A Foz de D. Miguel da Silva

Muito antes de se afirmar como estância de veraneio, a Foz do Douro viveu um período áureo, graças à ação do primeiro mecenas de tipo renascentista em Portugal. Chamava-se D. Miguel da Silva e era bispo de Viseu. "Mas o que é que o bispo de Viseu tem a ver com o Porto?" – Pergunta o(a) leitor(a). Nada – direi eu. Mas não estamos a falar do Porto, mas sim da Foz do Douro que, à época, pertencia a Santo Tirso. "Santo Tirso!?"  Interroga o(a) leitor(a) com redobrado espanto. Sim. Bem, continue a ler que já vai entender tudo…

Manuel de Sousa

Todos reconhecem que a Foz do Douro, a zona mais ocidental do Porto, preserva uma certa personalidade própria dentro da cidade. Em 1984, Helder Pacheco escreveu que a Foz, "apesar de pertencer à cidade desde 1836, continua a ser uma localidade estranha aos costumes e à paisagem que os tripeiros consideram como Porto". E o sentimento parece ser recíproco, já que "os naturais da Foz, os mais velhos, sempre dizem – quando se deslocam ao centro – vou ao Porto".

Fortaleza de São João Batista da Foz do Douro, sendo bem visível a cúpula da capela-mor da igreja renascentista pré-existente; foto de c.1900 [Foto Guedes; Arquivo Histórico Municipal | Porto Desaparecido].

Na verdade, a Foz teve uma evolução própria, separada da do Porto, logo desde D. Afonso Henriques. O primeiro rei, em 1145, doou a ermida de São João da Foz ao prior de Riba Paiva e, em 1176, fez nova doação, desta feita ao mosteiro beneditino de Santo Tirso, a qual foi confirmada por D. Mafalda, filha de D. Sancho II, no século seguinte. D. Afonso IV, em 1336, reafirmou a jurisdição do mosteiro de Santo Tirso sobre o couto de São João da Foz. Dentro do couto, Nevogilde afirmou-se como um pequeno povoado de vocação eminentemente rural, enquanto São João da Foz prosperou, voltada para o rio e para o mar.

O couto da Foz foi-se desenvolvendo e ampliando a sua dimensão ao longo dos séculos XIV e XV, ao sabor das lutas entre os abades do mosteiro de Santo Tirso e as administrações de Bouças (Matosinhos) e do Porto. Em 1527, o numeramento ordenado por D. João III revelou a existência de 286 fogos em São João da Foz e 12 em Nevogilde.

Há quinhentos anos, muito antes de se afirmar como estância de veraneio, a Foz do Douro viveu um período áureo, graças à ação do primeiro mecenas de tipo renascentista em Portugal: D. Miguel da Silva. Nobre, formado em Paris, embaixador em Roma, bispo de Viseu e cardeal da Igreja Católica, D. Miguel da Silva pretendeu monumentalizar a Foz do Douro como local emblemático e de auxílio à navegação.

Mas quem foi D. Miguel da Silva?

Nasceu em Évora, em 1480, filho do primeiro conde de Portalegre, figura proeminente da corte de D. Manuel I. Demonstrando dotes intelectuais notáveis e aptidão para a carreira eclesiástica, foi agraciado pelo rei com uma bolsa que lhe permitiu estudar Humanidades e Teologia na Sorbonne, em Paris.

Presumível retrato de D. Miguel da Silva, na pintura Cristo na casa de Marta (1535-40), de Vasco Fernandes; foto de 2020 [Gaspar Vaz | Wikimedia Commons].

Depois de catorze anos em França, D. Miguel da Silva foi nomeado por D. Manuel I embaixador em Roma, onde ficou onze anos. Personagem ilustrado, reconhecido pela sua argúcia e diplomacia, D. Miguel era visita frequente das casas dos Farnésio, dos Tolomei e dos Médici, era amigo de artistas como Rafael e Ticiano, tinha acesso privilegiado à Cúria Romana e usufruía de uma vida de luxo.

No entanto, a sua sorte mudou radicalmente depois da morte de D. Manuel I. O embaixador não caiu nas boas graças do jovem rei D. João III que, em 1525, ordenou o seu regresso imediato a Lisboa. Recebido com frieza na corte, D. João III nomeou-o abade comendatário do mosteiro beneditino de Santo Tirso. Talvez com o intuito de fortalecer a posição de D. Miguel da Silva, o papa Clemente VII fez dele bispo de Viseu, em 1526.

Regressado de Roma e de uma vida repleta de contactos no mundo da cultura humanista, D. Miguel da Silva trouxe consigo uma valiosa biblioteca, uma coleção de antiguidades e Francisco de Cremona, um mestre pedreiro que havia trabalhado sob as ordens de Rafael na própria basílica de São Pedro, em Roma.

Estabelecendo-se no Norte do país, longe da corte e do rei D. João III, com quem as relações se foram deteriorando progressivamente, o bispo iniciou uma série de grandiosas obras no seu território diocesano. Para além das terras beirãs, D. Miguel da Silva teve especial predileção pela Foz do Douro.

Fresco do século XVI, na Galeria dos Mapas do palácio do Vaticano, representando Portus, o porto da Roma imperial; foto de 2016 [Stebunik | Wikimedia Commons].

Na sua qualidade de abade do mosteiro beneditino de Santo Tirso – ao qual, como vimos, o couto da Foz pertencia –, D. Miguel da Silva desenvolveu um ambicioso programa construtivo que incluiu uma igreja renascentista, um paço, um farol e um conjunto de elementos decorativos ao gosto clássico. O objetivo parece ter sido o de construir na Foz do Douro um porto que rivalizasse com o de Lisboa e que permitisse ao Norte de Portugal um mais rápido e fácil acesso aos portos da Europa.

Para sinalizar a entrada na barra do traiçoeiro rio Douro, e inspirado no complexo portuário da Roma Imperial, D. Miguel mandou edificar o farol-ermida de São Miguel-o-Anjo. Desenhado por Francisco de Cremona, e erguido em 1527, o edifício é constituído por um torreão coberto por cúpula oitavada. A torre destacava-se claramente, tendo sido erguida num istmo granítico ou mesmo num afloramento isolado da margem.

Inscrição latina na torre do farol de São Miguel-O-Anjo; foto de 2009 [Maria Cartas | Wikimedia Commons].

Na fachada voltada ao rio, mandou colocar uma inscrição latina celebrando a sua ação mecenática: "Miguel da Silva, bispo eleito de Viseu, fez esta torre para governo da entrada dos navios e deu e consignou campos comprados com o seu dinheiro, com o rendimento dos quais foram acesos fogos de noite, perpetuamente, na torre. Ano MDXXVIII".

No rio, sobre alguns dos rochedos que constituíam ameaças à navegação, mandou erguer um templete de planta circular, imitando os modelos clássicos. Aí alojou uma estátua representando Portumnus, a divindade romana dos portos, dando as boas-vindas aos navios e apontando o caminho a seguir.

Mas D. Miguel não ficou apenas pela construção do farol. No local de uma antiga ermida medieval, entretanto convertida em igreja paroquial da vila piscatória de São João da Foz, mandou construir a primeira igreja renascentista de Portugal. Feita à maneira italiana, a igreja desenvolveu-se em planta retangular, de uma só nave, do tipo igreja-salão, com abside hexagonal de cúpula semicircular, impondo novos conceitos de espacialidade e elementos de decoração desconhecidos até àquele momento em Portugal. Um elemento decorativo único, é o recurso à tabula ansata (usada como elemento votivo na Roma Antiga) como moldura de janelas. Adossada à igreja, D. Miguel da Silva mandou erguer um paço abacial, para sua residência. Francisco de Cremona foi o responsável pelo traço de ambos os edifícios, tendo as obras se iniciado em 1527 e prolongando-se até 1546.

Reconstituição conjetural da igreja renascentista de São João da Foz, alçado e cortes transversais; desenhos de 2012-13 [História da Arquitetura Portuguesa].

Entretanto, vendo o acumular de tensões e crispações com o rei D. João III e temendo pela sua vida, D. Miguel da Silva decidiu fugir para Itália em 1540.

O rei nunca lhe perdoou a fuga, movendo influências para que fosse extraditado, retirando-lhe a nacionalidade portuguesa e condenando-o por traição. Malgrado a fúria régia, D. Miguel da Silva viveu os últimos quinze anos da sua vida em Roma, acumulando riquezas e mercês, sendo nomeado cardeal pelo papa Paulo III. O escritor Baldassare Castiglione dedicou-lhe a sua obra-prima, O livro do cortesão, que se tornou num autêntico best-seller do século XVI, com traduções em várias línguas e mais de 150 edições.

D. Miguel da Silva faleceu na Cidade Eterna em 1556.

Legado

Apesar de muito belo, o edifício da igreja estava também num ponto de valor estratégico para a defesa militar da barra do Douro. Em 1570, durante o reinado de D. Sebastião, começou a ser erguida uma estrutura abaluartada envolvendo a igreja e o paço de D. Miguel da Silva.

Mais tarde, a Guerra da Restauração ditou o reforço da estrutura e a desativação definitiva da igreja, sendo a sua cobertura desmontada. A capela-mor foi transformada em capela da fortaleza; a nave da igreja, agora a céu aberto, convertida em praça de armas; o paço abacial adaptado a aquartelamento da guarnição. A fachada e as torres da igreja foram demolidas, sendo a pedra reutilizada nos sucessivos reforços e ampliações da fortaleza. Desta forma, foram apagados todos os sinais da antiga igreja que caiu completamente no esquecimento. Em 1655, a fortaleza de São João Batista da Foz do Douro foi considerada a segunda do reino, logo após a de São Julião da Barra, ficando a memória da igreja renascentista perdida durante séculos.

Capela-mor da antiga igreja renascentista (comparar com o corte transversal da direita, da figura anterior); foto de 2015 [Laszlo Daroczy | Wikimedia Commons].

As estruturas clássicas erguidas no rio não tiveram melhor sorte. Foram derrubadas na primeira metade do século XVIII, quando os penedos em que assentavam começaram a ser destruídos com o objetivo de facilitar a navegação.

Em 1868, no decurso de trabalhos de drenagem em frente à Cantareira, foram recolhidos fragmentos de colunas e uma estátua a que se deu o nome de Togado. Esses materiais ficaram durante longos anos depositados na praia onde hoje está o jardim do Passeio Alegre, até serem adquiridos pelo Museu Arqueológico do Carmo, em Lisboa, para onde foram levados e onde ainda permanecem em exposição. Supõe-se que a estátua do Togado seja a representação de Portumnus, sendo os fragmentos de colunas os restos do pequeno templo erguido por D. Miguel da Silva.

O Togado no Museu Arqueológico do Carmo, em Lisboa; foto de 2017 [aquisotemhistoria.blogspot.com]

Quanto ao farol, ainda sobrevive, sendo hoje considerado como o mais antigo da Europa que chegou até nós com a sua estrutura original. Porém, perdeu muita da dignidade original. Os sucessivos aterros realizados nas suas imediações, assim como a construção posterior dos edifícios da torre sinalética e da capitania acabaram por esconder quase por completo a arquitetura da torre do farol e ocultar parte significativa das inscrições.

Farol-ermida de São Miguel-o-Anjo (à direita); foto de 2019 [Manuel de Sousa].

Em 1979, o historiador de arte e académico Rafael Moreira identificou a presença de mísulas italianas nas paredes interiores da fortaleza, levando à redescoberta da igreja renascentista. Escavações arqueológicas e obras de limpeza e consolidação levadas a cabo no final da década de 1980 puseram a descoberto muitas das estruturas escondidas, tanto da antiga igreja, como do antigo paço de D. Miguel da Silva.

Apesar do seu papel na valorização da Foz do Douro (e também de Viseu), e da sua importância como grande figura portuguesa do renascimento europeu, D. Miguel da Silva ainda é uma personagem pouco conhecida na história nacional e pouco evocada no Porto. Nesta cidade, a homenagem a D. Miguel da Silva não vai além da designação de uma pequena rua sem saída, na Foz. Nada mais...

Hoje, ficamos por aqui, caro(a) leitor(a). Voltando ao início, espero que este artigo lhe tenha dado alguma informação sobre a secular ligação da Foz do Douro a Santo Tirso e ao seu abade (que também foi bispo de Viseu), D. Miguel da Silva.

Gostou deste artigo? Leia também: A estância balnear da Foz do Douro.

Para saber mais:

  • ABREU, S.M. (2010). A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c1480-c1550) em Portugal: Novas pistas de investigação. FERREIRA-ALVES, N.M. (coord.) A encomenda. O artista. A obra. Porto: Cepese, pp. 557-583 [disponível online].
  • MOURA, N.A.M.C. (2009). A Foz do Douro: Evolução urbana. Porto: FLUP [disponível online].
  • PACHECO, H. (1984). Porto: Novos guias de Portugal. Lisboa: Editorial Presença [compre online].
  • SOUSA, B.V. (2016). Ordens religiosas em Portugal: Das origens a Trento - guia histórico. 3.ª ed. Lisboa: Livros Horizonte [compre online].
  • SOUZA, M.L.Z. (2015). D. Miguel da Silva, bispo de Viseu e o seu destacado papel na eclosão de um novo repertório artístico e cultural renascentista em Portugal em meados do século XVI. Revista Diálogos Mediterrânicos, n.º 8, pp. 151-173 [disponível online].

Comentários

  1. ADOREI CONHECER ESTA INFORMAÇÃO HISTÓRICA.

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  2. Este Forte é uma caixa de surpresas! Atualmente sou um dos seus ocupantes, Há sempre algo esquecido, há Séculos á espera de ser descoberto. Hoje também foi um dia de surpresas....

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    1. É verdade! O passado é uma caixa de surpresas! Obrigado por acompanhar este blogue!

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  3. Espetacular lição de História, não somente no seu desenvolvimento mas também o contexto, ilustração e organização total.
    Tema interessante que a maior parte dos tripeiros, com foz ou sem ela talvez desconheçam a sua génese, mas ela está aqui e bem retratada, a qual desenvolvida daria uma boa Tese.
    Bom trabalho .

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    1. Ora aqui fica a sugestão, para quem quiser aprofundar o assunto. Obrigado por acompanhar este blogue!

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  4. Olá Prof Manuel Esta sua comprida lição sobre a Foz veio complementar o muito que já sabia por si e pelo prof César nas visitas organizadas pelo SPZN. Obrigada a ambos pelo muito que nos mostraram e ensinaram sobre o nosso PORTO. OBRIGADA POR ESTA LIÇÃO! Venham mais!!!

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    1. M. Delfina
      Na universidade sénior, Eugénio de Andrade no Porto, foi-me dada uma magnífica lição de história pela professora da disciplina de Literatura portuguesa, que visou a vida de D Miguel da Silva. Muito pouco falado, este bispo português, de cultura rica, merece o nosso conhecimento, por isso procurei aqui informação. Contudo, tudo foi dito, hoje, na referida aula. Parabéns à digna professora, cujas aulas são aliciantes. 9/11/2023

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  5. Gostei imenso embora poucas informações tinha de visitas feitas com professores.

    Agora um aparte , o português não presta mesmo, é um invejoso ,veja o que fez D. João III a D. Miguel da Silva

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  6. Parabéns Manel, foi um prazer ler o artigo fonte de imenso conhecimento da nossa História e tradições. Obrigado e um abraço. Valdemar

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  7. Obrigado pelo artigo, que considero fascinante. Uma observação, não deverá ter sido Afonso V em 1136, porque ainda não tinha nascido.

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    1. Enganou-se no ano (é 1336 e não 1136), mas tem razão no que diz em relação ao monarca. Não é Afonso V, mas Afonso IV. Obrigado pelo alerta. Já corrigi.

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  8. Ouvi muitas histórias de minha tia avó,quanto ao que era a terra em que nasci. Gostava de aprofundar a informação... só não a encontro disponível. O "banheiro" ," o velho Claudino", Albertina Portugal , Jaime Machado de Miranda... famílias da velha Foz. Onde poderei encontrar parte dessa informação ? Se alguém puder ajudar, agradeço.

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