Companhia de cima e companhia de baixo

Após ter sido pioneiro na adoção do americano como veículo de transporte coletivo, o Porto viu criarem-se duas empresas concorrentes, até que uma absorveu a outra. Pelo caminho, ficaram ensaios de uso de locomotivas a vapor na via pública e fugazes rejuvenescimentos de antigos meios de transporte. No entanto, os ventos do progresso anunciavam já uma nova força motriz que tudo iria mudar: a eletricidade. Venha comigo em mais uma viagem pelos antigos meios de transporte do Porto.

Manuel de Sousa

A máquina, com locomotiva Henschel e três atrelados, aproxima-se da estação de Cadouços, na Foz do Douro, c.1900 [Aurélio da Paz dos Reis | Porto Desaparecido]

A Companhia Carril Americano do Porto

Como já vimos, em 1872, o Porto foi pioneiro em Portugal na criação de uma rede de carruagens puxadas por mulas e circulando sobre carris – os comummente chamados americanos. A cargo da Companhia Carril Americano do Porto, empresa detentora da concessão, foi criada uma linha entre o Infante e a Foz. Logo a seguir, abriu uma segunda linha, desta feita com partida no Carmo e que, entroncando com a primeira em Massarelos, terminava também na Foz. No ano seguinte, foi feito o prolongamento até Matosinhos.

Na verdade, o carro americano provou ser tão popular e lucrativo que rapidamente apareceram outros investidores a solicitarem novas concessões para a instalação de mais linhas férreas pela cidade.

A Companhia Carris de Ferro do Porto

Em 1874, surgiu a segunda empresa de transportes públicos da cidade a operar pelo sistema americano. Chamava-se Companhia Carris de Ferro do Porto e criou uma rede que se estendia até ao Bolhão, Aguardente (Marquês) e Campanhã. Mas a primeira linha criada foi também para a Foz, partindo da praça de Carlos Alberto, via Boavista, com prolongamento até Matosinhos.

Com o andar do tempo, as duas empresas concorrentes, a Companhia Carril Americano do Porto e a Companhia Carris de Ferro do Porto passaram a ser popularmente designadas por companhia de baixo, a primeira, já que explorava a linha junto ao rio, e companhia de cima, a segunda, porque as suas linhas seguiam pela zona alta da cidade. Uma curiosa particularidade diferenciadora entre as duas empresas concorrentes era o sinal dado para a partida dos americanos: enquanto a companhia de baixo usava o toque de uma corneta, a de cima usava um apito!

Carro americano na praça de D. Pedro (hoje da Liberdade), c.1895 [Aurélio da Paz dos Reis | Porto Desaparecido]

O facto de ambas as companhias de americanos privilegiarem a ligação a Matosinhos estava diretamente relacionado com o porto de Leixões que, dada a periculosidade da barra do Douro, se foi progressivamente afirmando como o porto do Porto para navios de grande calado. Lembremo-nos que a decisão de avançar com a construção do porto de Leixões foi tomada logo após o trágico naufrágio do vapor "Porto", ocorrido em 1852, mas, como em todas as grandes obras, a sua concretização foi um processo muito longo...

Hoje em dia temos dificuldade em compreender cabalmente a importância que Leixões tinha para a cidade e a região. Mas, num tempo de comunicações muito limitadas, sem aviões de carga nem de passageiros, sem camiões TIR nem autopullmans, com uma rede rodoviária deficientíssima e linhas de caminho de ferro ainda em construção, o porto de mar era, praticamente, a única ligação do Porto ao resto do mundo.

O primeiro "metro de superfície" de Portugal

Mas voltemos à primeira linha da Companhia Carris de Ferro do Porto. Partindo de Carlos Alberto, o percurso até à rotunda da Boavista era feito com os habituais americanos. Aí – onde hoje está a Casa da Música –, havia uma estação, onde os animais eram retirados e as carruagens atreladas a uma pequena locomotiva a vapor, devidamente carroçada para disfarçar o seu aspeto ferroviário, conhecida como a máquina. Partindo da Rotunda, a máquina descia a avenida da Boavista até à Fonte da Moura.

Bilhete-postal da Fonte da Moura, sendo visíveis os carris da máquina, à esquerda, c.1895 [Alberto Ferreira | Porto Desaparecido]

Na Fonte da Moura, a máquina infletia pela atual rua de Correia de Sá, cruzava, em viaduto, a rua de Serralves (no troço hoje designado por rua de Tânger) e seguia pelos campos da Ervilha até à rua da Cerca, descendo até à estação de Cadouços (no atual largo do Capitão Pinheiro Torres de Meireles), já na Foz do Douro. Aí, a máquina fazia uma paragem mais prolongada, para abastecimento de água à locomotiva. No edifício da estação funcionou também o Clube de Cadouços, com orquestra privada, de acesso restrito, bem como um popular restaurante. Retomando a sua marcha, a máquina prosseguia até ao castelo do Queijo pelas ruas do Túnel e de Gondarém, entrando em Matosinhos pela rua do Juncal de Baixo (a partir de 1890, chamada rua de Roberto Ivens).

Circulando sobre carris pela via pública, puxando três ou quatro carruagens, a máquina foi, na prática, aquilo que hoje podemos considerar o primeiro metro de superfície do país. Como curiosidade, refira-se que, nos finais do século XIX, para a longa ligação da Boavista a Matosinhos, a Companhia Carris de Ferro do Porto adquiriu seis locomotivas a vapor à Henschel. Esta empresa alemã passou por várias fusões e aquisições e acabou por ser adquirida pela canadiana Bombardier, precisamente a empresa à qual, volvido pouco mais de um século, a Metro do Porto compra a sua frota circulante de 102 veículos.

O carro Ripert

Não se pense, no entanto, que o sucesso do americano fez desaparecer repentinamente os anteriores meios de transporte. O velho char-à-bancs, por exemplo, não só não desapareceu, como foi melhorado e, durante várias décadas, opôs uma tenaz concorrência ao americano.

Ilustração do carro Ripert, c.1890 [portoarc.blogspot.com]

Recorrendo a um modelo desenvolvido pelo marselhês Antoine Ripert – conhecido, precisamente, como carro Ripert (de seu nome completo, em francês, Tram Omnibus Car Ripert) –, em julho de 1883, foi fundada no Porto a Empresa Portuense de Carros Ripert, com sede na rua de São Dinis. Na verdade, o carro Ripert era um char-à-bancs melhorado, um transporte urbano de passageiros de tração animal, sem assentos no tejadilho. O diretor da empresa era também francês, Henri Latourrette, estabelecido no Porto e detentor de uma oficina de carruagens, na Trindade. Ao contrário de outros veículos de tração animal, os carros Ripert recorriam exclusivamente aos possantes cavalos percherons, também de origem francesa.

As suas viagens começavam e terminavam na praça de Carlos Alberto, com partida em frente à Tabacaria Havanesa (no local onde agora está um prédio, erguido na década de 1960, onde funciona a barbearia Invicta). A empresa explorava várias linhas dentro da cidade e arredores, incluindo a linha para a Ponte da Pedra, passando por São Mamede de Infesta pela estrada Porto-Braga.

Uma questão de bitola

Os carros Ripert viram-se envolvidos num conflito com os americanos já que, para tornar as viagens mais agradáveis e rápidas, sempre que o percurso coincidia com o dos americanos, os cocheiros encaixavam os rodados das suas carruagens nos trilhos dos americanos, já que a bitola era a mesma.

Isto originou um conflito e a consequente reclamação à Câmara do Porto que respondeu que o que estava na via pública era para ser utilizado pelo público. Posto isso, a Carris resolveu alterar o sistema de rodas e de carris. Desta forma, os rodados dos carros Ripert deixaram de poder encaixar nos trilhos dos americanos. No entanto, a Empresa Portuense de Carros Ripert continuaria em atividade até 1910.

Entretanto, em 1893, a Companhia Carril Americano do Porto foi adquirida pela Companhia Carris de Ferro do Porto que solicita à Câmara a "substituição, na tração dos seus carros, da força animal pela elétrica", acrescentando que tal inovação já estava a ser utilizava em diversas cidades da Europa e da América "com o mais completo êxito e aplauso público". Após descrever os pormenores técnicos da estação central de Massarelos, que iria produzir a força motriz, o requerimento termina enumerando as vantagens do novo meio de transporte, entre as quais as de "suprimir por completo o gado que peja a via pública e de não deteriorar o pavimento das ruas".

Passe da Companhia Carris de Ferro do Porto, contendo a indicação de que também é válido para a linha da marginal, anteriormente pertencente à concorrente Companhia Carril Americano do Porto, 1896 [Porto Desaparecido]

O requerimento obteve deferimento e, a 12 de setembro de 1895, a linha entre a Arrábida e Massarelos foi eletrificada. Uma vez mais, o Porto foi pioneiro: esta foi a primeira linha a tração elétrica a entrar ao serviço na Península Ibérica!

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Para saber mais:

  • ABREU, A.B. (1981). A evolução da cidade do Porto e os sistemas dos transportes. Revista de História, vol. 4, pp. 193-201 [disponível online].
  • ALVES, J.F. (2000). Nos trilhos da cidade: Aspectos históricos dos transportes colectivos no Porto. Revista da Faculdade de Letras - História, série III, vol. 1, pp. 101-112 [disponível online].
  • AMORIM, D.P. (1964). A Companhia de Carris de Ferro do Porto (achegas para a história dos transportes colectivos). O Instituto: Jornal Científico e Literário, vol. 125, pp. 139-327.
  • BASTO, A.M. (1969). Da Companhia Carril Americano até ao STCP (1872-1946) O Tripeiro, 6.ª série, ano 9, número 1, janeiro, pp. 5-11.
  • FIEL, J. (1983). Um século da atribulada história dos transportes públicos do Porto. O Tripeiro, 7.ª série, ano 2, números 7 e 8, setembro e outubro, pp. 196-203.
  • MARTINS, F.P. (2007). O carro eléctrico na cidade do Porto. Porto: Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto [disponível online].
  • PACHECO, E.M.T. (1992). Os transportes colectivos rodoviários no Grande Porto. Revista da Faculdade de Letras - Geografia. I série, vol. 8, pp. 5-64 [disponível online]
  • SOUSA, M. (2017). Porto d'honra: Histórias, segredos e curiosidade da Invicta ao longo dos tempos. Lisboa: A Esfera dos Livros.

Comentários

  1. Obrigado pelo artigo, muito interessante. Tem ideia de qual a bitola utilizada na linha a vapor?

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    1. Obrigado. Respondendo à sua pergunta, a "máquina" usava a chamada bitola padrão: 1435 mm. Era também a bitola usada pelo "americano", pelos elétricos do Porto (em Lisboa é 1000 mm), pelo Metro do Porto e pelo elevador dos Guindais.

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    2. Muito obrigado pela informação adicional. Aproveito para acrescentar que apesar de inicialmente a bitola de Lisboa ter sido de 1m por questões concorrenciais foi alterada muito cedo para 900mm. Bitola que se mantém actualmente.

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    3. A bitola dos eléctricos em Lisboa é de 90 cms, apesar de originalmente ter sido de 1435 mmm e não de 1 mt.

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