A estância balnear da Foz do Douro

Foz é um topónimo que nos habituamos a associar a prestígio social, sofisticação e preços elevados. Na verdade, esta é a área habitacional mais cara da região, onde vivem muitos ricos e famosos. No entanto, para compreendermos a realidade presente temos de recuar quase dois séculos, quando a moda dos banhos de mar se começou a popularizar e a Foz do Douro se afirmou como a principal estância de vilegiatura do Porto.

Manuel de Sousa

Estou certo de que, para o(a) amigo(a) leitor(a), 31 de agosto marca o fim da época balnear. Na verdade, logo no início de setembro, os tribunais reabrem, ao cabo de mês e meio de férias judiciais; as grandes cadeias comerciais lançam as suas campanhas de regresso às aulas; e os políticos anunciam a rentrée, pretendendo colocar um ponto final (ou, talvez, nem tanto...) na silly season, o período em que o espaço mediático é preenchido com frivolidades.

Entrado o mês de setembro, não importa se o tempo está convidativo. Para a esmagadoríssima maioria das pessoas, por esta altura, o guarda-sol, o para-vento, as toalhas, as colheres de praia e o baldinho estão já bem guardados e só voltarão a ver a luz do dia no verão seguinte.

No entanto, nem sempre foi assim. Na segunda metade do século XIX, muita gente só ia à praia depois das vindimas, ou seja, em setembro, outubro e, até, novembro...

Praia do Ourigo. As longas sobras denunciam que a fotografia foi tirada de manhã muito cedo; bilhete-postal de c.1900 [Emílio Biel | Porto Desaparecido].

A 21 de novembro de 1862, Ramalho Ortigão (1836-1915) escrevia:

"Graças a Deus, os últimos banhistas regressam à cidade que suspirava por eles. As meninas vêm nutridas, acrescentadas de boa cor e notavelmente satisfeitas, o que denota por certo mais saúde, mas produz também muito menos interesse poético do que a melancólica palidez com que nos deixaram".

Escrevendo sobre a população balnear da Foz do Douro da década de 1860, Alberto Pimentel (1849-1925) referia que, "a gente do Porto, famílias ricas, empregados públicos, etc.", começando em agosto, ficava até ao início de outubro. Mas, "a gente de Cima-do-Douro, lavradores ricos, proprietários, pessoas abastadas, sem exclusão de gente menor, os feitores, os caseiros, os remediados e até os pobres", por regra, chegava "só depois das colheitas".

A moda dos banhos de mar

A praia como local de lazer foi uma das primeiras manifestações do turismo. Scarborough é considerada a primeira estância de veraneio. Na década de 1720, esta cidade inglesa do Mar do Norte, começou a ser procurada pela aristocracia de Yorkshire que, para além das termas, começou a dar preferência aos locais à beira-mar, por motivos de saúde e lazer.

Alguns anos mais tarde, Brighton, a sul de Londres, passou a ser a estância balnear de referência. Muito devido à rápida ligação ferroviária à capital britânica e ao próprio patrocínio do rei Jorge IV (1762-1830) – que por lá passava largas temporadas –, a ida a banhos foi-se popularizando, acompanhada da abertura dos primeiros hotéis.

Do Reino Unido, a moda estendeu-se à Europa continental. As águas tépidas do Mediterrâneo, nomeadamente as da chamada Riviera Francesa, começaram por atrair a alta-roda inglesa, logo seguida das casas reais e da grande aristocracia europeias. E, atrás destas, vieram as massas populares.

São João da Foz do Douro

Como já vimos, durante séculos, a Foz do Douro foi um couto, na dependência do mosteiro beneditino de Santo Tirso, confinando com o concelho de Bouças (Matosinhos), a norte, e com o do Porto, a nascente.

Com a extinção das ordens religiosas em 1834, foi criado o concelho de São João da Foz do Douro, com freguesia única, já que São Miguel de Nevogilde foi inicialmente integrada no município de Bouças (sendo transferida, em 1895, para o do Porto). Os paços do concelho da Foz do Douro funcionaram no largo fronteiro à capela de Santa Anastácia.

No entanto, a autonomia concelhia foi de curta duração. Dezoito meses passados, o concelho da Foz seria anexado ao do Porto. No entanto, até hoje, o brasão da Foz continua encimado por uma coroa mural com quatro torres – equiparando-a a vila – e não três, como acontece nas restantes freguesias da cidade do Porto. Desde 2013, a Foz está integrada na União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde, mas, até onde julgo saber, as uniões de freguesias não possuem símbolos heráldicos próprios.

Brasão da Foz do Douro, encimado por coroa mural com quatro torres; desenho de 2005 [Sérgio Horta | Wikimedia Commons].

A praia do Porto

É conhecida a secular preponderância da comunidade britânica na vida da cidade do Porto, mormente devido ao comércio do vinho. Tal como noutras paragens, também aqui foram eles os primeiros a aderir ao hábito dos banhos.

No Porto, as praias mais próximas sempre foram as da Foz do Douro. A, até aí, pacata povoação de pescadores, ganhou importância acrescida a partir de meados do século XIX, quando ir a banhos passou a ser moda, também entre nós.

Esplanada do Castelo, vendo-se (à direita) o hotel Boa-Vista que continua em funcionamento; bilhete-postal de c.1900 [Emílio Biel | Porto Desaparecido].

Do centro do Porto, viajava-se para a Foz de carroça ou de burro. 

Em 1840, estabeleceu-se o primeiro serviço de transporte urbano de passageiros, com caráter regular, de que há notícia. Precisamente para a Foz. O veículo utilizado era um carroção, puxado por uma junta de bois e com bancos laterais, podendo acomodar entre oito a dez pessoas. A viagem era, no entanto, demorada – duas horas para lá e outras duas para cá – extraordinariamente desconfortável.

Por essa razão, muitos optavam pelo aluguer de burros ou mulas, autênticos todo-o-terreno, com tração às quatro patas! Na sua obra As praias de Portugal: Guia do banhista e do viajante, de 1876, Ramalho Ortigão, refere duas rent-a-donkey, a "Maricas do Laranjal" e, na Foz do Douro, a "Rosa das Burras, cujo nome provinha do seu estabelecimento em que se alugavam as mulinhas".

Em 1870, o barão de Trovisqueira conseguiu autorização para "estabelecer à sua custa, na estrada pública entre o Porto e a povoação da Foz, um caminho de ferro para transporte de passageiros e mercadorias, servido por cavalos". Era o americano, que entraria ao serviço dois anos depois. Fazia a viagem do Infante à Foz em apenas 25 minutos, seguindo pela marginal do rio, rasgada em 1865. Foi uma autêntica revolução em rapidez e conforto! Pouco depois, criou-se uma nova ligação à Foz, entre a praça de Carlos Alberto e o largo de Cadouços, via rotunda da Boavista. Esta recorria, para além do americano, também à máquina, veículo a vapor que circulava pela via pública.

A máquina a circular na rua de Gondarém, vendo-se ao fundo (à esquerda do veículo), o farol da Senhora da Luz; foto de c.1900 [Aurélio da Paz dos Reis; CPF | Porto Desaparecido].

Na verdade, a atração pela praia vai ser responsável pela criação de novas vias de acesso e pelo desenvolvimento dos transportes públicos para a zona ocidental da cidade do Porto. Isso veio permitir que muitos portuenses se pudessem deslocar diariamente até à Foz para tomar banho, retornando ao final da manhã.

Mas, rapidamente, membros da comunidade britânica e algumas famílias mais abastadas do burgo começaram a construir casas de férias na Foz. Alberto Pimentel diz-nos que os Pestanas foram a primeira família portuense a habitar permanentemente na Foz.

E a Foz cresceu. Em 1840, havia apenas duas hospedarias, um café e um clube. Quarenta anos depois, eram  sete os hotéis disponíveis, para além de três teatros, cinco cafés, dois restaurantes e 35 banheiros responsáveis por aplicarem os banhos.

O dia do banhista

Pelos relatos de Ramalho Ortigão e de Alberto Pimentel, podemos reconstituir como seria um dia de praia nos finais do século XIX. O dia era, quase ritualmente, compartimentado em três períodos fundamentais: o do banho, o do passeio e o dos contactos sociais.

O banheiro na praia do Ourigo; foto de c.1910 [Arquivo Municipal de Lisboa | Porto Desaparecido].

O banhista punha-se de pé muito cedo, ao romper da aurora. Com a família, ia em cortejo até à praia. Era o período do banho. Recorria a uma barraca – normalmente de lona branca – para proceder à muda de roupa: "vestido de cauda para as senhoras, camisolas e calças para os homens". Nos braços experimentados do banheiro, o banhista era mergulhado nas águas frias do Atlântico uma, duas ou três vezes, conforme a vontade e a coragem de cada um. Em alternativa, havia o banho de choque: dois banheiros transportavam o banhista numa cadeirinha e, de forma concertada, mergulhavam-no sem este esperar, devolvendo-o rapidamente ao areal. Os menos afoitos, no entanto, ficavam-se pela gamela que lhes era despejada pela cabeça.

Pelas 10 horas da amanhã, completava-se o episódio do banho. Seguia-se, a primeira refeição do dia: o almoço (a que nós hoje chamamos pequeno-almoço). Café com leite e pão com manteiga fresca. Depois era apanhar sol, deitados sobre mantas estendidas no areal ou sentados em pequenas cadeiras. Com toda a família aí reunida – avós, pais, filhos, tios, primos –, conversava-se, observava-se os outros banhistas e ouvia-se tocar o ceguinho, enquanto jovens galãs faziam olhinhos a donzelas casadoiras. E assim passava a manhã.

Veraneantes na praia do Ourigo; foto de c.1900 [Aurélio da Paz dos Reis; CPF | Porto Desaparecido].

Regressava-se a casa para o jantar (o almoço de hoje). De tarde, cumpriam-se as tarefas do lar e dormia-se a sesta.

Mais para o fim da tarde, iniciava-se o período do passeio, em que se sai para observar os pescadores a comporem as redes, contemplar o pôr do sol ou deambular pelo Passeio Alegre (ajardinado em 1888), para ver e ser visto. Atentemos nas palavras de Ramalho Ortigão:

"Ao fim da tarde passeia-se, aos encontrões, no Passeio Alegre. Nas tardes dos sábados sai à rua menos gente que nos outros dias. Aos domingos sai toda a gente. Às segundas-feiras não sai ninguém. Qual a razão deste fenómeno? Ninguém o sabe."

Às vezes, recorrendo ao aluguer de jericos, empreendiam-se excursões até Leça, até um pinhal próximo para um piquenique ou até ao hipódromo de Matosinhos (no areal do Prado) para assistir às corridas de cavalos. Outros, especialmente os membros da comunidade britânica, dedicavam-se às atividades físicas. O foot-ball ou o lawn-tennis eram alguns dos desportos praticados. Outras vezes, a tarde era ocupada com reuniões na assembleia, no clube ou nos cafés para conversar, jogar bilhar ou às cartas, ouvir declamar ou tocar piano.

Chalé Suíço ou do Carneiro, no jardim do Passeio Alegre; foto de c.1910 [Porto Desaparecido].

Depois da ceia (a que hoje chamamos jantar) era o período dos contactos sociais, por excelência. As noites eram preenchidas com soirées musicais, poéticas ou dançantes e o jogo. A roleta era a grande febre de época dos banhos. Apesar de proibido, todos os cafés e clubes tinham entradas misteriosas para salas de jogo repletas de fumo.

Decorriam assim os dias nesta Foz dos finais de Oitocentos, numa fase em que os banhos de mar deixaram de ter finalidade apenas terapêutica e a componente social foi ganhando importância crescente.

A Foz do Douro, hoje

A Foz foi crescendo e estendendo-se para norte, ao longo da antiga estrada de Carreiros (hoje as avenidas do Brasil e de Montevideu) ligando a Matosinhos – a chamada Foz Nova que se prolonga por Nevogilde.

Avenida do Brasil; bilhete-postal de c.1940 [Ed. JO. | Porto Desaparecido].

Ao longo do século XX, o urbanismo crescente foi integrando completamente a Foz na malha urbana da cidade do Porto. No entanto, a sedução que aquela pequena parcela de território – junto ao rio e ao mar – exerce sobre o Grande Porto (e não só) mantém-se. Não é por acaso que os ricos e famosos cá do burgo, quase sem exceção, habitam na Foz. E isso reflete-se nos preços do imobiliário: o metro quadrado em Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde anda pelos 3.737€ (fonte), o que representa 50% mais do que em Campanhã.

Parte do fascínio que hoje as pessoas têm pela Foz pode ser explicado pela proximidade do mar. Mas isso não é tudo. Nem é, sequer, o principal. Na verdade, o grande motivo de atração tem a ver com o prestígio social do lugar que se for acumulando em dois séculos de evolução histórica. Como vê, caríssimo(a) leitor(a), também aqui, o conhecimento da história é uma ferramenta fundamental para decifrarmos a realidade presente.

Gostou deste artigo? Leia também: A Foz de D. Miguel da Silva.

Para saber mais:

  • FERNANDES, J.A.R. (1987). A Foz. Revista da Faculdade de Letras - Geografia, I série, vol. 3, pp. 13-56 [disponível online].
  • MARTINS, L.P.S. (1989). Banhistas de mar no século XIX: Um olhar sobre uma época. Revista da Faculdade de Letras - Geografia, I série, vol. 5, pp. 45-59 [disponível online].
  • MOURA, N.A.M.C. (2009). A Foz do Douro: Evolução urbana. Porto: FLUP [disponível online].
  • ORTIGÃO, R. [1876]. As praias de Portugal: Guia do banhista e do viajante. Corroios: Plátano Editora [compre online].
  • PIMENTEL, A. [1893] (2011). O Porto há trinta anos. 2.ª ed. Introd. Gonçalo de Vasconcelos e Sousa. Porto, Universidade Católica.
  • QUEIRÓS, E. & ORTIGÃO, R. (2003). As farpas. 4.ª ed. Coord. Maria Filomena Mónica. Parede: Princípia Editora [compre online].

Comentários

  1. Obrigada. Gostei imenso deste artigo.

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  2. Nasci na Foz, na Cantareira, e foi com muito interesse que li este artigo sobre o local do meu nascimento. Muito interessante!

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  3. Muito interessante. A Foz está ligada à minha infância, precisamente a "ida aos banhos".

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  4. Texto muito interessante e pormonorizado sobre o que seria o lugar nessa época. Ficamos com uma ideia muito concreta do que era a Foz. Parabéns.

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  5. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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