Urbión e a história trágica de Numância

O Porto tem uma ligação umbilical ao rio Douro. No entanto, temos tendência a só dar importância ao Douro quando ele toca no território nacional. O que está do outro lado da raia é, de uma forma geral, por nós largamente ignorado. Hoje, vamos conhecer a nascente do Douro e a história da mítica resistência de Numância aos romanos. Venha daí numa viagem no tempo e, também, no espaço.

Manuel de Sousa

Caro(a) leitor(a), hoje vamos sair do Porto e viajar até terras de nuestros hermanos. Sim, eu sei que ainda estamos confinados e que as fronteiras continuam fechadas. Mas a verdade é que não há lockdowns capazes de restringir a nossa criatividade! De qualquer forma, vamos para outro país sem nos afastarmos do que nos é sentimentalmente próximo. Neste caso, o rio Douro.

Mesmo que inconscientemente, temos tendência a só dar importância ao Douro quando ele toca na nossa fronteira, ali na Terra de Miranda, ou quando entra completamente em território nacional, em Barca d'Alva. No entanto, quando aqui chega, o Douro já percorreu 572 quilómetros em território espanhol, ou seja quase dois terços da sua extensão total! E há coisas fantásticas que aconteceram e que acontecem do outro lado da raia e que, a maioria das vezes, nos passam completamente ao lado.

Vamos, por isso, acompanhar os primeiros passos do rio Douro e conhecer uma história trágica, sobre os limites da tenacidade de um povo. Por outras palavras, vamos testemunhar uma história numantina...

A nascente de um grande rio

Todos sabemos, mais ou menos, que o Douro nasce nos Picos de Urbión, a 2.160 metros de altitude, num local apropriadamente chamado Fuentes del Duero, na província de Sória, já nos confins da região espanhola de Castela e Leão.

Apesar do Douro, quando nasce, estar geograficamente mais próximo do golfo da Biscaia, para norte, e até do Mediterrâneo, para sudeste, o rio insiste em seguir em direção a oeste e, após 897 quilómetros de um percurso atribulado, atinge finalmente o oceano Atlântico, entre os municípios do Porto e de Vila Nova de Gaia.

O Douro é o terceiro rio mais extenso da Península Ibérica, atrás do Tejo e do Ebro. No entanto, é superior a estes no que à bacia hidrográfica diz respeito que, sendo a maior da península, abarca 98 mil quilómetros quadrados, uma área enorme, bem superior à superfície total de Portugal. Tal ajuda a explicar que o Douro seja, também, o rio peninsular de maior caudal absoluto, graças a uma densa rede de afluentes que trazem grandes quantidades de água da Cordilheira Cantábrica, do Sistema Ibérico e do Sistema Central. De entre os principais afluentes do Douro, temos o Pisuerga, o Esla e o Tâmega, a norte; e o Adaja, o Tormes e o Águeda, a sul.

Campanário da antiga igreja de La Muedra na albufeira de Cuerda del Pozo, 2017 [Franciscojhh | Wikimedia Commons]

Passada a nascente, o Douro, ainda incipiente, acolhe as águas de numerosos riachos que escorrem dos cumes da vertente meridional dos Picos de Urbión e da Laguna Negra, de origem glaciar, que  diz a lenda  não tem fundo... E, logo a seguir, temos a primeira de um sem-número de barragens, grandes construções humanas, erguidas apenas em seu benefício, barrando o curso ao rio. É a barragem de Cuerda del Pozo, onde é captada a água para o abastecimento domiciliário de Sória e Valhadolid, sendo também utilizada para a irrigação de campos agrícolas e para a produção de eletricidade. Construída na década de 1930, implicou o sacrifício da aldeia de La Muedra, facto que nos é recordado pelo campanário da sua antiga igreja que, surpreendentemente, irrompe das águas da albufeira.

A inexpugnável Numância

Abaixo da barragem, onde as águas do rio Tera se juntam às do Douro, num ponto alto, alçam-se as ruínas do que foi outrora uma grande cidade: Numância.

Há mais de dois mil anos, antes da chegada dos romanos, Numância era habitada pelos arévacos, uma tribo pertencente aos celtiberos, designação dada a uma série de povos ibéricos pré-romanos celtas ou celtizados.

Corria o ano de 153 a.C., quando os romanos fizeram a sua primeira aparição por estas terras. No entanto, Numância, aliada a outros povoados vizinhos, conseguiu repelir um exército romano de trinta mil homens, infligindo-lhes mais de seis mil baixas.

Nos anos seguintes, os exércitos de Roma foram ocupando outras partes da Península Ibérica, nomeadamente vencendo os lusitanos, assassinando o seu líder, Viriato, em 139 a.C. Porém, os recontros com os numantinos saldavam-se em sucessivas humilhações para os romanos. Até que, no ano de 134 a.C., o Senado Romano incumbiu Públio Cornélio Cipião Emiliano Africano – responsável pela derrota definitiva de Cartago, rival de Roma – da difícil missão de destruir Numância.

Encontrando um exército indisciplinado e desmoralizado, Cipião Emiliano começou por colocar pessoas da sua confiança em todas as posições de chefia. Expulsou dos acampamentos meretrizes, adivinhos e criados. Obrigou os soldados a duras marchas, sujeitando-os a um rigoroso e exigente treino militar. Quanto entendeu que o seu exército estava fisicamente preparado e moralmente motivado, dirigiu-o até às imediações de Numância, cidade exemplarmente fortificada e considerada inexpugnável.

Vista das ruínas de Numância, 2007 [Txo | Wikimedia Commons]

Evitando um confronto direto com os numantinos, o general romano mandou saquear todos os campos em redor da cidade, apropriando-se dos animais e produtos agrícolas e queimando tudo o resto, de forma a privar Numância de víveres.

Num perímetro em torno da cidade, começou a abrir fossos e erguer paliçadas e parapeitos para proteger os seus soldados que, metodicamente, foram levantando uma muralha de nove quilómetros de extensão, três metros de altura e dois metros e meio de largura, com torres a cada trinta metros. Para fechar o acesso à cidade através do rio Douro, os romanos ergueram uma torre em cada margem, ligadas por cabos, dos quais pendiam troncos cravados de setas que, dando voltas com a corrente do rio, tornavam impossível qualquer passagem de barco ou a nado. A enorme muralha de cerco era apoiada por doze elefantes e sessenta mil soldados, espalhados por sete fortes e dois grandes acampamentos (um a norte e outro a sul da cidade sitiada). Recorrendo a um sistema de sinais, as torres comunicavam entre si, permitindo a rápida deslocação de tropas para qualquer local que necessitasse de reforços.

Cerco de Numância, ilustração de 1854 [British Library | Wikimedia Commons]

Apiano, historiador da Roma Antiga, de etnia grega, na sua Historia romana, relata que, apesar da formidável máquina de guerra romana, houve um pequeno grupo de numantinos, chefiado por Retógenes que conseguiu chegar à cidade vizinha de Lutia, convencendo quatrocentos jovens a virem em socorro de Numância. Retógenes ainda conseguiu regressar a Numância, mas os quatrocentos guerreiros acabaram capturados pelos romanos. Cipião Emiliano imediatamente ordenou que, a todos, lhes fosse amputada a mão direita para que jamais ousassem levantar a espada contra Roma.

Decorridos onze meses de cerco e como a penúria e a fome pareciam estar prestes a ultrapassar a sua capacidade de resistência, os numantinos enviaram uma embaixada a Cipião Emiliano, composta por cinco elementos encabeçados pelo próprio líder da cidade, Ávaro, com o objetivo de negociar uma saída digna em troca da rendição. O general romano, sabedor da situação extrema em que os sitiados se encontravam, recusou qualquer acordo, exigindo a imediata deposição das armas e a rendição incondicional de Numância. Quando os emissários regressaram e comunicaram a resposta romana, os numantinos executaram Ávaro e os restantes elementos do grupo, acusando-os de terem colocado a sua segurança pessoal à frente dos interesses da cidade.

Com grande dramatismo, o historiador Apiano narra o desespero dos sitiados, comendo ratos, cozendo para comer as peles que vestiam e, depois disso, chegando ao canibalismo. Primeiro, foram os mortos que serviram de alimento aos vivos, mas depois os mais fortes começaram a caçar os mais fracos, alimentando-se deles. Conta mesmo histórias horripilantes de mães a devorarem os seus bebés...

Após quinze meses de assédio, vencida pela fome, a cidade de Numância soçobrou no verão de 133 a.C. Os próprios habitantes incendiaram a cidade para que não caísse nas mãos dos invasores, suicidando-se em massa. Quando os romanos entraram finalmente na cidade, já só encontraram escombros e pouco mais de um punhado de sobreviventes.

Depois de mandar arrasar todos os edifícios até às fundações, Cipião Emiliano regressou a Roma e aí celebrou o seu triunfo, desfilando pelas ruas com cinquenta numantinos capturados que, no final, foram publicamente executados. Cipião pôde, assim, acrescentar mais um apelido ao seu já longo nome: Numantino. Com a sua ação brutal, Cipião impôs o controlo absoluto sobre a Hispânia.

Numância vencida, mas nunca esquecida

Numância foi, finalmente, vencida. No entanto, os vencedores ficaram tão impressionados com a atitude dos vencidos que foram os próprios escritores romanos e gregos a louvar a sua resistência, transformando-a num mito. Para além da já referida Historia romana de Apiano, a guerra contra Numância é narrada na obra Ab Urbe condita de Tito Lívio, na Geographia de Estrabão, no segundo livro do Compêndio da história romana de Floro, e ainda em obras de Plínio, Salústio e Políbio.

Numancia, óleo sobre tela de Alejo Vera, 1881 [Museo del Prado | Wikimedia Commons]

Inspirado no famoso assédio com fim trágico, em 1585, Miguel de Cervantes escreveu a tragédia El cerco de Numancia, na qual uma figura alegórica representando o Douro profetiza a queda da cidade. Durante as invasões francesas, o mito numantino foi reavivado como discurso patriótico, estabelecendo-se um paralelismo entre a resistência celtibera aos romanos e a espanhola aos franceses. O pintor Alejo Vera pintou, em 1881, o quadro Numancia que faz parte da coleção do Museu do Prado, de Madrid. Esta luta deixou até uma marca na língua castelhana, concretamente no adjetivo numantino com o significado: "que resiste com tenacidade até ao limite, muitas vezes em condições precárias", segundo a Real Academia Espanhola.

Antes de terminar, convido-o(a) a ver um pequeno vídeo de dois minutos que conta a história do cerco de Numância:

E pronto, caro(a) leitor(a), ficamos a conhecer a história trágica da cidade de Numância. Separam-nos dela oitocentos e muitos quilómetros e mais de dois mil anos de história. Mas junta-nos o mesmo rio: Douro para os portugueses, Duero para os espanhóis, Durius para os romanos, Dur para os celtas. E foi desta última palavra  que significa água – que derivaram todos os outros nomes do rio.

Gostou deste artigo? Leia, também, De Sória a Zamora: A linha defensiva do Douro e As grandiosas paisagens do Douro internacional.

Para saber mais:

  • CORTÁZAR, F.G. (2009). Atlas de historia de España. Barcelona: Editorial Planeta.
  • MARTÍNEZ, A.J. (2002). Numancia: campamentos romanos y cerco de Escipión. Archivo Español de Arqueología, vol. 75, n.º 185-186, pp. 159-176 [disponível online].
  • MORILLO CERDÁN, A. & MORALES HERNÁNDEZ, F. (2015) Campamentos romanos de la guerra de Numancia: la circunvalación escipiónica. M. Bendala (ed.), Los escipiones: Roma conquista Hispania, Alcalá, pp. 275-298 [disponível online].
  • MARTÍNEZ, A.J. & TORRE ECHÁVARRI, J.I. (2005). Numancia, símbolo e historia. Madrid: Ediciones Akal.
  • SEBASTIANI, B.B. (2013). O aniquilamento de Cartago e Numância. Topoi, vol. 14, n.º 26, pp. 132-142 [disponível online].
  • SCHULTEN, A. (2004). Historia de Numancia. Pamplona: Urgoti Editores.

Comentários

  1. Muito interessante esta História. Obrigada por a publicar, pois é sempre de louvar dar conhecimentos dos actos de bravura, sacrifício e heroísmo dos antepassados.

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  2. Muito obrigado pela partilha de conhecimentos tão interessantes.

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  3. Muito obrigada pela partilha! Adorei

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  4. Muito obrigada pela partilha! Adorei

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  5. Muito obrigada pela partilha! Adorei

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