Origens portuenses da bandeira nacional

É provável que o(a) leitor(a) tenha aprendido que a bandeira de Portugal é verde e vermelha, porque o verde simboliza a esperança e o vermelho o sangue derramado. No entanto, antes de 1910, o verde e o vermelho não faziam parte das cores tradicionalmente usadas nas bandeiras nacionais. Então, como surgiram estas cores na bandeira nacional? Vamos descobrir!

Manuel de Sousa

Bandeira nacional de Portugal, 2013 [fdecomite | Wikimedia Commons]

Tal como eu, é provável que o(a) prezado(a) leitor(a) tenha aprendido na escola que a bandeira de Portugal é verde e vermelha, porque o verde simboliza a esperança e o vermelho o sangue derramado pelos portugueses. Mas, a verdade é que, ao longo de toda a nossa história, os portugueses foram muitas vezes chamados a derramar o seu sangue em múltiplas batalhas e, como é evidente, sempre mantiveram intacta a esperança em dias melhores. No entanto, no tempo da monarquia constitucional, a bandeira era azul e branca e, antes ainda, tinha apenas fundo branco. Na verdade, até 1910, o verde e o vermelho não faziam parte das cores tradicionalmente usadas nas bandeiras nacionais. Então, se não foi à tradição, onde é que a bandeira nacional foi buscar as cores verde e vermelha?

Para entender isto, temos que recuar uns 150 anos.

Republicanismo e Mapa cor-de-rosa

Embora o republicanismo em Portugal fosse anterior, o Partido Republicano Português (PRP) só foi legalmente criado em 1876 e, dois anos depois, conseguiu eleger o seu primeiro deputado à Câmara dos Deputados (parlamento). Hoje em dia, o seu nome soa familiar a todos os portuenses. Chamava-se Rodrigues de Freitas e foi eleito precisamente pelo círculo do Porto.

Entretanto, através do chamado Mapa cor-de-rosa, Portugal expressou a pretensão de ocupar os territórios africanos localizados entre Angola e Moçambique. No entanto, como tal colidia com os projetos britânicos de expansão colonial, a 11 de janeiro de 1890, o Reino Unido exigiu que Portugal retirasse dos territórios em litígio, impondo um ultimato ao governo português. A pronta submissão lusa aos interesses do Reino Unido desencadeou uma indignação popular sem precedentes em Portugal. Tal descontentamento foi habilmente aproveitado pelo PRP que responsabilizou o regime monárquico e a casa reinante de Bragança pela humilhação a que haviam sujeitado o país.

O descontentamento nacional generalizado encontrou no Porto as condições económicas e sociais propícias para evoluir para uma insurreição armada que ocorreu logo no início do ano seguinte.

Eclosão da revolta do 31 de Janeiro

Na verdade, na madrugada de 31 de janeiro de 1891, tropas provenientes de diversos quartéis da cidade concentram-se no campo da Regeneração ou de Santo Ovídio (mais tarde, rebatizado como praça da República) e daí seguiram em direção à praça de D. Pedro (hoje, da Liberdade), descendo a rua do Almada. Apesar da revolta não contar com o apoio de oficiais de alta patente e nem sequer do próprio diretório do PRP, os revoltosos estavam confiantes no sucesso do movimento. 

Um dos revoltosos, Manuel Maria Coelho, então tenente, escreveu o que presenciou:

"Acenavam com lenços, davam palmas, numa grande expansão de alegria que punha nos corações um suavíssimo calor e nos lábios um sorriso de triunfo. Na rua, a multidão engrossava a cada momento e, quando as tropas revolucionárias dobravam a rua do Almada para entrar na praça de D. Pedro, era difícil romper por entre a massa compacta que se aglomerava."

Eram seis horas da manhã, quando as tropas formaram na praça de D. Pedro e os revoltosos irromperam pelo edifício da Câmara Municipal. Pouco depois, da varanda da Câmara, Alves da Veiga – advogado, político e líder do movimento – proclamava a república e, quando ia a ler os nomes das pessoas que constituíam o governo provisório, o ator Miguel Verdial (cujo bisneto, de seu nome Sérgio Godinho, viria a ser um conhecido cantor e compositor) arrancou-lhe o papel das mãos e procedeu ele à leitura! Talvez por entender ter melhor projeção de voz, num tempo sem altifalantes...

Bandeira verde-rubra

– E o que é que tudo isto tem a ver com a bandeira nacional? – pergunta o(a) leitor(a), já ligeiramente impaciente.

Pois bem, quando a república foi proclamada da varanda da Câmara do Porto, foi arriada a bandeira monárquica, como seria de esperar. No entanto, não havia propriamente uma bandeira republicana para a substituir. Então, decide-se içar a bandeira do recém-criado Centro Democrático Federal 15 de Novembro.

Reprodução da bandeira do Centro Democrático Federal 15 de Novembro, 1891 [portoarc.blogspot.com | Porto Desaparecido]

Presidido por Alves da Veiga, o Centro Democrático Federal 15 de Novembro era um dos vários grupos republicanos existentes na cidade. Identificava-se como "federal" porque advogava uma política descentralizadora, regionalista e municipalista – ideias que sempre foram acarinhadas no Porto. A data era uma homenagem à implantação da república no Brasil, ocorrida precisamente a 15 de novembro de 1889. A sua bandeira tinha um fundo vermelho, com um círculo verde no centro, dentro do qual se encontrava a inscrição "15 DE NOVEMBRO" a vermelho. Por cima, em semicírculo, a inscrição "CENTRO DEMOCRATICO FEDERAL", a verde. O vermelho era a cor habitualmente associada às revoluções democráticas e populares e o verde ao positivismo, matriz cultural dos republicanos.

O(A) leitor(a), sempre curioso(a), deve estar agora a pensar onde ficaria esse tal Centro Democrático Federal 15 de Novembro. Pois bem, ficava nos Poveiros (que, na época, tinha a designação de largo de Santo André), no n.º 68, naquele que hoje é, talvez, o edifício mais degradado e negligenciado da praça. Já teve uma placa na fachada que dizia: "Casa onde foi fundado o Centro Democrático Federal 15 de Novembro, cuja bandeira foi hasteada no edifício da Câmara Municipal do Porto na Revolução do 31 de Janeiro de 1891". Esta placa, entretanto, desapareceu e agora apenas sobrevive uma outra, colocada em 2010, aquando do centenário da implantação da república.

Antiga sede do Centro Democrático Federal 15 de Novembro (edifício do meio), 2021 [Manuel de Sousa]

O fim do 31 de Janeiro

Com a república já proclamada e a bandeira verde e vermelha a flutuar sobre a Câmara, era necessário telegrafar para todo o país, dando conta do que acabara de acontecer no Porto. Como o edifício dos correios e telégrafos ficava no, chamado, palacete dos Guedes, na praça da Batalha (hoje o hotel NH Collection Porto Batalha), as forças sublevadas e muitos populares decidiram subir a rua de Santo António.

Como hoje sabemos, os revoltosos nunca chegariam à praça da Batalha. Foram escorraçados a tiro de carabina pela guarda municipal, posicionada no topo da rua de Santo António. No meio do pânico que se seguiu, alguns tentaram resistir no local, enquanto outros correram rua abaixo, refugiando-se na Câmara. Mas, pouco depois, era o próprio edifício municipal que começava a ser fustigado pelos disparos de duas peças de artilharia, entretanto trazidas da Serra do Pilar pelo tabuleiro superior da recém-construída ponte Luís I.

Assim, pelas duas da tarde, a revolta já havia sido completamente sufocada e a bandeira verde-rubra arriada.

Guarda Municipal põe fim à intentona republicana do 31 de Janeiro [Biblioteca Nacional Digital | Porto Desaparecido]

Os revoltosos foram presos e julgados, os militares envolvidos destituídos, os jornais republicanos encerrados. Na tentativa de controlar os danos, o próprio PRP apressou-se a negar qualquer envolvimento no golpe. E tudo terminou!

Terminou mesmo? Não.

A implantação da república e o legado do 31 de Janeiro

Quase duas décadas mais tarde, os portuenses foram informados por telégrafo de que em Lisboa se implantara a república. E, quando se levantou a polémica sobre que bandeira nacional adotar, acabou por prevalecer a tese das cores verde e vermelha, porque tinha sido justamente sob uma bandeira com estas cores que os revoltosos do Porto tinham combatido e morrido. E, já agora, o mesmo se passou com o hino. A Portuguesa, a marcha patriótica ao som de cujos acordes os revoltosos de 1891 avançaram, consagrou-se, também, em 1910, como hino nacional.

A segunda proclamação da república no Porto, a 6 de outubro de 1910 [Illustração Portugueza, 2.ª série, n.º 245; hemerotecadigital.cm-lisboa.pt | Porto Desaparecido]

Não foi propriamente a bandeira içada no Porto no 31 de Janeiro que foi promovida a bandeira nacional. Mas foram as suas cores – o verde e o vermelho – que se tornaram as cores republicanas por excelência, adotadas pela Carbonária e pelo próprio PRP, e que, em 1910, foram aplicadas na nova bandeira nacional.

No entanto, talvez para contrabalançar as cores revolucionárias da nova bandeira, em 1910 foi também decidido manter as armas nacionais tradicionais (apenas expurgadas da coroa real), assentes agora numa esfera armilar, usada inicialmente por D. Manuel I, simbolizando os descobrimentos. Tal compromisso entre inovação e tradição permitiu que a bandeira nacional passasse incólume às sucessivas mudanças de regime do século XX: da I República para o Estado Novo e deste para o regime democrático pós-25 de Abril.

Quanto à rua de Santo António, como é sabido, adotou o nome de 31 de Janeiro após a implantação da república.

– Uma última pergunta... – interrompe o(a) leitor(a) – Que é feito da bandeira que foi içada na Câmara a 31 de Janeiro, ainda existe?

Por incrível que possa parecer, a bandeira do Centro Democrático Federal 15 de Novembro sobreviveu a todas as vicissitudes. Pelo papel simbólico que desempenhou na revolta falhada de 31 de Janeiro, este estandarte foi condecorado em 1920, pelo então presidente da República António José de Almeida. Atualmente, conserva-se nas reservas do Museu Nacional Soares dos Reis.

Para saber mais:

  • AA.VV. (1891). Occidente: Revista illustrada de Portugal e do extrangeiro. 11 fev., vol. XIV, n.º 437 [disponível online].
  • CHAGAS, J. & COELHO, M.M. (1901). Historia da revolta do Porto de 31 de janeiro de 1891: Depoimento de dois cumplices. Lisboa: Empreza Democratica de Portugal Editora [disponível online].
  • CRUZ, M.A. (2010). O golpe de 31 de janeiro de 1891: Uma ousadia breve? Revista da Faculdade de Letras - História. Porto, III Série, vol. 11, pp. 11-31 [disponível online].
  • SEIXAS, M.M. (2019). Quinas e castelos: Sinais de Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
  • SOUSA, F. (2001). A revolta de 31 de janeiro de 1891. Ramos, L., Ribeiro, J. & Polónia, A. (coord.) Estudos de homenagem a João Francisco Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto [disponível online]. 
  • SOUSA, M. (1990). Ultimatum revisitado. O Primeiro de Janeiro. 07 jan., p. 4 [disponível online].
  • TEIXEIRA, N.S. (2015). Heróis do mar: História dos símbolos nacionais. Lisboa: A Esfera dos Livros.
  • TORRES, E.C. (2010). A utopia descendo a rua do Almada: A multidão do 31 de Janeiro de 1891. Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP, vol. XX, pp. 467-493 [disponível online].

Comentários

  1. Faz sentido. E a separação em metades vermelha é verde há explicação plausível?

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    1. O facto de a bandeira nacional ser bipartida verticalmente em verde e vermelho terá a ver com a bandeira entretanto adotada pela Carbonária. Mas, nesta, era o vermelho que ficava do lado da tralha (i.e., do mastro), ao contrário do que acontece na bandeira nacional.

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  2. Adorei o texto, desconhecia totalmente esta realidade.
    Obrigado, fiquei mais rico e orgulhoso de ser português.

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  3. Falar e escutar o meu País, estar atento à constante mutação da sociedade, tão diversa e rica. É o meu desígnio.

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  4. Mais uma vez , a minha ignorância, da um ar da sua graça e eu fico mais “rico” culturalmente por saber estes históricos factos.
    Uma das coisas que me chamou bastante a atenção, foi o reafirmar, de um sentimento, que sempre tive, como portuense. A descentralização desejada, já naqueles tempos.

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    1. É verdade o que diz em relação a um certo espírito de contestação ao poder central.

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  5. Obrigado ,por estas informações,sou um adepto da história de Portugal,mas ignorava totalemente este promenor.

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    1. Obrigado por acompanhar este blogue. Cumprimentos

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    2. Embora conheça bem esta história contada por si e pelo outro professor que tivemos, antes, é sempre muito bom reforçar, relembrar a nossa história. Muito obrigada . U
      m abraço, prof Manuel. Continue. Estamos à sua espera!

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