desde tempos ancestrais que a passagem do Douro era feita por jangadas e barcas. Em 1339, o bispo do Porto recebia anualmente seis soldos e nove dinheiros pelas barcas pequenas que transpunham o rio e meio maravedi pelas grandes. Em 1390, os preços praticados nas barcas eram de um soldo por pessoa e de quatro soldos por pessoa com carga, besta ou outro animal. Em 1548, há relatos de abusos dos barqueiros que exageravam nos preços que, por vezes, chegaram a exigir a intervenção do rei para fixação de preços. A partir de 1744, estabelece-se a ligação regular entre as duas margens. O direito de assegurar a passagem entre Porto e Gaia era objeto de concessão, sempre muito disputada.

Nas escadas das padeiras; foto de 1939 [Nicolás Muller; Archivo Regional de Madrid | Porto Desaparecido]

Da enorme ponte de pedra à frágil ponte de barcas

Para tentar vencer o enorme vão do rio, o corregedor Francisco de Almada e Mendonça encomendou um projeto ao eng.º Carlos Amarante – homem nascido em Braga, com obra feita no Minho e Douro Litoral, estando sepultado na igreja da Trindade, no Porto – de uma ponte colossal, ligando a Porta do Sol (nas proximidades do mosteiro de Santa Clara) à Serra do Pilar. O projeto foi apresentado em 1802 e previa um tabuleiro de sete metros de largura, erguido 75 metros acima do rio, assente num arco circular de 130 metros de abertura. Numa e noutra margem, contaria com gigantescos pilares de pedra com vinte metros por catorze. Esta ponte exigiria um volume de pedras na casa dos cinquenta mil metros cúbicos. A obra  muito provavelmente, irrealizável  não avançou, mas a ideia de uma ponte à cota alta seria recuperada oitenta anos depois.

Projecto d'huma ponte para a cidade do Porto sobre o rio Douro, de hum só arco de 600 palmos de diametro, de Carlos Amarante; desenho de 1802 [BNP | Porto Desaparecido]

O mesmo Carlos Amarante acabou por ser o autor de uma outra ponte, bem mais fácil de erguer: a conhecida ponte das barcas. Inaugurada em 1806, esta não terá sido a primeira ponte de barcas a existir no Douro.

Os romanos construíram pontes de barcas em vários pontos do seu império, nomeadamente quando precisavam de fazer deslocar rapidamente os seus exércitos. Por aqui – na fronteira entre as províncias da Lusitânia (a sul do Douro) e da Galécia (a norte) – passava a estrada romana "Via XVI" que ligava Olissipo (Lisboa) a Bracara Augusta (Braga), pelo que não será de excluir a possibilidade de ter também existido aqui uma ponte de barcas.

Tropas romanas atravessando o Danúbio sobre uma ponte de barcas, pormenor da coluna de Marco Aurélio, em Roma; foto de 2008 [Matthias Kabel | Wikimedia Commons]

Mais tarde, há referências a outras pontes de barcas, nomeadamente uma, que teria sido erguida em 997, pelos exércitos de Almançor a caminho de Santiago de Compostela.

Em 1369, o rei D. Fernando mandou construir uma ponte de barcas para fazer passar as suas tropas num só dia para atacar Henrique II de Castela que cercava Guimarães. Diz Fernão Lopes que era tão larga que podiam caminhar seis homens a cavalo, lado a lado. Pouco depois, em 1372, D. Fernando atravessou esta ponte (ou outra idêntica) com o seu séquito para casar com D. Leonor Teles em Leça do Balio.

No entanto, ao contrário das anteriores, pretendia-se que a ponte de Carlos Amarante fosse permanente, embora pudesse ser desmontada nos períodos de cheias. Consistia num estrado de madeira com 120 metros de extensão, apoiado em vinte barcas ancoradas ao fundo e amarradas entre si por correntes.

A 29 de março de 1809, no dia em que as tropas francesas do marechal Soult irromperam pela cidade, deu-se a chamada Tragédia da Ponte das Barcas que já foi objeto de um artigo dedicado.

Ponte das barcas; desenho de 1835 [barão de Forrester; Wikimedia Commons| Porto Desaparecido

Após as invasões francesas, a ponte foi reconstruída e muito melhorada, sendo o número de barcas que sustentavam o tabuleiro sido aumentado, oscilando entre as 27 e as 33. Continuou a funcionar até 1843, estando ao serviço durante um total de 37 anos.

A tecnologia do ferro

Entretanto, os progressos científicos e a nova tecnologia do ferro abriram outras possibilidades de construções.

Em 1837, o Estado português assinou um contrato com a empresa Claranges Lucotte & Cie. para a construção de uma estrada ligando Lisboa ao Porto e que incluía a construção de uma ponte pênsil (ou seja, suspensa) sobre o rio Douro.

As obras iniciaram-se a 2 de maio de 1841, dia que marcava o 15.º aniversário do reinado de D. Maria II. O projeto da ponte era dos engenheiros Stanislas Bigot e Mellet, sendo a obra fiscalizada pelo engenheiro português José Vitorino Damásio.

Bilhete-postal da ponte suspensa de Tournon, França; s/d [As Pontes do Porto]

No entanto, a ideia inicial de Stanislas Bigot era projetar uma ponte idêntica à de Tournon, erguida por Marc Seguin sobre o Ródano, com dois vãos e um "grande arco triunfal no meio do rio". Seria erguida na praça da Ribeira, no seguimento da rua de São João, ligando à rua Direita (hoje de Cândido dos Reis), em Gaia. No entanto, Bigot rapidamente concluiu que o Douro não era o Ródano e tal era impraticável. Como se isso não bastasse, houve numerosos protestos de mercadores portuenses que não queriam que a nova ponte constituísse um obstáculo à navegação.

Tudo isto acabou por ditar que a ponte fosse construída mais a montante, num local onde o rio era mais estreito e um só vão era suficiente para o transpor. No entanto, o acesso à ponte a partir do Porto teve de ser feito pela lateral, através de uma rampa construída sobre um aterro de cerca de oitenta metros de extensão.

Porto. Vista da ponte pensil e de parte da cidade; gravura s/d [Porto Desaparecido]

Aberta a 17 de fevereiro de 1843, na iminência de uma grande cheia que provocou o levantamento súbito da ponte das barcas, a ponte pênsil – oficialmente chamada de D. Maria II – foi a primeira travessia permanente do rio Douro e a primeira ponte metálica em Portugal.

A estrutura da ponte era suportada por oito mil cabos metálicos, cada um formado por quatrocentos fios de 3,2 milímetros de diâmetro, revestidos por uma película de óleo de hulha. Os cabos de suspensão foram fabricados num estaleiro preparado para o efeito na praia de Miragaia, no local onde atualmente se ergue o edifício da Alfândega.

Ponte Pênsil; foto de c.1850 [Frederick William Flower | Porto Desaparecido]

Os cabos de suspensão da ponte eram suportados por quatro pilares de cantaria de dezoito metros de altura, dos quais ainda sobrevivem dois, na margem direita. Os cabos, quatro de cada lado, atravessavam os pilares em janelas situadas logo abaixo dos capitéis, apoiando-se em cilindros de ferro fundido. Ligavam-se em seguida às amarras, fortemente ancoradas em poços verticais cavados na rocha das escarpas das duas margens. O vão da ponte era de 155 metros, só ultrapassado, na época, por cinco pontes daquele tipo, localizadas noutros países da Europa.

O tabuleiro da ponte era de madeira, com seis metros de largura (quatro metros de via e dois passeios de um metro cada) e 170 metros de comprimento. Ficava a dez metros de altura do nível médio das águas do rio. Havia uma casa da guarda e uma casa da recebedoria, onde era feito o pagamento da portagem.

Na verdade, a transposição da ponte obrigava ao pagamento de portagem que, durante trinta anos, reverteu a favor da sociedade construtora. O valor das portagens era de cinco réis por pessoa, vinte réis (um vintém) por cavalo e duzentos réis (dois tostões) por carruagem. À noite as portagens duplicavam.

A persistente dúvida quanto à segurança da ponte

Antes da abertura da ponte pênsil, foram feitas experiências de carga. Uma delas consistiu em fazer rolar simultaneamente pelo pavimento 103 pipas cheias de água, colocando-se vigas e traves de madeira sobre o pavimento, com um total de carga de 7118 arrobas de peso (aproximadamente 107 toneladas).

Apesar de ter superado esta e outras provas que, segundo os técnico de então, ultrapassaram as exigências comuns noutros países da Europa para este género de estruturas, a verdade é que a segurança da ponte pênsil foi sempre questionada. O facto de ela oscilar frequentemente não contribuía para tranquilizar quem a utilizava.

Ponte D. Maria II, popularmente conhecida como ponte pênsil; foto de c.1880 [Emílio Biel; Bibliothèque nationale de France | Porto Desaparecido]

As dúvidas adensaram-se em 1850 e 1852 quando ruíram duas pontes idênticas localizadas em França, provocando mais de duzentos mortos. Imediatamente foi decidido proceder a uma cuidadosa verificação da segurança da ponte portuense. Em 1853, foram realizados testes com vista à avaliação da resistência da ponte que concluíram pela aptidão da estrutura. De qualquer forma, foi determinado que o diretor das Obras Públicas do distrito do Porto procedesse, todos os anos, a um minucioso exame do estado da ponte.

Alberto Pimentel, num dos seus livros, refere José da Rocha, um dos muitos portuenses que, apesar da existência da ponte, preferia atravessar sempre o Douro de barco. Dizia ele que era para poder examinar a ponte por baixo! O próprio Alberto Pimentel, nascido em 1849, recorda o medo que sentia, na sua meninice, ao passar a ponte, especialmente à noite, à luz trémula dos candeeiros a gás que, diga-se, só eram ligados quando não havia luar.

Em 1864, quando o comboio chegou às Devesas e enquanto não foi erguida a ponte Maria Pia e efetuada a ligação a Campanhã (1877), a ligação ao Porto era feita por diligências puxadas por cavalos que atravessavam a ponte pênsil. Também a nossa conhecida Lady Jackson, que visitou a Invicta em 1873, refere os solavancos que sentiu ao entrar na cidade através desta ponte periclitante.

A concessão da ponte à empresa construtora terminou em 1877, quando foram efetuados novos testes com resultados satisfatórios. Porém, as suspeitas continuavam, levando o ministro da Obras Públicas, António de Serpa Pimentel, a elaborar uma proposta de lei para a realização de um "concurso para a construção de uma ponte metálica sobre o rio Douro, no local que se julgar mais conveniente em frente da cidade do Porto, para substituir a atual ponte pênsil." Entre as razões invocadas aponta-se que "parte dos seus cabos de amarração estão contidos em cofres que não podem ser visitados, podendo dar-se o caso de que os fios de ferro tenham, nesses pontos, sofrido mais ou menos oxidação e perdido, portanto, parte da sua resistência."

Durante 44 anos, a ponte D. Maria II  popularmente conhecida como ponte pênsil  serviu as populações do Porto e de Gaia, funcionando, também, como porta de entrada na Invicta. Começou a ser demolida a 12 de outubro de 1887, após a inauguração da vizinha ponte Luís I.

Ponte pênsil, em primeiro plano, com a ponte Luís I em construção; foto de c.1885 [Arquivo Municipal do Porto | Porto Desaparecido]

Caro(a) leitor(a), por agora, fico por aqui. Continue a acompanhar-me nestas deambulações históricas pela Invicta e não só...

Gostou deste artigo? Leia, também, Ponte Maria Pia sobre o Douro e Ponte Luís I: história de uma obra única.

Para saber mais:

  • AZEREDO, M. (2000). Uma extraordinária obra da engenharia do seu tempo: A Ponte Pênsil do Porto. O Tripeiro, 7.ª série, ano 19, n.º 10 (out.), pp. 338-345.
  • CORDEIRO, J.M.L. (1994). A Ponte Pênsil (1843-1887) na perspectiva da Arqueologia Industrial. Gaya: Revista do Gabinete de História e Arqueologia de Vila Nova de Gaia, vol. 6, pp. 307-320.
  • CRUZ, A. (1943). Das barcas-de-passagem à Ponte Pênsil. Centenário da Ponte Pênsil: Exposição comemorativa. Porto: Câmara Municipal do Porto, Gabinete de Historia da Cidade, pp. 1-10.
  • FERNANDES, J.A.R. (2020). Geografia do Porto. Porto: Book Cover [compre online].
  • FIEL, J. (1983). A Ponte Pênsil na história dos atravessamentos do Douro. O Tripeiro, 7.ª série, ano 2, n.º 5 (jun., jul), pp. 142-147.
  • FONSECA, A.A. (2006) As pontes do Porto sobre o rio Douro, em Portugal. II Simpósio Ibero-Americano sobre Concreto Estrutural, pp. 1-23 [disponível online].
  • MARÇAL, H. (1986). As pontes sobre o rio Douro. O Tripeiro, 7.ª série, ano 5, n.º 11 e 12, pp. 345-355.
  • MATOS, A.C. (1965). Descrição das pontes do Porto: A Ponte Pênsil. Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, vol. 18, fascs. 3-4 (set./dez.), pp. 446-460.
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros [compre online].

Comentários

  1. Artigo muito interessante.

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  2. Muito interessante. Por momentos senti-me a viajar no tempo.
    Gosto muito destes artigos históricos.

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